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Ilustração: Riça
Publicado a: 15/09/2020

O jazz em primeiro plano.

Notas Azuis #28: Christian Scott aTunde Adjuah / Ambrose Akinmusire

Ilustração: Riça
Publicado a: 15/09/2020

Na coluna Notas Azuis vai abordar-se jazz, música livre, música improvisada de todas as eras e nacionalidades, editada em todos os formatos.



[Christian Scott aTunde Adjuah] Axiom / Ropeadope

O discurso para a audiência no final de “X. Adjuah (I Own The Night)” é bastante revelador. Axiom, o mais recente registo do trompetista, natural de Nova Orleães e residente em Los Angeles, Christian Scott aTunde Adjuah, foi gravado ao vivo em Março passado no Blue Note, em Nova Iorque, a última noite em que o mítico clube teve música ao vivo antes da pandemia fechar efectivamente a cidade. Scott começa por agradecer ao público a sua presença: “Nós não vamos fugir”, exclama, “mas lavem as mãos, por favor”. “O que vão ouvir esta noite é a reavaliação. Acabámos de passar para o segundo século de música criativa improvisada – suponho que prefiram o termo resumido e pejorativo ‘jazz’… Mas isso é também parte do que estamos aqui a reavaliar: queremos reavaliar o que estamos a tocar e porquê e também esta relação”, declara o músico e compositor, referindo-se à relação entre os artistas e o público. “Muitas vezes, quando chegamos a ambientes como este para tocar música criativa improvisada, se alguém na sala usa o termo ‘jazz’ então de repente toda a gente se torna no raio de um Académico Fulbright. E isso é ok, mas também nada tem que ver com onde assenta o poder desta música. O que vão ouvir hoje relaciona-se com isso. As novas relações que estão a ser criadas. Queremos que todos saibam que são livres, que estão seguros, que se podem expressar… desde que não espirrem. Assim podemos estar todos em sintonia”.

Trata-se, muito claramente, de uma reclamação, no sentido de voltar a assumir a posse de algo, tanto quanto uma reavaliação: Scott entende que a música que cria é o resultado de uma longa tradição que, como ele mesmo sublinha, já conta mais de um século, mas percebe igualmente que esse “axioma”, a que aliás o título do seu álbum se refere, precisa de ser tomado em termos críticos, não como dogma que sustente novas práticas e conceitos, mas como o resultado de uma experiência que tem que ser permanentemente escrutinada, questionada. Reavaliada.

Com um ensemble de incríveis músicos que inclui Elena Pinderhughes na flauta (que também já tocou com Ambrose Akinmusire), Alex Han no saxofone alto, Lawrence Fields no piano e teclados, Kris Funn no baixo, Weedie Braimah no djembe, congas, tambores bata e demais percussão e ainda Corey Fonville na bateria e SPDSX, o próprio Christian Scott aTunde Adjuah assume, além do trompete “convencional”, o trompete Adjuah, o Sirenette, o fliscorne invertido (tudo peças de um altamente personalizado arsenal que o próprio músico tem desenvolvido como parte da procura de um som próprio) e percussão.

No passado, Christian usou o conceito “stretch music” (que aliás deu título a um dos seus álbuns) para tentar caracterizar a sua visão que, partindo efectivamente do que se reconhece amplamente como “jazz”, tem procurado estender-se a outras linguagens, das ricas e particulares tradições da “second line” de Nova Orleães (o músico é agora também um Chefe índio do Mardi Gras) às polirritmias africanas que a diáspora transportou igualmente para as Caraíbas e para o “Novo Mundo”, do r&b e do hip hop, ao gospel, soul, rock e demais linguagens que emergiram a partir dos blues. Essa ideia tem aliás informado o retrabalhar de peças gravadas anteriormente, como o tema que marca a abertura deste set no Blue Note, “I Own The Night”, originalmente incluído no seu último trabalho de originais, Ancestral Recall. Não é apenas esta música centenária que carece de “reavaliação”, parece dizer Christian Scott, mas as suas próprias composições, que são temas abertos, sempre passíveis de serem reinventados, assim o contexto seja alterado. O pensamento de Scott está, de resto, alinhado com o  de outros membros da sua geração, como o de Ambrose Akinmusire (cujo mais recente trabalho merece também por aqui atenção), que têm insistido que o jazz não pode ser encarado como linguagem distinta das restantes que a experiência afroamericana instigou, por um lado, mas também que esta é música livre e fluída, em constante processo de evolução e mutação (veja-se nesse plano o caso de Makaya McCraven, por exemplo).

Essa constante “reavaliação” (talvez se deva usar o termo “reinvenção”…) pode também adivinhar-se na escolha de reportório de Christian Scott, que aqui revisita o mesmo “Guinnevere” de David Crosby que notavelmente mereceu atenção de Miles Davis na era em que criou Bitches Brew (o tema está disponível, aliás, em versões “expandidas” do álbum). No gesto, é possível ler audácia, desafio, resposta a quem aponta a aTunde o peso do legado milesiano, mas também uma saudável atitude crítica de quem entende que da comparação entre as duas leituras poderá resultar uma mais nítida percepção dos passos evolutivos desta linguagem musical. As primeiras notas de Scott nesse tema são, aliás, quase um decalque das de Miles, mas o trompetista não perde tempo em mostrar-nos como é capaz de seguir por caminho próprio, exibindo um tom que é só seu e que é parte integrante do seu discurso artístico: claro, transparente, assertivo e igualmente carregado de imaginação.

Exploração é a palavra chave na viagem que aTunde Adjuah conduziu naquela noite de Março no Blue Note: em “Songs She Never Heard”, sobre uma vincada paisagem rítmica que serve de propulsão para uma belíssima deriva pianística de Lawrence Fields que aí exibe todo o poder cromático da sua mão direita, o líder junta a sua voz à da flautista num belíssimo encontro de tonalidade romântica (“most of the tracks are about love”, diz mesmo Christian, a dada altura), enquanto o mestre congueiro Weedie trata de deixar claro que romantismo e poesia não são incompatíveis com claves rítmicas mais pronunciadas. Já nos contrapontos rítmicos hip hop de “Diaspora” é possível ler uma modernidade pela qual, de facto, esta música anseia. Christian Scott não teme a tradição, mas importa-lhe mais o futuro em que a música se possa desprender das bagagens menos interessantes a que ele mesmo alude quando sugere que está aqui para “reavaliar” a história. E que o faça dando amplo espaço para que cada um dos seus companheiros de viagem se espraie é sinal de uma generosidade funda, mas também de um pensamento realmente comunal. Uma última palavra para “West of the West”: é uma peça longa de quase 16 minutos em que os sopros se expandem sobre um “shuffle” rítmico bem funky, perfeito para que o saxofonista Alex Han espalhe o seu pó de estrelas, percebendo-se muito bem a exuberante alegria que todo o combo partilha numa noite que haveria de adquirir um simbolismo muito especial: esta música faz-se de partilha e de sentido comunitário, explorá-la em palco é devolvê-la ao seu natural plano, mas essa prática está agora suspensa. Mais importantes se tornam, por isso, registos como este, que bem pode conquistar relevância histórica tamanha a particularidade do contexto que o viu nascer.



[Ambrose Akinmusire] on the tender spot of every calloused moment / Blue Note

“O mais distinto, indefinível e, em última análise, satisfatório trompetista da sua geração”: a frase, impressa nas páginas do New York Times, poderia pesar nas costas de qualquer jovem músico, mas Ambrose Akinmusire, californiano de Oakland que soma 38 anos, soa tão leve e desprendido quanto as melhores ideias em on the tender spot of every calloused moment, o seu quinto álbum como líder, editado há um par de meses pela Blue Note, editora que desde 2010 tem acolhido todos os seus projectos.

Com Justin Brown na bateria e Harish Raghavan no baixo, Sam Harris no piano e, em duas das 11 faixas, com as vozes de Genevieve Artadi (“Cynical Sideliners”) e Jesus Diaz (“Tide of Hyacinth”), Ambrose Akinmusire (que além de assinar a produção, ainda se senta ao piano eléctrico em dois momentos do álbum, “Cynical Sideliners” e “Hooded Procession (Read The Names Out Loud)) assina um belíssimo registo feito tanto de contenção como de expansão, de vívida dimensão espiritual, meditativo e profundamente cerebral no sentido em que cada peça, ainda que tendo claro espaço de invenção e de coloração livre, parece ser o resultado de uma cuidada esquematização.

Isto é possível porque Akinmusire é mais um daqueles músicos que além do seu próprio instrumento, parece igualmente tocar o próprio ensemble que escolhe ter ao seu lado. O líder conhece muito bem a secção rítmica que o ampara já que tem, em diferentes contextos e combinações, tocado abundantemente com todos estes músicos na última década, desenvolvendo com eles uma química que se sente de forma nítida na forma como os instrumentos convivem e se encaixam ou derivam em cada uma das peças do alinhamento. Parecendo ancorada nos blues, esta é música cuja melancolia parece ecoar de forma particular nestes estranhos tempos que vivemos. Em “Blues (we measure the heart with a fist)”, Akinmusire explora toda a expressividade do seu trompete, arrancando ao silêncio um sopro que soa como um delicado drone em cima do qual um piano preparado vai largando pinceladas cromáticas abstractas. O tema é bem exemplificativo do tal carácter cerebral da sua música, um esquálido mantra em que se percebe de forma inequívoca como consegue Ambrose Akinmusire interagir de forma orgânica com o contrabaixo e a bateria, como se esta música fosse ilustrativa dos tortuosos caminhos que as raízes fazem para se fincarem no solo, contornando cada obstáculo, prevalecendo. E no final, sentado, sozinho, ao piano eléctrico, expondo dor em notas esparsas, Ambrose Akinmusire oferece-nos um fúnebre lamento enquanto dentro da nossa cabeça ecoam os nomes trágicos que os media têm depositado no centro das nossas vidas. Tão comovente como singelamente belo.

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