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Ilustração: Carlos Quitério
Publicado a: 07/03/2023

O jazz em primeiro plano.

Notas Azuis #116: Luís Vicente 4tet

Ilustração: Carlos Quitério
Publicado a: 07/03/2023

[Luís Vicente 4tet] House In The Valley (Clean Feed)

Quando quatro cabeças/corpos/espíritos criativos aceitam juntar-se, num espaço e num tempo previamente acordados, para se entregarem a uma ideia, seguirem uma intenção e buscarem no mais fundo de si os argumentos para transformar tudo isso em música livre e espontânea, algo de absolutamente heroico sucede. É que isto é gente capaz de mergulhar no abismo, entrar sem medo num mar de chamas, sem outro propósito que não seja o de transformar em som, em música, aquilo com que se sonha. 

Luís Vicente (trompete), John Dikeman (saxofone tenor), Luke Stewart (contrabaixo) e Onno Govaert (bateria) estiveram juntos para uma apresentação na Igreja do Espírito Santo, Caldas da Rainha, a 19 de Julho de 2021, ocasião que mereceu documentação áudio por parte de Ricardo Pimentel. É essa gravação que se escuta neste House In The Valley, uma das sete datas que o quarteto carimbou numa digressão pelo nosso país que contou com o apoio da GDA. Um saxofonista americano que tem base em Amesterdão e uma agenda muito preenchida, um contrabaixista americano que conhecemos de outras andanças, incluindo dos Irreversible Entanglments, e um baterista holandês que também não tem mãos – ou pés… – a medir. Vicente já conhecia Dikeman e Govaert, mas o seu encontro com Stewart é novo e como se sabe basta mudar uma das parcelas para se alterar o resultado da soma…

Juntos, seguindo instruções com amplo espaço de manobra concebidas pelo líder Luís Vicente (ver o que tem a dizer sobre isto na entrevista que nos concedeu), os membros deste quarteto conjuraram algo de muito poderoso no material que aqui se reúne: são duas longas peças com os títulos “Anahata + Little Dance” (quase 25 minutos) e “Luisa’s Laugh + House In The Valley” (um pouco mais de 42 minutos) em que o grupo vai ao fundo de si mesmo e emerge do lado de lá do êxtase com renovado ânimo.

A primeira peça começa quase como uma lenta fanfarra, guiada pelo duelo dos sopradores, sustentada pelo ribombar baterístico e pela poética “manta” do contrabaixo, e marcada por solos plenos de imaginação, vida e vibração: Luís Vicente equilibra poesia e fogo na corda bamba da sua expressão, junta a isso ecos da tradição e estilhaços de um pensamento que não admite amarras, e oferece-nos o resultado envolto num som que é liso e rugoso ao mesmo tempo. E John Dikeman é todo ele um constante tremor, capaz de nos arremessar frases estruturadas e gritos relinchados com idêntica autoridade. A secção rítmica, por seu lado, é fonte de energia constante, uma força propulsora que não teme nem vales, nem montanhas.

Na tour de force que é a peça mais longa, começa-se com um uníssono soprado antes de se caminhar decididamente para fora do mapa: os 40 minutos seguintes são uma vertigem autêntica, o som de quatro heróis envolvidos na mais titânica das odisseias, a da auto-descoberta mais sincera, da entrega mais absoluta, sem barreiras ou filtros. Luke Stewart prova que tem uma caixa de velocidades carregada de possibilidades e o tempo abre-se a todas as ideias: entre o trovão e o silêncio há pontes que só a música sabe erguer.

É natural que um disco desta intensidade nos deixe extenuados. Música heróica também exige ouvidos capazes.

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