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Ilustração: Carlos Quitério
Publicado a: 21/09/2022

O jazz em primeiro plano.

Notas Azuis #107: Vera Morais & Hristo Goleminov / Vazio e o Octaedro / NoA

Ilustração: Carlos Quitério
Publicado a: 21/09/2022

Na coluna Notas Azuis vai abordar-se jazz, música livre, música improvisada de todas as eras e nacionalidades, editada em todos os formatos.



[Vera Morais & Hristo Goleminov] Consider The Plums / Carimbo Porta-Jazz

Em Fevereiro passado, por estar comprometido com uma entrevista, perdi um único concerto da edição 2022 do Festival Porta-Jazz, precisamente aquele em que se apresentaram as peças agora reunidas em Consider The Plums, trabalho assinado pela cantora Vera Morais e pelo saxofonista Hristo Goleminov que agora merece edição devidamente “carimbada” pela portuense associação Porta-Jazz. As duas derradeiras peças do alinhamento deste registo foram aliás gravadas nessa ocasião: a primeira é uma improvisação e a última uma criativa leitura de “This Is Just to Say”, poema de Williams Carlos Williams que inspira o título deste álbum. De Carlos Williams são, aliás, a maior parte das palavras a que Vera Morais entrega a sua voz, excepção feita às que se escutam em “Peaches” e “Fog”, peças que, respectivamente, se posicionam na abertura e fecho do arco de canções de Consider the Plums (os dois temas gravados ao vivo são adições bónus).

As composições deste Consider The Plums são, na sua maior parte, repartidas por Morais e Goleminov, com as excepções a serem “Fresta”, criação da vocalista, e “Grumos”, obra do saxofonista. O resultado é tão cativante quanto intrigante, com cada um dos músicos a explorar de forma criativa o seu instrumento: Vera canta, fala, murmura, emite ruídos diversos, estalidos, respira e sorri com a voz e Hristo, por seu lado, segue-a ou guia-a, com breves frases de vocal sinuosidade. Ambos tomam as palavras e os sons como matéria-prima, repetindo-os até à abstracção, enunciando-os com solenidade ou brincando em seu torno com figuras circulares de carácter lúdico. Ou seja, fazem música a partir da poesia, extraem ideias melódicas, rítmicas e harmónicas daquilo que as palavras fazem na página, o lugar onde traduzem o impulso modernista da América da primeira parte do século XX, de forma económica e directa. “To a Poor Old Woman”, por exemplo, é o perfeito exemplo dessa criativa leitura: começa em modo quase-folk, antes de a crueza das palavras ser acentuada por Vera que repete frases, alternando as tónicas e sublinhando certos termos, em busca do absurdo que pode existir na mundana realidade. E a isso Hristo responde como sombra, de forma livre, sublinhando cada frase com uma torrente de sons que parecem nascer em catadupa de cada uma das palavras. Intenso e interessante.



[Vazio e o Octaedro] Vazio e o Octaedro / Carimbo Porta-Jazz

Um octaedro, ensina-me a Wikipédia, é um poliedro de oito faces, um dos 5 sólidos Platónicos juntamente com o popular cubo, a não menos famosa pirâmide de quatro faces que o filósofo classificou como tetraedro e os mais complicadinhos dodecaedro e icosaedro, de doze e 20 faces, respectivamente. Curiosamente, não há oito faces neste Octaedro, antes nove: as de Josué Santos (saxofonista tenor e compositor de três das seis peças aqui apresentadas), Afonso Silva (saxofone alto), Hristo Goleminov (saxofone soprano, tenor e flauta), Gianni Narduzzi (contrabaixo e compositor de duas peças), João Cardita (bateria), Beatriz Rola e Alice abreu (violinistas), Sara Farinha (viola) e Manuela Ferrão (violoncelo).

Em 2021, este Vazio e o Octaedro apresentou-se no Festival Porta-Jazz que com pompa e circunstância pandémica se realizou nos jardins do Palácio de Cristal, no Porto, como é óbvio. Na ocasião, escrevi que este era o resultado de uma residência artística promovida pelo próprio festival e dirigida por Narduzzi e Santos. “Explicam os próprios líderes do projecto no programa que decidiram “juntar a um quinteto de jazz que carece de instrumento harmónico um quarteto de cordas que lhe confere esse suporte e verticalidade”. Grupo muito jovem, que uma hora antes da actuação, numa das esplanadas do Palácio de Cristal, se divertiu a escolher camisas vintage saídas de um bem recheado saco como visual para a sua apresentação, estes Vazio e o Octaedro ainda tiveram que lidar com a logística complexa das pautas em dia de algum vento, problema resolvido com alguma imaginação, umas quantas molas de roupa, elásticos e fio”. Escrevi também sobre a música…. “Navegando águas que ora se acercavam de algum jazz mais clássico ora espreitavam modos eruditos, o colectivo soou ainda assim mais moderno a espaços. Em temas como “Big Sur”, que o contrabaixista e porta-voz confessou ter escrito depois de ler o romance com o mesmo título da autoria de Jack Kerouac, ou o ironicamente titulado “Please Insert a Fancy Title Here to Pretend That a Void Doesn’t Fill Your Mind” combinaram-se grooves vincados com declinação algo hip hop, bons arranjos que deram para escutar uníssonos de sax e violino de belo efeito, passagens com cordas dedilhadas a acompanharem o balanço do contrabaixo e momentos mais atonais das cordas em contraste com os sopros, de belíssimo efeito final. Ideias, arrojo e inovação mesmo antes do almoço. Nada mau”.

O disco que agora se escuta foi gravado mais de seis meses depois dessa apresentação por Nuno Couto no Centro de Alto Rendimento Artístico de Matosinhos sendo depois misturado e masterizado por Sérgio Valmont. E o que ao vivo nos soou mais vívido e enérgico, parece agora mais refinado, com todos os elementos bem oleados e encaixados nas composições. Há uma que não pertence a nenhum dos dois compositores de serviço, a belíssima “Balada de Outono” de José Afonso, arranjada por Josué Santos que também assume a voz, dando às cordas um imaginativo e dramático arranjo, com o pizzicato a soar como pontilhado em pano bordado. Bom e bonito.



[NoA] Concavexo / Ed. de autor

Nem concavo nem convexo. Concavexo mostra os NoA de Nuno Costa (guitarras e voz), Óscar Graça (piano, teclados e voz), André Sousa Machado (bateria percussão, voz) e ainda, em dois momentos, Rão Kyao (flautas) a viajarem por diferentes terrenos que se estendem do rock a uma declinação própria dos modos populares, passando, pois claro, pelos domínios do jazz com um espírito, digamos, mais fusionista, como tão bem demonstrado em “A Queda de um Arpanjo” (aquele solo de guitarra aditivado com efeito podia ter saído de um disco da CTI dos anos 70…).

Concavexo sucede a Evidentualmente, trabalho que o trio-sem-baixo lançou em 2020 (e que por aqui mereceu atenção). Na altura sublinhei o evidente (evidentual?…) prazer que Costa, Sousa Machado e Graça retiram do acto de tocar em conjunto, algo que neste novo registo resulta ainda mais claro. Temas como “Zás Trás”, servido por uma vincada cadência de baixo, ou “Circo do Oriente” (segunda peça que conta com as flautas de mestre Kyao), lúdica fantasia “exótica”, vivem, precisamente, desse deleite que se obtém do encaixe numa ideia comum. Já “NoAr”, que parece surgir de um motivo melódico algo “zecafonsiano” sugerido pela guitarra, é subtil exercício de tempero groovy que permite que cada um dos músicos se espraie com generoso espaço. É na dupla peça que encerra o trabalho, “The Kid” e a mais breve “The Kid: Dreamland” que no entanto se encontra a chave deste som com o trio a exibir uma natural inclinação melódica que se faz de transparente reverência e de poética submissão aquilo que a própria música parece aqui pedir: luz e dinâmica, surpresa e rigor, liberdade e invenção.

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