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Ilustração: Carlos Quitério
Publicado a: 14/07/2022

O jazz em primeiro plano.

Notas Azuis #102: Tumi Mogorosi

Ilustração: Carlos Quitério
Publicado a: 14/07/2022

Na coluna Notas Azuis vai abordar-se jazz, música livre, música improvisada de todas as eras e nacionalidades, editada em todos os formatos.



[Tumi Mogorosi] Group Theory: Black Music / Mushroom Hour Half Hour-New Soil

Há algumas semanas escreveu-se por aqui a propósito dos singles de antecipação deste Group Theory: Black Music, segundo trabalho em nome próprio do baterista Tumi Mogorosi (Shabaka Hutchings and the Ancestors, The Wretched) que surge num momento de intensa ebulição na cena jazz sul-africana. E talvez seja injusto encarar esse relevante conjunto de edições – para lá deste álbum de Mogorosi e de In The Spirit of Ntu de Nduduzo Makhathini (que mereceu atenção na mesma coluna), há ainda que considerar edições recentes assinadas por Linda Sikhakhane e Thandi Ntuli (que a seu tempo também hão-de merecer por aqui atenção) – como provas de um “momento de intensa ebulição”, insinuando o nosso olhar exterior como a medida certa para uma cena historicamente rica e certamente muito mais diversa e profícua do que o que os nossos distantes ouvidos europeus são capazes de captar. Mas esses discos existem, resultam de um conjunto de mentes criativas e elevadas e obrigam a pensar na África do Sul como mais um importante pólo de avançada produção musical no cada vez mais complexo e intrincado mapa jazz do presente que se estende de Los Angeles, Chicago e Nova Iorque a Londres e daí a várias outras cidades – Paris, Bruxelas, São Paulo e Rio de Janeiro, Tel Aviv, Melbourne, Varsóvia, Porto e Lisboa ou Helsínquia serão outros pontos possíveis, todos eles com válidas contribuições para o turbilhão chamado “agora”.

Explica-se nas notas de lançamento de Group Theory: Black Music que Tumi Mogorosi bebeu directamente nas palavras com que o poeta e pensador Amiri Baraka rematava o ensaio que serviu de liner notes para a compilação de 1966 da impulse!, The New Wave in Jazz: “A Nova Música Negra é isto: encontrar o eu , e então matá-lo” (esse texto foi depois incluído em Black Music, o influente livro de Baraka que recolhia vários dos seus escritos e que recentemente foi traduzido para português por João Berhan e dado à estampa pela Orfeu Negro numa edição prefaciada por Kalaf Epalanga que recebeu o título Música Negra).

Esse eliminar do ego a que Amiri Baraka se referia aponta para o espírito comunal do jazz, para o permanentemente renovado fenómeno da erupção criativa que acontece sempre que um conjunto de músicos ruma ao desconhecido, em palco ou em estúdio, partindo de um lugar comum ou experiência partilhada. Essa noção comunitária é decisiva no álbum que Mogorosi criou com a colaboração estreita de Andile Yenana (piano), Dalisu Ndlazi (contrabaixo), Gabi Motuba (voz em “Sometimes I Feel Like a Motherless Child”), Lesego Rampolokeng (voz em “Where are the Keys”), Mthunzi Mvubu (saxofone alto), Reza Khota (guitarra eléctrica), Siya Mthembu (voz numa versão alternativa de “Sometimes I Feel Like a Motherless Child”) e Tumi Pheko (trompete).

“Mas onde Group Theory: Black Music avança dramaticamente com um formato estabelecido é na adição de um coro de dez pessoas. Conduzidas por Themba Maseko, as suas vozes em massa elevam-se poderosamente acima de cada faixa como um instrumento colectivo de respiração e corpo humano, e adionam o álbum ao pequeno mas significativo número de gravações radicais que usaram a voz desta forma, tais como It’s Time de Max Roach, Lift Every Voice de Andrew Hill, Capra Black de Billy Harper e I’m Trying To Get Home de Donald Byrd. Ao mesmo tempo, a presença desta parede de vozes traz uma ligação inextricável à venerável tradição da música coral sul-africana, e à importância que o coro negro tem tido para as culturas religiosas, políticas e sociais da África do Sul, incluindo a própria cultura da música criativa sul-africana. Desde os Manhattan Brothers e as composições corais de Todd Matshikiza a figuras como Johnny Dyani e Victor Ndlazilwane, o poder colectivo da voz tem sido uma das pedras angulares da música criativa improvisada no país”, escreve-se no texto que acompanha a edição de Group Theory: Black Music.

“De facto”, escrevia igualmente, embora há 55 anos, Amiriki Baraka, “remontar numa linha de ascendência (histórica ou emocional) da música negra leva-nos inevitavelmente à religião, ou seja, ao culto do espírito. Este fenómeno está sempre na raiz da arte negra: a adoração do espírito, ou pelo menos a convocação de uma força. Posto que até a própria música era isso mesmo, um reflexo do espírito, ou a não-coisa em si mesma”. Mogorosi aprofunda a ideia: “O álbum está sob o meu nome, mas as ideias visam uma descentralização do compositor ou autor individual, e uma descentralização da ideia do “líder” – tenta encapsular a ideia de um efeito de grupo, para ir para além do ponto de origem, e recusa narrativas geo-específicas”. E, uma vez mais, o líder, desta vez sobre o poder das próprias vozes: “Comecei num coro. Há esta ideia de massa, de um grupo de pessoas reunidas, que tem uma implicação política. E a voz lírica tem tanto uma presença, como uma capacidade de gritar, uma capacidade de afectar. O grupo instrumental pode sustentar a intensidade desse efeito, e o coro pode ir além da improvisação, em direcção a melodias comunitárias das quais todos podem fazer parte”.

O magnífico coro faz-se ouvir desde os primeiros momentos de “Wadada”, faixa de abertura do alinhamento, pontua de diferentes formas todos os temas seguintes e só se silencia para que as fundas palavras de Lesego Rampolokeng sobre a natureza e a ciência da própria música reverberem ainda mais na peça final “Where Are The Keys?”, tema cujo título reforça a noção avançada por Mogorosi de que este grupo de pessoas se reuniu para formular questões, muito mais do que para procurar respostas. Essa tapeçaria harmónica vocal confere uma profunda solenidade à música, encapsulando o musculado som do sexteto em que naturalmente brilha o alto de Mthunzi Mvubu (outro membro chave dos Ancestors) – logo em “Wadada” o seu solo descola do chão fértil de vozes e aponta às estrelas, com a guitarra de Reza Khota a sombreá-lo, primeiro, e a seguir-lhe os passos, logo depois, numa virtuosística sucessão de apresentações que, no entanto, nunca desfaz o nó górdio que une os dois colectivos – o instrumental e o vocal. E tem razão Mogorosi quando defende que a sua música recusa narrativas “geo-específicas”: “The Fall” arranca como peça de tensão orquestral quase prog, desenhada na guitarra, antes de transcender todas as fronteiras reais e imaginárias, para se apresentar como música de beleza universal. E é esse o tom que domina o restante alinhamento, feito de música que parece acolher todos os ecos do mundo, devolvendo-os como estruturada e ainda assim imensamente livre visão de grupo, com óbvias referências na rica história que a diáspora africana e afro-americana espalhou pelo universo (não se esqueçam de onde veio e para onde foi Sun Ra…), tal como bem explicitado nas duas versões do espiritual “Sometimes I Feel Like a Motherless Child” (que tiveram direito a considerandos mais desenvolvidos aqui), mas tão inventiva como qualquer outra desafiante aventura contemporânea que fixe as suas perspectivas no inescrutável futuro. Porque África é futuro. África é passado. E África é agora.


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