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Fotografia: Andreia Carvalho e Patrícia Silva pela World Academy
Publicado a: 13/09/2021

Que cidade é esta, afinal?

NOSSA LISBOA’21 – Dia 1: livre, diversa e orgulhosa

Fotografia: Andreia Carvalho e Patrícia Silva pela World Academy
Publicado a: 13/09/2021

No tempo que separa e que, paralelamente, une a explosão dos Buraka Som Sistema e o reconhecimento transversal da música de Dino D’Santiago, foi emergindo e ganhando significado a ideia de celebração de uma “Nova Lisboa”. Uma Lisboa pós-colonial, crioula, diversa e misturada. Uma Lisboa que encontraria na música uma das mais criativas expressões da sua multiculturalidade.

É incontornável que nos últimos anos essa música oriunda da diversidade das periferias geográficas e sociais da Grande Lisboa foi conquistando espaços, palcos e protagonismo, ao mesmo tempo que alcançou uma crescente atenção mediática e da indústria. Só que este ímpeto de celebração da “Nova Lisboa” revela tanto quanto oculta, celebra tanto quando invisibiliza. Em primeiro lugar, porque essa Lisboa diversa, negra, miscigenada e criativa sempre existiu. O que realmente mudou foi o facto da sua representação ter chegado ao centro dos holofotes e a espaços que antes lhe estavam vedados. Em segundo lugar, porque a celebração dessa Lisboa diversa que anima as pistas do centro e os seus públicos nem sempre vem acompanhada de um reconhecimento de todos os problemas estruturais que afectam essas mesmas comunidades – das questões da nacionalidade ao racismo estrutural e institucional; da desigualdade de oportunidades aos problemas de habitação; da segregação urbana aos problemas de mobilidade; das desigualdades educativas às dificuldades económicas. 

Por tudo isto, talvez tenha sido uma boa aposta a escolha de “Nossa Lisboa” como mote para um festival que se propõe celebrar a multiculturalidade desta área urbana feita de muitos encontros. Primeiro, porque a expressão remete para uma ideia de auto-identificação – é “nossa” esta cidade que se faz na diversidade e na partilha. Depois, porque amplia uma ideia de cidade de que nos podemos apropriar, que podemos significar e que, neste sentido, conecta a música a uma ideia de futuro. Com a paragem de 2020, apareceram novos festivais e novas formas de pensar o que estes podem significar. O festival NOSSA LISBOA poderá ser um dos mais promissores, se conseguir ser um espaço de representação efectiva da pluralidade dos sons, dos sotaques, das cores e dos corpos que fazem de Lisboa um espaço de vivência de que nos orgulhamos.  

Percorremos o primeiro dia do festival à procura desses encontros e num cartaz com nove concertos, alguns sobrepostos, optámos por circular entre eles, espreitando a música, o público e o ambiente, como quem circula pela cidade e presta atenção aos sons que esta emana e à forma como são apropriados por quem os escuta. A viagem não podia ter sido mais proveitosa. 

Cubita abriu o primeiro dia com uma plateia ainda em formação, que parecia disponível para acolher aquela voz que, apesar de tímida, não deixava de aliciar as pessoas que se iam juntando. Seguimos, então, para o concerto de Toty Sa’Med, que em nenhum momento se deixou intimidar por uma Sala Tejo demasiado ampla para o seu registo intimista. O músico subiu confiante e foi nesse lugar que se manteve, acompanhado por uma guitarra que foi suave e sensível, ainda mais quando conjugada com uma voz terna e não menos propositiva. Ao longo do concerto, Toty Sa’Med foi-nos propondo uma ponte aérea entre Luanda e Lisboa, com diversas paragens por influências brasileiras. O reportório centrou-se no seu EP Ingombota, em que homenageia nomes como Ruy Mingas, Artur Nunes ou Bonga, aproveitando também para tocar temas recentes que gravou, por exemplo, com Bateu Matou ou Dino D’Santiago. 

No outro lado do recinto, Irma ia também conquistando os primeiros corpos que se começavam a abanar ao som de Primavera, o seu álbum de 2020, aproveitando ainda para homenagear Amália Rodrigues, cantando a sua versão de “Fado Xuxu”.  O aquecimento estava feito para a primeira grande explosão da noite, que se daria instantaneamente, quando os Calema entraram em palco. Assim que António Mendes Ferreira e Fradique Mendes Ferreira pisaram o Palco Arena milhares de pessoas levantaram-se das suas cadeiras, para dançar e gritar cada uma das letras, levando os músicos a dizer, algo emocionados, que “Lisboa tem uma luz especial”. 

Depois da euforia de Calema, tempo para a sensibilidade implicada de Rua das Pretas, com quem partilhamos o samba, um copo de vinho e um esperançoso “Fora Bolsonaro!”. Seguiu-se, então, Luca Argel, autor de Samba de Guerrilha, um dos mais importantes álbuns de 2021. Como já nos habituou, Luca ocupou o palco com plenitude: celebrou um samba sem fronteiras, feito de homenagem e reinvenção, tradição e rearranjo, profundamente político e poético, e brilhantemente acompanhado de uma banda que realçou a intimidade do músico, acrescentando-lhe força, potência e rebeldia.

Ao acabar o concerto, Luca Argel apressou-se: “Temos de acabar… Como se vocês também não quisessem ir ver a Mayra…”. Sorri, e o público com ele, deslocando-se em massa para o Palco Arena, onde Mayra Andrade proporcionou um dos mais bonitos momentos da noite. Um pavilhão repleto de milhares de pessoas, dançando e cantando em uníssono todos os temas, com especiais dedicatórias para todas as pessoas filhas de imigrantes e para a Lisboa que se faz nesse encontro que a sua música celebra. 

É claro que, depois da explosão de Mayra, toda a plateia se dirigiu para ver o “kota” Bonga. Longe vão os tempos em que o músico recebia sucessivos prémios no estrangeiro e poucas vezes conseguia tocar ao vivo em Portugal. Toda a gente queria ver e celebrar a carreira imensa do músico angolano e a afluência foi tanta que muita gente teve de ficar à porta. Lá dentro, Bonga apresentou-se como só ele poderia fazê-lo. Dono e mestre de uma semba que influenciou gerações e gerações de angolanos e afrodescendentes. Dono e mestre de uma discografia de ouro, por onde viajou ao longo do concerto e que foi reconhecida por todas as pessoas que ali se encontravam. Já ninguém aguentava estar sentado. Tudo dançava e se abraçava ao som de temas que marcaram a imensa carreira do artista, de “Mona Ki Ngi Xica” a “Mulenga Xangolá”, de “Currumba” a “Olhos Molhados”, de “Homem do Saco” a “Mariquinha”. Cheirava mesmo a um futuro pós-COVID. 

Infelizmente, a passagem pelo concerto de Paulo Flores não foi possível — quem vos escreve teve de conjugar a sua agenda com as dos transportes públicos. No entanto, podem sempre entrar na “máquina do tempo” e reler o testemunho de Pedro João Santos sobre a sua actuação na edição deste ano do InterMEDio.

O NOSSA LISBOA provou, neste primeiro dia, que um cartaz diverso pode conquistar um público mais plural, menos branco, mais capaz de representar a própria diversidade dos sons e das histórias desta Grande Lisboa. Voltando onde começámos, neste primeiro dia, não assistimos tanto a uma “Nova Lisboa”, mas antes a uma Lisboa que sempre existiu, mas que só agora começa a conquistar os holofotes do centro. É claro que o acesso aos centros é sempre dúbio e nunca devemos deixar de nos questionar sobre se esta celebração da diversidade, para lá da oportunidade de negócio, pode ter também uma tradução concreta numa outra forma de pensar o futuro de Lisboa e numa maior capacidade de representação de comunidades historicamente invisibilizadas. Da nossa parte, não escondemos o cepticismo, mas também não poupamos na esperança e no orgulho do caminho feito. Por isso hoje celebramos esta NOSSA LISBOA, que se faz dos sons, dos corpos, das histórias e dos encontros que acalentam o optimismo. Haja esperança. 

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