Os Clã são os mais cool de Portugal. No departamento de bandas brancas, dificilmente há quem grite com mais aprumo, quem suspire com tanta brutalidade, quem balance com tanta ginga — muito por culpa da vocalista Manuela Azevedo, desde 1992 a nortear este ar de rock. Hoje, trazem-no ao festival InterMEDio, naquele que é o último dia do ReB em Loulé.
Se Hélder Gonçalves assina a maior parte das canções, Azevedo imprime-lhes a sua rouquidão de assinatura, a dicção sem falha, o espírito cortante da coisa. Pedro Santos propõe as linhas de baixo, as teclas de Miguel Ferreira e Pedro Biscaia fervem o caldo, Pedro Oliveira dá o pulso. E todos dão pulos de banger para balada, abrindo bolsas de gravidade zero e groove 100… não precisamos de o dizer. Estiveram quase para não ser felizes (o mau êxito do primeiro álbum, lusoQUALQUERcoisa, e o ocasional disco esquecido na prateleira), mas sobreviveram a todo o terreno.
São veteranos que nunca se recostaram, é isso que são. Por isso é que, na inevitabilidade d’”O sopro do coração” (que calha no auto-rádio enquanto escrevemos este texto), não dependem do público para insuflar o momento com ventos nostálgicos. Em contraciclo à grande cantoria que podíamos antecipar, Manuela e Hélder dividem este prato típico dos Clã em duas doses: uma para a voz, outra para as cordas – uma nova confecção. Não estamos ali a mais, mas é um nadinha indiferente se cantamos ou não. O que é menos verdade para os outros temas de Lustro, o álbum de 2000 que bastaria para os consagrar. Nunca houve um dia em que “Dança na corda bamba” não desse cabo de toda a gente; “Sangue frio” é um sing-along com instruções; “H2omem” vem com coreografia na embalagem (uma fã à nossa beira parecia saber, ainda melhor do que Manuela, os passos na ponta dos braços).
20 anos depois, tantos discos volvidos, chegou Véspera, o núcleo firme do concerto no interMEDio. Sem intenções de ser profético, falava de calafrios e desvarios, antecipando algo atroz (“e não porque tivéssemos um contacto especial com o Além”, esclareceu Manuela, antes de prometer nunca mais dizer a palavra “confinamento”). Estão a ser ressarcidos da estrada que não percorreram em 2020, contaminados ainda pela energia tensional desse álbum, mais electrónico (como no ofegante “Armário”, composto por Capicua, ou no sci-fi de “Sinais”) e nu. Demasiado nu, por vezes, numa esquematização musical que parece não servir todas as canções por completo. Engraçado, portanto, que ao vivo soem completas e buriladas, cada elemento – e, muito especialmente, o técnico de som – a cumprir o seu mister, sem faltar qualquer adorno nesta caixa de palco. Até o exaustivo tema “Jogos florais” volta a florescer.
[“Eu sei que não podemos dançar, mas podemos sentir”]
A propósito: Paulo Flores proclamou Independência ao quinto dia do interMEDio, três meses após ocupar o Coliseu dos Recreios e uma semana antes de se dirigir à Festa do Avante (onde vai estar com Yuri da Cunha e Prodígio, rapper da Força Suprema, com quem gravou o álbum A Bênção e a Maldição). Fineza no guarda-roupa, o sorriso como uma luz de presença, a noite fria a correr à espera das melhores umbigadas a que um bilhete pode dar acesso – com uma banda de luxo, de que fazem parte o guitarrista Manecas Costa e o baterista Ivo Costa.
“Queria ser cantor/ Queria ser o actor principal da minha vida/ Eu queria saber o que é certo”, desabafa pouco depois do começo, no seu “Jeito Alegre de Chorar”. O que é certo é que Flores é dos maiores rouxinóis angolanos, na labuta desde os anos 80; o último álbum, editado em Maio, é uma carta aberta ao trauma que pode ser sobrescrito com a verdadeira libertação. Essa rasura demora tempo, talvez nunca aconteça – mas enrijece a ideia de que as vistas mais duras podem sempre favorecer o nascimento de arte curativa.
“Si Bu Sta Dianti na Luta/Xica Feia”, de Independência, é uma homenagem à “condição da mulher africana e do mundo inteiro” – e do Afeganistão, como cantará Flores também, improvisando – sem poupar no detalhe e na extensão das violências a que esse mundo as sujeita. Por exemplo: “A previsão saiu errada/ A vida que não escolheu/ Às vezes leva porrada/ Mas depressa se esqueceu (…) Outr’ora foste serena / E hoje fizeram-te puta”. É entoada a duas vozes, por Flores e por Manecas Costa (uma bandeira da Guiné-Bissau, de onde é natural, descai do braço do seu instrumento). Sem o agre dessa reflexão, ou as malambas de “Njila ia Dikanga”, o regresso tristonho à terra, a alegria podia perder contexto.
Não é o caso. “Semba Original”, em homenagem aos precursores Waldemar Bastos e Carlos Burity, explica bem o som desta riqueza negra (foi pena a embriaguez não permitir às mulheres ao nosso lado que entendessem bem a questão, bamboleando-se e gritando por alguma migalha de atenção, apropriando e desrespeitando uma cultura que claramente não entendem). “Semba original, batida de um som ancestral, que nasceu da escravatura, e é o orgulho nacional.” E se nunca viram Paulo Flores a fazer o shimmy, ou a espantar o mau olhado, não viveram ainda.
O semba transcende o rés-do-chão, chega até um qualquer sexto andar, transcende o sofrimento basilar. E esse continua sempre lá. “Sabes, pai/ Fazes-me falta”, enuncia, com o tom que negoceia entre o luto à beira do choro e a contemplação alegre, noutro momento em que a banda sai e fica apenas o “bebézinho” Kiari Flores, o filho encarregue do cajón. “Tu e todos os kotas do teu tempo/ Que se privaram por nós, para nós/ Era pra ser nós todos”. Se depender de Paulo Flores, ainda será.
Até para o ano… MED.