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Fotografia: Mira
Publicado a: 30/08/2021

A benção e... a benção.

InterMEDio’21 – dia 27 de Agosto: os clãs a que escolhemos pertencer

Fotografia: Mira
Publicado a: 30/08/2021

Os Clã são os mais cool de Portugal. No departamento de bandas brancas, dificilmente há quem grite com mais aprumo, quem suspire com tanta brutalidade, quem balance com tanta ginga — muito por culpa da vocalista Manuela Azevedo, desde 1992 a nortear este ar de rock. Hoje, trazem-no ao festival InterMEDio, naquele que é o último dia do ReB em Loulé. 

Se Hélder Gonçalves assina a maior parte das canções, Azevedo imprime-lhes a sua rouquidão de assinatura, a dicção sem falha, o espírito cortante da coisa. Pedro Santos propõe as linhas de baixo, as teclas de Miguel Ferreira e Pedro Biscaia fervem o caldo, Pedro Oliveira dá o pulso. E todos dão pulos de banger para balada, abrindo bolsas de gravidade zero e groove 100… não precisamos de o dizer. Estiveram quase para não ser felizes (o mau êxito do primeiro álbum, lusoQUALQUERcoisa, e o ocasional disco esquecido na prateleira), mas sobreviveram a todo o terreno.

São veteranos que nunca se recostaram, é isso que são. Por isso é que, na inevitabilidade d’”O sopro do coração” (que calha no auto-rádio enquanto escrevemos este texto), não dependem do público para insuflar o momento com ventos nostálgicos. Em contraciclo à grande cantoria que podíamos antecipar, Manuela e Hélder dividem este prato típico dos Clã em duas doses: uma para a voz, outra para as cordas – uma nova confecção. Não estamos ali a mais, mas é um nadinha indiferente se cantamos ou não. O que é menos verdade para os outros temas de Lustro, o álbum de 2000 que bastaria para os consagrar. Nunca houve um dia em que “Dança na corda bamba” não desse cabo de toda a gente; “Sangue frio” é um sing-along com instruções; “H2omem” vem com coreografia na embalagem (uma fã à nossa beira parecia saber, ainda melhor do que Manuela, os passos na ponta dos braços).

20 anos depois, tantos discos volvidos, chegou Véspera, o núcleo firme do concerto no interMEDio. Sem intenções de ser profético, falava de calafrios e desvarios, antecipando algo atroz (“e não porque tivéssemos um contacto especial com o Além”, esclareceu Manuela, antes de prometer nunca mais dizer a palavra “confinamento”). Estão a ser ressarcidos da estrada que não percorreram em 2020, contaminados ainda pela energia tensional desse álbum, mais electrónico (como no ofegante “Armário”, composto por Capicua, ou no sci-fi de “Sinais”) e nu. Demasiado nu, por vezes, numa esquematização musical que parece não servir todas as canções por completo. Engraçado, portanto, que ao vivo soem completas e buriladas, cada elemento – e, muito especialmente, o técnico de som – a cumprir o seu mister, sem faltar qualquer adorno nesta caixa de palco. Até o exaustivo tema “Jogos florais” volta a florescer.



[“Eu sei que não podemos dançar, mas podemos sentir”]

A propósito: Paulo Flores proclamou Independência ao quinto dia do interMEDio, três meses após ocupar o Coliseu dos Recreios e uma semana antes de se dirigir à Festa do Avante (onde vai estar com Yuri da Cunha e Prodígio, rapper da Força Suprema, com quem gravou o álbum A Bênção e a Maldição). Fineza no guarda-roupa, o sorriso como uma luz de presença, a noite fria a correr à espera das melhores umbigadas a que um bilhete pode dar acesso – com uma banda de luxo, de que fazem parte o guitarrista Manecas Costa e o baterista Ivo Costa.

“Queria ser cantor/ Queria ser o actor principal da minha vida/ Eu queria saber o que é certo”, desabafa pouco depois do começo, no seu “Jeito Alegre de Chorar”. O que é certo é que Flores é dos maiores rouxinóis angolanos, na labuta desde os anos 80; o último álbum, editado em Maio, é uma carta aberta ao trauma que pode ser sobrescrito com a verdadeira libertação. Essa rasura demora tempo, talvez nunca aconteça – mas enrijece a ideia de que as vistas mais duras podem sempre favorecer o nascimento de arte curativa. 

“Si Bu Sta Dianti na Luta/Xica Feia”, de Independência, é uma homenagem à “condição da mulher africana e do mundo inteiro” – e do Afeganistão, como cantará Flores também, improvisando – sem poupar no detalhe e na extensão das violências a que esse mundo as sujeita. Por exemplo: “A previsão saiu errada/ A vida que não escolheu/ Às vezes leva porrada/ Mas depressa se esqueceu (…) Outr’ora foste serena / E hoje fizeram-te puta”. É  entoada a duas vozes, por Flores e por Manecas Costa (uma bandeira da Guiné-Bissau, de onde é natural, descai do braço do seu instrumento). Sem o agre dessa reflexão, ou as malambas de “Njila ia Dikanga”, o regresso tristonho à terra, a alegria podia perder contexto.

Não é o caso. “Semba Original”, em homenagem aos precursores Waldemar Bastos e Carlos Burity, explica bem o som desta riqueza negra (foi pena a embriaguez não permitir às mulheres ao nosso lado que entendessem bem a questão, bamboleando-se e gritando por alguma migalha de atenção, apropriando e desrespeitando uma cultura que claramente não entendem). “Semba original, batida de um som ancestral, que nasceu da escravatura, e é o orgulho nacional.” E se nunca viram Paulo Flores a fazer o shimmy, ou a espantar o mau olhado, não viveram ainda.

O semba transcende o rés-do-chão, chega até um qualquer sexto andar, transcende o sofrimento basilar. E esse continua sempre lá. “Sabes, pai/ Fazes-me falta”, enuncia, com o tom que negoceia entre o luto à beira do choro e a contemplação alegre, noutro momento em que a banda sai e fica apenas o “bebézinho” Kiari Flores, o filho encarregue do cajón. “Tu e todos os kotas do teu tempo/ Que se privaram por nós, para nós/ Era pra ser nós todos”. Se depender de Paulo Flores, ainda será.

Até para o ano… MED.


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