Ao segundo dia, fez-se luz no Parque da Cidade, no Porto. E não falamos só de temperaturas, obviamente. Desde o avassalador novo jazz britânico, que se mostrou em dois actos, ao irascível JPEGMAFIA, passando pelo bailante J Balvin e o introspectivo James Blake, houve espaço para tudo e todos, deixando espaço para as mais variadas leituras, porém, a mais óbvia será a seguinte: as “tribos” diluíram-se definitivamente e o colombiano provou-o sem grandes dificuldades.
Quem está cada vez mais iluminado é ProfJam. O autor de #FFFFFF, álbum de estreia que serviu de base para o alinhamento do concerto, tinha a difícil missão de tocar às 17 horas, mas, na hora da verdade, não vacilou, conquistando, canção-a-canção, o público que se ia juntando à frente do palco Super Bock.
Se está mais habituado a salas cheias e semanas académicas com milhares de jovens energéticos, a verdade é que Mário Cotrim não deixou que isso o afectasse. Nem ele nem os seus companheiros Mike El Nite e Gui, que cumpriram a missão como se o cenário à sua frente fosse o mesmo de sempre.
A actuação teve um sabor especial: aconteceu um dia depois do seu 28º aniversário, o que levou o líder da Think Music a recordar a sua passagem pelo festival, enquanto fã, a propósito da estreia em Portugal de Kendrick Lamar, em 2014. E, claro, cantou-se os parabéns.
“Gwapo”, “Tou Bem”, “Malibu” e “Água de Coco” foram os pontos altos, se falarmos na reacção do público, no entanto, “À Vontade” leva uma menção honrosa, e muito por culpa de Fínix MG, cada vez mais afiado a “cuspir”. Início de luxo “patrocinado” pelo hip hop português.
O palco Pull & Bear estremeceu ontem com as apresentações de Nubya Garcia e dos Sons of Kemet XL sob a direcção do todo poderoso Shabaka Hutchings. Dois abalos sísmicos com epicentro em Londres, mas justas réplicas no Parque da Cidade do Porto.
A abertura do palco Pull & Bear, pelas 19 horas, foi entregue à saxofonista Nubya Garcia que iniciou aí uma das melhores sequências do dia, num espaço que receberia ainda os Sons of Kemet XL, Liz Phair, David August ou JPGMAFIA e, a fechar a noite, Sophie.
Mas a ordem de entrada em cena neste palco bem que poderia ter sido diferente, já que qualquer uma das actuações presenciadas poderia facilmente ter ficado com outro horário, porventura mais nobre. Mas num festival com tamanha qualidade e diversidade no cartaz, não há propriamente horários mais e menos nobres. Quem quer de facto ver, faz por comparecer à hora marcada. E quem quis ver e ouvir Nubya Garcia não faltou à chamada.
Secundada por Sam Jones na bateria, Daniel Casimir no contrabaixo e James Beckwith nos teclados, Nubya mostrou-se visivelmente feliz por este regresso a Portugal (e que antecipa pelo menos mais duas passagens já programadas) e mostrou ter pulso firme, atitude aliás com tradução na sua postura física, com um pé atrás a suportar uma intensidade de grau máximo que emprega nos seus solos no sax tenor, plenos de técnica mas também de uma alma funda, em que se adivinha uma experiência muito distinta daquela que os novos protagonistas do jazz americano podem reclamar.
A noção de “swing”, conceito tão filosófico quanto rítmico, tão crucial na tradição do lado de lá do Atlântico, não é para aqui chamada. Nos espaços comunais dos bairros de Londres, uma artista como Nubya captou outras fundações, entre os balanços das Caraíbas, os ecos da Jamaica e a precisão digital do hardcore continuum, a saxofonista, tal como outros músicos da sua geração, moldou uma linguagem distinta que, no entanto, pode ser tão sofisticada e complexa como qualquer outra. O swing pode ter equivalente no bounce ou, simplesmente, acomodar outros “sotaques”.
E percebe-se que mesmo perante uma audiência que se encontra de pé e que não hesita dançar se a isso impelida, Nubya Garcia não cede um mílimetro na sua visão, não suaviza o seu discurso, não limita a amplitude dos seus solos. A entrega é total, intensa e ultra-séria. E merecedora dos mais veementes aplausos que, obviamente, não lhe foram negados.
Temas como “Source”, “Hold” (incluído em Nubya’s 5ive, edição da Jazz Re:freshed) e o novo “Pace” (escrito, explicou a líder, para nos lembrar que é importante, para quem vive nas grandes cidades, saber abrandar o passo) marcaram um alinhamento variado, com momentos mais reflexivos e outros de maior pressão rítmica, em que todos os músicos tiveram a oportunidade para mostrarem que são feras. Com uma líder desta estirpe, nem outra coisa seria de esperar.
Antes de sair de palco, Garcia ainda teve tempo para pedir que todos se mantivessem nos seus lugares porque os Sons of Kemet em versão XL estavam quase a chegar. O apelo, na verdade, era desnecessário já que o clima de justificada ansiedade era palpável.
E de facto, o mundo tremeu. Sob a direcção de Shabaka Hutchings, um ensemble com quatro bateristas — Tom Skinner, Eddie Hick, Max Hallet (com quem o ReB conversou há meses a propósito do álbum de The Comet Is Coming) e ainda Jon Scott — mais o todo poderoso e trovejante Theon Cross em tuba e o poeta/griot/MC Joshua Idehen, os Sons of Kemet XLforam absolutamente vulcânicos numa apresentação que não se compadeceu com o “espírito de festival” e que foi absolutamente livre, totalmente intensa e perfeitamente cataclísmica.
A ferocidade de Shabaka foi total. Com o seu tenor com som processado por efeitos, sobretudo delay, Hutchings confere ao seu poderoso tom uma dimensão cósmica, que em nada mascara a força que emprega, tanto nos solos como nos riffs, com uma linguagem que é sua, verdadeira e absolutamente livre.
Ao seu lado, os músicos também brilham: os poliritmos debitados pelos quatro bateristas são intrincados, mas também centrados, permitindo a dança tanto quanto estimulando a imaginação com mil e um detalhes absolutamente preciosos. É apenas um mutante baterista de oito braços e outras tantas pernas, de quatro cabeças e de um sem fim de origens — África e Jamaica, Cuba e Trinidad, Chicago e Andrómeda, Londres e o futuro… — que escutamos, enquanto a tuba de Theon Cross escava abismos de graves mais fundos do que o Grande Canyon e as palavras de Idehen nos incendeiam a imaginação e nos juntam num coro em que se grita a plenos pulmões “i want to take this country forward”. Impossível não acreditar.
Dizer que foi o concerto do ano, sinceramente, é dizer muito pouco. É urgente marcar o regresso desta versão XL dos Sons of Kemet, para que nos tragam a história das rainhas que são mais nobres do que répteis e mais urgentes do que nunca. Antes de sairmos todos visivelmente abananados, ainda recebemos um aviso do Rei Shabaka: “Quero que vão para casa meditar, que ensinem os vossos filhos a meditar, e que parem para pensar nas estruturas que vos rodeiam e na forma como as podem subverter”. Inspirador!
Um dos concertos mais contestados nas redes sociais foi, sem surpresas, o que juntou mais pessoas à frente do palco principal, uma evidência do fosso que existe entre o que se diz no digital e o que efectivamente se passa no mundo real. Lição a reter para referência futura.
E o que dizer do carismático cantor de reggaeton, que será o mais próximo de um Drake latino — Bad Bunny estará mais perto de PARTYNEXTDOOR do que de Aubrey Graham–, que rima e canta no meio de um espalhafato e caleidoscópico imaginário infantil com desenhos animados, mudando subitamente para momentos lascivos, e que “despacha” logo duas das suas canções mais conhecidas (“Reggaeton” e “Con Altura”, com Rosalía, que, infelizmente, não apareceu) nos primeiros 15 minutos da sua actuação? E que transforma o NOS Primavera Sound no Tomorrowland com uma remistura EDMesca do seu maior hit “Mi Gente”?
Se o povo pede, J Balvin não vai recusar. “Dios bendiga el reggaetón, amén”. E nem Ana Malhoa faltou à chamada inspirando, certamente, alguns enjoos por parte dos fãs de Nick Cave que eventualmente se possam ter sentido traídos. Ano que vem haverá Pavement, para garantir que o ADN desta Primavera continua a reter nuances do seu original impulso. Mas, a julgar pela noite de ontem, os balanços tropicais vieram para ficar…
Mesmo ao lado, o tal balanço encontrado pelo colombiano ganhou novo fôlego nas mãos de um dos DJs e produtores mais prolíficos em Portugal. Ontem, a armada nacional viu uma adição extra com a entrada de Branko no lugar de Kali Uchis, um substituto à altura que ajudou a que sentíssemos menos falta da autora de Isolation.
Completamente sozinho em palco, João Barbosa foi a todo o lado: ele é afro-house, é tarraxo, é baile funk, é zouk, mas, acima de tudo, é bom gosto na escolha de cada ritmo, de cada melodia, e de cada colaborador que escolhe para dar voz às suas produções.
Set imaculado com direito a passagens por temas de PEDRO (um dos seus “alunos” na Enchufada) ou Lura (“Na Ri Na” teve reacção instantânea — e efusiva– da audiência).
No palco principal, pouco tempo depois, James Blake servia de remédio para a azia daqueles que não aguentaram as agitações provocadas pelo colombiano.
Solene e solitário (pelo menos assim parece, apesar de estar acompanhado por um baterista e um multinstrumentista), o britânico arruma as suas mágoas em canções que deambulam entre o choroso e o catártico, sempre com a elegância que lhe reconhecemos e que certamente terá facilitado nas suas colaborações com nomes como Travis Scott (que ouvimos em “Mile High”), Beyoncé, Kendrick Lamar, Frank Ocean e Rosalía.
Se os discos (e Assume Form não é diferente) apontam para salas mais pequenas a pedir maior intimidade, o que acontece ao vivo é a demonstração de que isso não é necessariamente verdade. Blake tem canções (construções electrónicas com inclinação para o r&b menos vertiginoso e mais cerebral) que cheguem para enfrentar palcos desta dimensão, provando que não é apenas “acessório” para as maiores estrelas da pop norte-americana.
Antes da noite terminar, ainda houve tempo para mais uma sessão de porrada com a apresentação apoteótica de JPEGMAFIA, outro dos grandes momentos deste festival.
Peggy, como também gosta de ser chamado, apresentou-se sozinho em palco, com um laptopde ecrã voltado para si e para o público onde ia seleccionando beats nada convencionais, feitos de impossíveis soluços rítmicos, de ruído e de vozes gritadas, de sons que são uma espécie de detritos sonoros da nossa idade digital, de graves abismais e de tarolas cortantes, tudo programado como se o mundo se estivesse a abater a qualquer segundo. Se calhar está…
Numa entrega total, em tronco (esculpido) nu, alheio ao frio, JPEGMAFIA fez crowdsurfing, discursou, mandou bocas a James Blake — “consigo ouvir o James Blake em fundo”, disse a dada altura antes de uma imitação jocosa e de um remate apaziguador: “estou a brincar… he’s the man” — e endereçou um freestyle ao homem da Casa Branca: “when Donald Trump dies, ni**a, we gonna throw a party”. Morrissey também foi alvo de “homenagem” sob a forma de uma ultra-intensa interpretação de “I Cannot Fucking Wait Until Morrissey Dies”. #sempapasnalingua
Peggy, que parece, pela sua atitude física, um decalque do Childish Gambino do vídeo de “This is America”, e pela sua performance vocal uma espécie de Jello Biafra em esteróides, arrasou com a sua apresentação sem filtros e apenas com os strobs convenceu-nos que não é necessário qualquer adereço para dominar uma grande plateia. O reverso de uma intrigante medalha que na outra face terá o expansivo J Balvin.
No segundo dia, o NOS Primavera Sound contrapôs à tempestade da jornada inaugural, não uma proverbial bonança mas mais um conjunto de aguaceiros de talento, de força, de carisma e de balanço. Nada contra. Venha de lá a cereja que o bolo já cá canta. E dança…