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Publicado a: 06/11/2018

niLL: “A música brasileira foi sabotada”

Publicado a: 06/11/2018

[TEXTO] Núria R. Pinto [FOTOS] Filipa Aurélio e Isa Hansen

Faz agora um ano que encontrei niLL nos bastidores daquela que seria a apresentação do álbum Esú de Baco Exú do Blues, em São Paulo. Para além do próprio Baco, estavam Don L, Rodrigo Ogi, Coruja BC1, Muzzik e tantos outros numa sala que se tornava pequena demais para tanta gente e entusiasmo na mesma medida. Na época, o rapper de Jundiaí, São Paulo, já tinha lançado aquele que seria um dos melhores álbuns do ano, Regina, uma homenagem à mãe que acabara de perder e uma registo importante para a incorporação do vaporwave enquanto estilo na produção de hip hop brasileira.

A sorridente e quase infantil timidez podem ser uma pequena parte da resposta para a certificação de Davi como “gente boa”. O elogio chega de todos os lados. No entanto, o rapaz de 20 e poucos anos que se mantém junto da porta como que para não incomodar a passagem, envergando as suas já características jardineiras, esconde uma ambição e um foco que aqueles que o encontram às 7 e meia da manhã na cozinha a fazer beats podem, perfeitamente, atestar.

A receita é simples. 2018, encomendamos pizza, assistimos a episódios de Naruto, relacionamo-nos via direct messages e mensagens de voz no WhatsApp, mergulhamos na rede à procura das influências que o mercado ainda não esgotou e, de vez em quando, fazemos uma pausa para jogar Xbox. Depois basta começar a produzir a 420km/h.

Estivemos à conversa com niLL via WhatsApp sobre o seu percurso e o mais recente trabalho, Good Smell Vol. 1.

 



Acredito que sejas um dos rappers mais diferenciados na cena hip hop BR, hoje. Não existe uma prateleira onde te consigamos colocar ou, quanto muito, criaste a tua… Como é que foi esse processo até chegares aqui? Foi algo rigidamente pensando, planeado ou simplesmente deixaste que se manifestasse?

Foi uma proposta que eu já tive desde que comecei a escrever. Eu observava bastante como os meus ídolos escreviam, como eles tratavam as suas músicas. Eu gostava disso. Então quando eu comecei a criar eu já vim me preocupando em fazer algo que não desse para ser classificado. Quando eu comecei eu estava num grupo de duas pessoas, e aí a ideia convergia bastante. Então eu consegui ter essa liberdade a mais para usar minha musicalidade por completo, quando eu fui para a minha carreira a solo. Foi quando eu comecei a poder experimentar as coisas até encontrar algo que me deixasse confortável. O Yung Buda me apresentou o vaporwave bem na época em que começamos trabalhando no selo SoundFoodGang. Um influenciava muito no processo de criação do outro, né? Até as influências de cada um. Caiu como uma luva porque eu ainda não tinha encontrado ninguém no Brasil que estivesse fazendo isso, então eu pude usá-lo a meu favor. Mas foi, foi algo planejado. Desde o começo eu queria que acontecesse isso. Mesmo sabendo que o mercado aqui do Brasil não tem tanto espaço, financeiramente, para uma proposta nova. Mesmo sabendo que o que leva mais vantagem na nossa cena são os rappers genéricos, o que está mais bombando ultimamente. Mesmo sabendo tudo isso, eu quis apostar. Porque era um feito, uma vontade de realizar essa sonoridade, de reproduzir essa sonoridade. Então era como se fosse realizar um grande feito.

Imagino que as tuas influências, aquilo que tinhas à tua volta não fosse apenas o rap tradicional, nessa tentativa. O que é que te rodeava?

Dentro de casa eu não tive influência musical. O meu tio é que me apresentou o rap mesmo. O rap mais anos 90, bem tradicional, como a gente conhece. Foi a época do Sabotage, do Racionais, do RZO… Ele me mostrou essa parada e foi me mostrando até uns bagulhos anteriores, Conexão do Morro, Consciência Humana, essas paradas assim mais antigas. E eu fui ter contacto com outros leques musicais quando eu comecei a sair para a rua. Em outras escolas eu conheci uma molecada que gostava de um rock, sacou? Gostava de um Nirvana, por exemplo. Aí o moleque falava muito das histórias do Nirvana, do Kurt Cobain e aí eu fui gostar do grupo e depois conhecer a música. Tive muita influencia do rock quando saí para a rua. Eu comecei a descobrir o universo que que eu gosto, que eu ouço, depois dos 18. Comecei a ter acesso à Internet, os amigos mandavam umas músicas, nos fóruns… Então eu tive uma influência forte da minha musicalidade depois de velho já. Se eu fosse colocar as minhas influências na infância, sim. O rock e o rap das antigas. Depois é que eu fui ter acesso às coisas que ouço hoje. Tyler [The Creator], por exemplo, só fui ter acesso depois de velho.

Falaste na questão do mercado não ter espaço para uma cena nova como a tua.  E depois falas deste espírito rock, Nirvana e deste momento de revival dos 90s que diz muita a essa geração que te ouve. Pode estar aí parte da resposta ao teu reconhecimento?

Então, eu tenho uma teoria. Eu até já li algumas coisa sobre… É assim. A música brasileira, a cultura, foi sabotada. Mas eu faço música então eu posso falar da minha área. A música brasileira foi sabotada. No período em que artistas, atletas aqui do país, estavam se destacando lá fora, né? Igual a Carmen Miranda, por exemplo. Isso daí começou a assustar e enfim… Tem uma história gigante por trás disso aí. Mandaram um grupo de produtores aqui para o Brasil para sabotar a cultura, sabotar a música em principal. Com isso muita coisa já foi crescendo junto com a cultura do povo. Que é o lance da música ruim. Foi sempre o bagulho que mais vendeu, que atacou todas as classes, dos mais velhos aos mais novos… Todo o mundo ouvia É o Tchan, por exemplo. E É o Tchan foi uma dessas massas de manobra. Então isso daí já foi enraizado com a cultura. Até dentro do rap mesmo. Tem umas paradas que não é tão coerente, a musicalidade às vezes soa bem só que não tem conteúdo e essa música vais mais adiante, tem mais alcance, tem mais destaque do que uma música de um cara que passa uma mensagem, que fez a musicalidade de outra forma, sacou? Então a gente tem esse impasse histórico. Acredito que por causa disso seja difícil aplicar um método novo, uma linguagem nova. Só que a gente está tendo essa abertura. O público vem crescendo, o público que já era do rap antes está a ficar amadurecido, tem público que chegou novinho e já está crescendo mais ainda, tanto a mente como as ideias de música. E têm acontecido algumas coisas na cena que foram importantes para isso também. Que deixou de lado o que é normal e olhou para coisa com outra proposta. Só que mesmo assim ainda tem o lance cultural, aquela parada que a gente falou no começo. Aquela dívida histórica cultural que a gente tem. A pessoa demora para entender a proposta. Primeiro vai ouvir e falar: “Que porra é que é essa?” Aí depois vai ouvir de novo e falar: “Nossa, eu acho que eu gostei disso. Isso me lembra algo”. Aí vai ouvir de novo e vai começar a entender as características uma a uma. Até entender a obra como um todo isso leva um tempo, né? Coisa que a gente observa que no mercado internacional já não rola. Tem justamente os caras que são absorvidos por serem diferentes. Necessariamente por serem diferentes, entendeu? E as pessoas que dominavam a cena também apoiavam isso, encorajavam os artistas que estavam com novas ideias. Encorajavam os caras para estar junto deles e aí o público deles ainda não está acostumado mas como viu ele com um cara novo, já dá uma credibilidade. Tem um nome por trás ali indicando. Aqui no meu país eu simplesmente não posso ainda ligar a máquina ao máximo assim, né? Ir directamente lá para o futuro. Porque não convém. Acho que a gente tem que respeitar uma linha de tempo… Tanto para as pessoas irem entendendo aos poucos, o público ir evoluindo aos poucos. Eu quero ir ensinando o que eu sei, mostrando a minha musicalidade aos poucos para o público entender que tem uma musicalidade diferente aí que é da hora.

No final eu acredito que por ter sido uma proposta diferente que estava faltando, no nosso período musical, teve essa brecha aí. Por onde eu me infiltrei…

O que é que tu sentes que se vai somando aos vários niLLs deste o teu primeiro EP? O que é que foste levando de cada um para chegarmos até aqui, até Good Smell Vol. 1 inclusive?

Foi baseado em bastante pesquisa. Então eu fui descobrindo várias coisas e agregando. No Negraxa, por exemplo, foi quando eu descobri o vaporwave e ali era bem o início dessa trajectória. No Regina já foi quando eu incrementei o lo-fi junto nesse compilado. E agora na Good Smell eu concentrei ele mas já só foi numa dose menor, em poucas músicas. E aí no próximo trampo já vou trazer outra parada que eu já vim descobrindo há um tempo, vai ser diferente dos antepassados dele. Mas o que eu fui acrescentando foi a experiência musical. A cada temporada descobri uma sonoridade que possa ser encaixada na trajectória. Eu acho que a cada temporada eu me apeguei numa sonoridade nova. Talvez deva ter sido isso!

Em termos daquilo que foste explorando nas temáticas, para quem não te conhece, que niLL vai encontrar?

No primeiro você vai encontrar um niLL mais autobiográfico mas com uma visão em relação a ser um garoto negro numa sociedade branca, digamos assim. No segundo, você vai encontrar o mesmo garoto negro, mostrando para a mãe, mostrando para a vida como as coisas estão actualmente. Um niLL desabafando, mais aberto… Agora no terceiro você vai encontrar um niLL mais autoritário e mais maduro.

 


“Eu achei melhor fazer uma parada que fosse representativa para alguma classe, alguma classe social. E eu acho que por você trabalhar com mulheres na música acaba ficando um tom de relacionamento amoroso, saca? Se você está trampando com a mina é porque está sempre acontecendo uma coisa entre vocês. Algumas das vezes nem é bem isso que funciona, né?”


Em relação ao Good Smell, é também um álbum muito particular. Escolheste dar nomes de mulheres às músicas, só tens participações femininas… Conta-me um bocadinho a história por detrás disso.

Eu tive o intuito de fazer ela menor para ser um processo mais rápido, para não tomar muito tempo e eu conseguir trabalhar nas coisas novas. Aí eu consegui anexar uns instrumentais que eu tinha e teve a colaboração do Tan Beats, também. Eu achei melhor fazer uma parada que fosse representativa para alguma classe, alguma classe social. E eu acho que por você trabalhar com mulheres na música acaba ficando um tom de relacionamento amoroso, saca? Se você está trampando com a mina é porque está sempre acontecendo uma coisa entre vocês. Algumas das vezes nem é bem isso que funciona, né? Mas acaba sendo uma notícia bem chocante na hora em que você solta na rede que que trabalhar com uma mulher, acaba sendo chocante tanto para as pessoas que estão a seu redor… Se tiver esposa, ou assim, para os seus amigos, às vezes. Até para as pessoas que te acompanham. Mas se você lançar uma notícia que vai trabalhar com um homem, se ele não for inimigo de alguém assim do seu círculo de amizades [Risos], todo mundo vai achar normal, ninguém vai comentar nada, sacou? Então eu acho meio complicado isso daí e quis tentar trazer essa abordagem no contexto do disco. Então eu chamei umas garotas que eu conheci na Internet, que não eram muito conhecidas também e que faziam o corre independente, né? E quis colocar elas para trampar junto para as pessoas verem que quando se junta um homem e uma mulher para fazer uma música, só tem como a sonoridade ganhar. A sonoridade evolui. Não tem como a gente colocar empecilhos nessas paradas, só deixar evoluir e pronto. Então foi esse o intuito do trampo. E escolhi os nomes das músicas de acordo com personagens icónicas tanto da vida real como de um anime que eu gosto.

Muito obrigada por fazeres referência a isso porque ainda se põe essa hipótese de estar uma mulher no estúdio e existir sempre 50% de probabilidade de estar envolvida com alguém, né? Como é que chegaste até estas MCs que trabalharam contigo?

Bom, eu conheci a Callíster pelo Twitter, vi uns trampos dela no YouTube. Era uma voz que eu já estava procurando. Conversei com ela no Twitter e ela já conhecia o meu trampo, também, então foi mais fácil para a gente comunicar. A Nika eu conheci pelo Instagram. De alguma forma a minha música chegou até ela, ela veio trocar uma ideia e a gente conversou sobre os trampos e foi fácil. Ela conseguiu gravar rápido. A Normal Gene, o Chinês estava pesquisando uns artistas novos e conseguiu encontrar ela. Ele me apresentou o trampo dela, me apresentou ela também. Aí eu mandei as bases e ela escolheu e gravou uma. Gravou rápido, também. A Natache foi o Ramiro, que mixou e masterizou o disco, que me apresentou. Ela é da área dele, Volta Redonda, e ele chamou ela para gravar umas vozes para o refrão e eu curti. E ficou esse time aí!

E já que falaste ali no anime, um imaginário que está muito presente nos teus discos, que porra é essa de Lua Vermelha? [Risos]

[Risos] A Lua Vermelha é um jutsu que é utilizado no Naruto, mesmo, os poderes deles chamam de jutsu! E há um poder que deixa a Lua Vermelha e todo o mundo que olha para a lua cai num mundo de ilusão, né? Adormece e aí nesse mundo acontece tudo o que você queria que acontecesse na vida real! E aí você não consegue distinguir que está num mundo paralelo nem nada… Você só cai na realidade e vive a parada. E é um dos mais poderosos que apareceu até então no anime! Eu acho da hora ligar isso aí porque para a gente que assiste, e eu assisto desde pequeno, só agora acabei  pegando umas referências que dá para usar na vida real, sacou? Que faz total sentido na vida real. E por ser uma parada meio infantilizada, às vezes a gente não leva a sério. Não compreende a mensagem. Só que tem um fundamento ali. Acabou de calhar super bem, com a música, né? Dá para criar um universo ali, um universo na sua música, na suas obras, e a gente usou do que a gente gosta.

Bateste aqui nesse ponto que também me intriga. Há um lado muito infantil no teu trabalho que contrasta depois com a maturidade do pensamento e das letras…

Pois é, pois é. É um contraste, né? É uma caixa de surpresas… Aparenta ser algo e na hora que você abre tem outra coisa dentro.

Tu és um filho da Internet e muito do que te diferencia nas letras é não só capturares bem essa ideia do que é viver em 2018 mas também como é relacionares-te sempre mediado por um ecrã, uma aplicação, uma coisa virtual, estranha! [Risos] Como é que lidas com isso?

Você colocou bem essa posição aí, né? Porque essa geração é basicamente de filhos da Internet. Na verdade eu nem tinha percebido, nem percebi quando chegou até mim! Na infância a gente se relacionava na rua e tudo mais. Se fosse conhecer uma mina seria num baile, em algum bagulho assim, na escola, no parque. Agora não, né! Você consegue conhecer uma mina de outro estado! Geralmente acabando conhecendo uma pessoa que está morando até na capital, por exemplo, e a gente aqui no interior. Então você acaba se relacionando mais com pessoas de fora. Sei lá! Acabou acontecendo isso daí, mano, do nada! Eu nem percebi essa parada! [Risos] Eu me vejo nesse meio termo aí. A gente não inicia mais o relacionamento como se iniciava antes. Agora tem um outro caminho que se percorre também. Não que seja uma parada satisfatória, que eu acho assim “Maneiraço!”, né? [Risos] Mas acaba acontecendo!

Também sofres de ghosting, esse mal do século XXI? [Risos]

Depois do último até agora nada! [Risos]

 


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