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Publicado a: 26/09/2017

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[TEXTO] Núria R. Pinto

Este mês, a Primavera chegou, como sempre, quente a Salvador. Aliás, São Salvador da Bahia de Todos os Santos. “Cidade de tanta glória”, “Capital da Alegria”, “Roma Negra”. Centro da cultura afro-brasileira, Salvador é a terceira maior cidade do país e a primeira no mundo em número de descendentes africanos. A seguir, só Nova Iorque. Carnaval? O maior do mundo. Axé, pagode, forró, arroxa, samba. Estranho seria se toda esta comunidade, de origem maioritariamente Iorubá, não fosse dínamo de referência cultural, gastronómica e musical para o resto do mundo.

Para os menos familiarizados com o som que nos chega do Brasil ou com os seus tentáculos étnicos e religiosos, talvez se possam trazer referências mais consensuais na Europa. A dupla franco-cubana, Ibeyi, por exemplo, trouxe o Iorubá para as suas letras, em paralelo com o inglês e o francês. Baptizado em Cuba de Lucumí, o dialecto nigeriano-congolês atravessou o Atlântico na mesma caravela que transportou todas as religiões de matriz-africana para o Novo Mundo, incluindo o Candomblé e dois dos seus 600 Orixás. Ibeyi e Esú, portanto.

Revelar o que se pode ouvir no novo Esú do rapper baiano Baco (Exu do Blues) nunca poderia ser uma tarefa bem sucedida sem a devida nota prévia. Isto porque, em pelos menos metade da obra, são essas mesmas referências conterrâneas da escrita de Jorge Amado ou da música d’Os Novos Baianos, o apelo à negritude sonora de Chico Science, Nação Zumbi ou Tim Maia e todas as evocações religiosas que definem a cultura ancestral de um povo em oposição ao que lhes foi imposto durante séculos, que dão corpo a um álbum inédito e que é já um marco do hip hop nordestino. Digo metade, sim, pois a outra é construída em cima da premissa mais sensível e comum que pode existir: a vulnerabilidade de/do ser humano.

 



A sonoridade geral de Esú é apresentada na primeira faixa em 3 pontos chave. A introdução, narrada por Paulo Roberto e presente na colectânea Obaluayê! da Orquestra Afro-Brasileira (1957), introduz os ritmos africanos ao mesmo tempo que os scratches de KL Jay (Racionais MC’s) cortam as rimas que se soltam por cima de um cântico sagrado constante. Esú é hip hop, afro e o divino. Um choro de homem à procura do seu lugar entre os outros homens e os deuses.

“Pretos de terno sem ser no emprego / Meus pretos de terno em festas que não sejam enterros” ou “Dá licença deixa o karma da cena passar / Não entra na roda punk sem pedir pra Exu / Não entra no mar sem pedir pra Iemanjá / Desrespeite a fé dos pretos, saiba porque eu sou Exu” marcam o tom em “Intro” e “Abre o Caminho”. A linguagem é constantemente crua, apesar das referências que muito devem ao intelecto, quer falemos de racismo, preconceito, depressão ou sexo, os pontos mais marcantes da esfera humana de Esú. Lembrando que Baco chegou com “Sulicídio” em 2016, a faixa que iria marcar um ponto de viragem no hip hop brasileiro actual, para se inconformar contra a desvalorização do norte em relação ao sul, por parte de artistas e indústria. O reflexo é sociológico.

Antes do lançamento do álbum, Baco deixou cair “En Tu Mira”, uma faixa trap melodiosa que viria a ser a quinta no alinhamento. O sample de “Tu Mirá” da dupla sevilhana Lole Y Manuel dá corpo ao desespero de um MC que se afoga na pressão para mostrar o seu trabalho, executá-lo na perfeição e corresponder às expectativas de todos à sua volta, de si próprio e do Deus que tanto venera. “Minha raiva está me matando / Sua expectativa em mim, está me matando / Homem não chora, foda-se, eu tô chorando / Onde eu guardei o cano?”

 



“En Tu Mira” viria a ser um dos três momentos mais importantes de Esú, ao lado das faixas “Esú” – imediatamente anterior – e “Te Amo Disgraça”. Na faixa-título, Baco revela a dualidade constante entre força e fraqueza, perfeição e imperfeição. Segundo as suas palavras, “Deus só tem forças se a gente acreditar nele, e a gente só tem força se acreditarmos em si mesmo. Então, nós somos deuses”. O pensamento fá-lo alternar entre esses dois pólos de forma constante: “Sinto que os deuses têm medo de mim / Medo de mim / Metade homem, metade Deus / E os dois sentem medo de mim.” De novo, o sample em filigrana d’Os Novos Baianos, traz à faixa uma elegância e um tom leve, quase aéreo, que vem a relevar-se uma constante até ao final do álbum.

“Bebendo vinho / Quebrando as taça / Fudendo por toda casa / Se eu divido o maço, eu te amo disgraça” abre a faixa “Te Amo Disgraça”, aquela que mais sucesso teve desde que o álbum foi lançado, a 4 de Setembro. A forma directa e crua como Baco descreve o relacionamento que vive, sem acessórios, metáforas ou eufemismos, encontrou espelho naqueles que o ouvem.

A referência a uma balada de Fagner – o cearense que traduziu para português o êxito “Burbujas de Amor” de Juan Luis Guerra, por exemplo – vive ao lado de um sample de “Senta Aqui” de MC Duzinho, mostrando que os relacionamentos, na maior parte dos casos, são sempre bem mais complexos do que o que as músicas tendem a cantar.

 



Ouvir Esú é muito mais do que uma – incrível – experiência auditiva. No YouTube, o rapper lançou todas as faixas acompanhadas de referências visuais poderosíssimas captadas pelo olho do fotógrafo Mário Cravo Neto e compiladas no livro Laróyè. A capa, inclusive, foi apresentada dias antes e recebida com aplausos por fãs e artistas ao atacar pilares religiosos dominantes.

Mais do que um álbum, Esú é uma peça fundamental para a compreensão da cultura baiana e afro-brasileira, uma nova página para os rappers do nordeste e norte do Brasil e uma ode ao lado mais emocional, frágil e vulnerável da existência humana. “O disco do ano”.

 


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