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Publicado a: 05/11/2018

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[TEXTO] Núria R. Pinto [FOTO] Isa Hansen

Todas as gerações têm os seus futuristas. Os seus Almada Negreiros, Machados de Assis e Kanye Wests. E mesmo que a história não lhes tenha atribuído, explicitamente, uma prateleira com essa categoria, conseguimos percebê-lo pela vontade comum em “fazer algo diferente do que foi feito até hoje”. Uma espécie de impulso aquariano que faz com que percam o interesse caso alguém ouse aproximar-se. A parte boa, para nós que ouvimos, essencialmente, é que são raros aqueles que ousam chegar lá e, assim, vimos nascer as prateleiras em nome próprio onde todos os outros se começam a encaixar.

Quando Fernando Pessoa foi abordado pela Coca Cola, em 1927, para criar um slogan que servisse a mais popular bebida do mundo, chegou com a frase “primeiro estranha-se, depois entranha-se”. Chegou a ser censurada porque muitos a associaram ao consumo de drogas mas a expressão era de tal forma simples e objectiva que, 91 anos depois, ainda a usamos para definir algo que nos conquista ao nível do açúcar. O cheirinho bom talvez venha daí.

 



Good Smell Vol. 1 é o terceiro trabalho de um outro futurista. niLL, o rapper de Jundiaí (São Paulo), ofereceu-nos Regina em 2017, uma obra-prima do vaporwave que se inicia ao som de uma Xbox 360 e nos conta uma história de luto e alegria pop em samples de David Bowie e áudios de WhatsApp. Victor Xamã, De Leve, Rodrigo Ogi, Makalister e Yung Buda nas participações, naquele que é já um clássico do hip hop brasileiro.

Em Agosto, Good Smell Vol. 1 chegou em formato de mixtape e a escolha percebe-se, rapidamente, acertada. Num registo mais leve e experimental do que o antecessor, Good Smell Vol. 1 não deixa de ser menos interessante por isso. Na verdade, Nill consegue superar-se dentro do próprio género e isso é o que se pede – no mínimo – de um artista que nada no seu lago muito único. Acabou por lhe valer mais um trabalho incrível e a certeza do reconhecimento dos pares.

Música de elevador para fãs de MF Doom. Que fique claro que estamos a falar de um rapper que já samplou Jackie Chan no seu álbum de estreia, em 84. Alguém sabia que o Jackie Chan tinha tido uma carreira como cantor? É que eu não fazia ideia mas o senhor já vai em 12 álbuns e um é de 2018.

 



Em Good Smell Vol. 1, niLL supera-se em três pontos essenciais. A maturidade enquanto produtor e o controlo que tem sobre o vaporwave, e a forma como o modela com outros estilos. E isso não só se revela ao longo da mixtape de forma mais consistente mas também na forma como niLL tem vindo a recuperar a mesma faixa ao longo de todos os trabalhos. Deu-nos “Atari“, “Atari Level 2” e “Atari 0.3” em três álbuns diferentes e mostrou como se criam versões para uma mesma faixa e se mostra a crescente evolução num domínio estético. Poderia dizer-se que quem quiser fazer uma leitura (muito) na diagonal de niLL, dá para ouvir em cada uma delas.

Depois, na forma como, mais uma vez, aborda os relacionamentos em 2018. Uma entrada mais profunda num universo de “Jovens Telas Trincadas“, o que em português de Portugal seria algo como “Jovens Ecrãs Partidos”.
“Jovens telas trincadas como suas relações/ um milhão de plano para preencher seus corações”. A faixa do álbum de 2017 dá o repto para a temática de Good Smell Vol. 1, onde relacionamentos amorosos interagem e interferem com a ascensão de um MC a reclamar o seu lugar na indústria, num período de visível maturidade e sem falsas modéstias. Faixas como “Hiromu”, “Alluka” ou “Bessie Coleman” trazem à mixtape uma carga de sensualidade nipónica, digna de uma cena de lounge de hotel em ’96. Aliás, experimentem ouvir/ver a mixtape no YouTube. Juro que tive momentos em que questionei a minha sexualidade.

Ainda ao nível do inédito, a escolha em nomear as músicas exclusivamente a partir de nomes de mulheres e chamar para as participações em Good Smell Vol. 1 apenas mulheres, também. Hiromu Arakawa (mangaká japonesa criadora do manga Full Metal Alchemist), Tarsila do Amaral (pintora brasileira modernista criadora do movimento antropofágico), Alluka Zaoldyeck (personagem transgénero do anime Hunter x Hunter), Aqualtune (princesa africana filha de um rei do Congo e apontada como avó materna de Zumbi dos Palmares), Octavia Butler (escritora afro-americana de ficção científica) e Bessie Coleman (primeira mulher afro-americana a tornar-se piloto no Estados Unidos) fazem-se presentes.

Para as participações, Nill chamou a búlgara With Love Nika, a norte-americana Normal Gene e as brasileiras Natache e Callíster e mostrou que é possível, sim, criar um álbum internacional à distância de uma direct message a partir de Jundiaí, onde o português e o inglês se fundem tão perfeitamente que seria difícil imaginá-lo de outra forma.

Por fim, e tentando só jogar um pouco de lenha na fogueira já que às vezes faz falta, espero realmente que aquele sample da “Mardi Gras” do Lonnie Liston Smith em “Alluka”, uma versão jazzística norte-americana de um samba carnavalesco, seja uma ironia directa às vozes que, no início do ano, tentaram censurar o artista caracterizando o seu som como “Música Brasileira Anormal”. É que para Nill, anormal é elogio. Sejamos mais.

 


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