Existe um problema óbvio na formulação de listas de melhores do ano: é impossível ouvir, reflectir sobre e absorver os milhares de discos que saíram e deles retirar o crème de la crème. Provavelmente seria preciso uma década para dissecar convenientemente um ano inteiro, mas também é verdade que as selecções que se fazem (e que fazemos por aqui) são, mais do que uma verdade definitiva sobre o todo, uma fotografia daquilo que quem fez as escolhas ouviu e gostou. Com tudo o que isso implica.
Nesta última reflexão a respeito do ano passado, escolhemos três critérios simples para balizar e irmos directos àquilo que nos interessava: todos os projectos teriam de ser de mulheres, teriam de ter saído entre 1 de Janeiro de 2020 e 31 de Dezembro de 2020 e, claro, teriam que ter ficado de fora, por alguma razão, dos balanços nacional e internacional do Rimas e Batidas já publicados.
A recolha final reúne 15 obras (em grande parte criadas por autoras negras) que vão do rap cru e desbocado a diferentes variações do r&b, passando ainda por cadências afro e experimentações dentro e fora dos campos anteriormente mencionados.
[Nenny] Aura
Parece já ter passado uma eternidade desde que Marlene Tavares ofereceu sem medos uma pratada de “Sushi” ao rap português. Depois dessa entrada estrondosa, o que se seguiu não foi menos barulhento, com singles como “Bússola”, por exemplo, a ultrapassar as 10 milhões de visualizações. Um fenómeno juvenil (e sério) que surfou nas costas da “família” Wet Bed Gang, para apanhar as suas próprias ondas e transformar-se numa das grandes promessas da música portuguesa.
Aura não é um trabalho definitivo (seria estranho se Nenny conseguisse isso ainda antes de fazer os 18 anos…), mas está cheio de bons apontamentos: das acrobacias rap em “21” e “Sushi” ao afro pop de “Lion” e à desarmante “Dona Maria”, existem razões mais do que suficientes para se esperar mundos e fundos da nova coqueluche de Vialonga. Uma autêntica estrela pop em bruto.
– Alexandre Ribeiro
[Cíntia] Gyals And Gyals
Não deixa de ser curioso (e sintomático de algo que talvez só consigamos perceber mais tarde…): tal como a “filha dos filhos do Rossi”, ambas surgiram em 2019 — e nenhuma delas ainda era adulta –, Cíntia teve impacto imediato quando se apresentou com “Grana”, tema que mereceu uma remistura major de Mishlawi.
Com instrumentais de nomes como Holly, Beatoven, Franklin Beats ou Steverawd, a rapper de Apelação, em Loures, é atitude dos pés à cabeça, roubando automaticamente as atenções quando se aproxima do microfone. Uma “shooter” a apontar para grandes palcos como, quem sabe, o da próxima edição do Afro Nation.
– Alexandre Ribeiro
[Joana Guerra] Chão Vermelho
É fácil derrapar no Chão Vermelho de Joana Guerra (um disco que nasceu do título, como contou a Gonçalo Frota do Ípsilon). Por baixo duma pesada crosta – onde o barro e o sangue menstrual cristalizaram à vista de todos –, as cordas em espiral compõem um movimento tectónico. Esta música late, sua e pontifica, entre declínios atonais e o tipo de melodia lúgubre e distendida que cairia igualmente bem a Ana Deus.
A vertigem deste álbum – um triunfo de autor e uma dissertação em design sonoro – encontra o seu ponto máximo em “Lume”. O lamento perdido de quem quer saber, apenas saber, quando todos os caminhos se entretecem num uivo vindo da víscera.
– Pedro João Santos
[Armani Caesar] The Liz
Está longe de ser uma novata — em 2009 lançava a mixtape Bath And Body Work –, mas só no ano passado conseguiu atingir aquilo que ia prometendo a espaços: THE LIZ é uma portentosa estreia de Armani Caesar pela Griselda Records, que se rodeia da invencível tríade Benny-Conway-Westside e de produtores como DJ Premier, Camouflage Monk, Animoss ou STLNDRMS para mostrar que há ainda mais talento do que se pensava em Buffalo, Nova Iorque.
“Ain’t no rap bitch gon’ check me, period”. Palavra de Armani.
– Alexandre Ribeiro
[KeiyaA] Forever, Ya Girl
O que separa uma inquilina à beira do despejo de uma autora aclamada de soul? Talvez a oportunidade de ser ouvida. KeiyaA ascendeu com Forever, Ya Girl, álbum que a Pitchfork condecorou no seu lançamento. Não se tratou de uma explosão com o volume de SZA ou Ari Lennox, talvez por ser uma criadora mais fugidia — alimenta a sua tapeçaria sónica com samples, modulações subtis mas titilantes, um espírito de vanguarda.
Nunca é encaixotável: o que se anuncia como r&b amniótico rapidamente se incendeia: sons oblíquos, mas ritmados com atitude, como na brevíssima “Way Eye”, a maior aproximação a um êxito. Vai beber a Erykah Badu na era Worldwide Underground e da honesta voracidade de Janet Jackson em The Velvet Rope; brinda-nos com uma cascata de hooks, que promanam tanto de frequências vaporwave como de melodias cerradas.
– Pedro João Santos
[Kianna Camille & AJ Rios] Ultraviolet
O piano segue um passeio delicodoce, a voz feminina paira a seu par, uma paixão assume-se. “Your Love”, a primeira faixa de Ultraviolet, propõe-se roubar 64 dos vossos segundos de vida: a melodia nascente corta a bruma lo-fi e inventa o dia novo. Ainda ouvimos o músico AJ Rios pedir o segundo verso à cantora e letrista Kianna Camille, mas outros voos esperam-nos.
Com uma média de menos de 1000 ouvintes no Spotify, este é r&b num ápice de suavidade cruzada com honestidade dura – não espanta o sample de Solange em “Luvme” ou o estilo Jill Scott em “Ride “. Uma viagem por uma relação tóxica que, sonoramente, parece sufocar tal e qual como lençóis de flanela.
– Pedro João Santos
[CHIKA] INDUSTRY GAMES
É preciso saber-se mexer nos “jogos da indústria” musical para estar na playlist de Verão de 2020 de Barack Obama ou para integrar a lista de nomeados para Melhor Novo Artista nos GRAMMYS, mas a verdade é que CHIKA nem precisaria disso para se afirmar como uma das vozes mais vibrantes e imponentes dos meandros do rap e r&b. O seu EP de estreia é uma montra para essas capacidades inatas de nos prender à cadeira, cada vez que agarra o microfone. E não tentem desviar-lhe o olhar da coroa: ela já vai a caminho de apanhá-la, com ambições de fazer algo grandioso.
– Alexandre Ribeiro
[Yazmin Lacey] Morning Matters
Rodeiem uma voz como a de Yazmin Lacey de nomes como Moses Boyd, Craigie Dodds, Sarah Tandy, Marla Mbemba ou membros dos Ezra Collective (Femi Koleoso e Ife Ogunjobi) e terão certamente um trabalho bem-conseguido. As manhãs importam e as vibrações jazz e soul que Lacey emanam deverão ajudar qualquer um a levantar-se da melhor maneira. A refeição mais importante do dia está aqui, acreditem.
– Alexandre Ribeiro
[Ojerime] B4 I Breakdown
A indústria musical é um bonito berçário, onde os novos talentos se deitam em finas camas de marfim: caninos e incisivos. Mastigada antes de se tornar uma estrela, Ojerime viveu a história para agora a contar.
Depois de um esgotamento mental, a inglesa mudou e o seu r&b passou de vívido e exploratório a obscuro e retraído. B4 I Breakdown é indulgente mas sem delongas, 28 minutos que se aproximam daquela quimera: “o que faria hoje Aaliyah?” (embora o timbre esteja mais entre Aluna Francis e Santogold). Um som turvo, entre o calor de “Give It Up 2 Me” e o vazio d’alma de “Tangerine Dreams”.
As segundas vozes são fantasmas a reverberar numa câmara escura; pelo orifício, só se vê fumo e obsessão. O amor e a intimidade de Ojerime são como cheques que assina, ciente de que não terão cobertura tão cedo — mas insiste neles, acalentando a esperança que talvez nunca venha.
– Pedro João Santos
[Rico Nasty] Nightmare Vacation
A bonança no centro da tempestade. O cor-de-rosa em cima do preto. A gritaria no meio de um SPA. Nightmare Vacation é o trap açucarado de Rico Nasty na sua vertente mais pop (ou hyperpop). Música para partir tudo o que está à vossa volta e dar um abanão com “raiva negra” para “começar tornados” em todo o lado. Um pesadelo que não queremos que acabe…
– Alexandre Ribeiro
[Backxwash] God Has Nothing To Do With This Leave Him Out Of It
Chamar bruxa a Backxwash é o melhor elogio que lhe podem fazer. Em God Has Nothing To Do With This Leave Him Out Of It, o surpreendente projecto que conquistou o Polaris Music Prize de 2020, a artista canadiana usa a sua magia para conjurar uma série de encantamentos que, por vezes, vão buscar energia a música de Led Zeppelin, Patti Smith e Black Sabbath para criar autênticos furacões de horrorcore. Um álbum importante de uma autora obrigatória no panorama actual.
– Alexandre Ribeiro
[Demae] Life Works Out... Usually
A vida cá dentro, lá fora, gravada dentro de um quarto (ninguém diria): Life Works Out… Usually. Não só frequentemente, mas sempre, no caso deste que é o primeiro curta-duração de Demae, uma caixa de ressonância de descobertas suaves. O som vai mais pela síntese do que pela invenção: uma espécie de estado da arte sobre o r&b enquanto canal para a iluminação pessoal.
Com toques de Lianne La Havas (“Basic Love”), tiques de Jill Scott (“Stuck In a Daze”) e pinceladas de Raveena nos seus máximos de moderação (“Seasons Change”), a viagem ao centro de Demae alisa os falhanços e vê as deambulações como algo teleológico. Que fim têm, então? “My discovery of self/ understanding that I can never change the past”. A música do noroeste de Londres entendeu isso, quiçá, demasiado bem: o passado, mesmo recente, já é pedra assente. Resta criar novas possibilidades com o que já se tem. A ver vamos.
– Pedro João Santos
[Ivy Sole] SOUTHPAW
De luvas calçadas, Ivy Sole mostra-nos a cara e a atitude de uma guerreira. É a primeira acepção que tiramos quando olhamos para a capa, uma foto sua que está desfocada, mas não é só aí que lhe percebemos o valor para o confronto. Em “SOUTHPAW”, por exemplo, atira uma linha que serve de gancho para arrumar qualquer adversário no primeiro assalto: “I could reduce you to dust for my vinyls”. A artista (nascida e criada em Charlotte mas a viver actualmente em Filadélfia) agradará certamente a fãs de Little Simz mas também de The Internet ou Solange, por exemplo, com 20 minutos de consolo para quem precisa de bater no saco e, logo a seguir, encontrar conforto em música que atenua ansiedades.
– Alexandre Ribeiro
[H31R] ve·loc·i·ty
JWords manda um pacote de beats para maassai, que escolhe os menos “quadrados” para rimar. Esta é a maneira de se fazer um disco à H31R, dupla que uniu as pontas entre Brooklyn, Nova Iorque, e Union City, Nova Jérsia, para definir uma velocidade musical muito própria que é rap no coração, jazz na alma e electrónica nas extremidades. Ansiedade, isolamento e paranóia são palavras-chave para se entrar no universo temático da rapper que não se coíbe de viajar nos instrumentais que podem ir de algo que Flying Lotus criaria até cenários onde Azealia Banks se perderia.
– Alexandre Ribeiro
[Liv.e] Couldn’t Wait To Tell You...
Ter um co–sign de Erykah Badu há-de sempre valer algo, por isso é por aí que começamos: a apresentação online do álbum de estreia de Liv.e, Couldn’t Wait To Tell You…, que foi gravado no Inverno de 2018, teve a autora de Mama’s Gun como anfitriã. A neo-soul é mais espírito do que propriamente outra coisa e a voz de Olivia Williams parece apenas mais um rio que desagua num profundo mar de psicadelismo, r&b, soul, jazz e rap. Fácil perdermo-nos a nadar nestas águas…
– Alexandre Ribeiro