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Texto: ReB Team
Ilustração: Riça
Publicado a: 19/01/2021

De Bad Bunny a Emma-Jean Thackray.

Os melhores álbuns internacionais de 2020

Texto: ReB Team
Ilustração: Riça
Publicado a: 19/01/2021

Fora de portas, há três nomes que se repetem nesta lista: The Alchemist, produtor que anda há 25 anos a dar-nos beats memoráveis, Pink Siifu, artista multifacetado que tanto nos grita como nos embala, e Sault, a banda-mistério que mete a música e a intervenção à frente de tudo o resto. A Griselda também se faz representar por Conway The Machine e Westside Gunn.

Da Angola (via Hyperdub) de Nazar ao Porto Rico de Bad Bunny; do espectro do rap americano que vai de Aminé a MIKE, de Apollo Brown & Che’ Noir a Freddie Gibbs, Ka e Fly Anakin; das vozes que enfeitiçam de Giveon, Chloe x Halle e Dua Lipa às explorações a partir do jazz de Emma-Jean Thackray, Jeff Parker, Shabaka and the Ancestors, Nubya Garcia e Tom Misch & Yussef Dayes; são, ao todo, 37 trabalhos que se impuseram na agenda de 2020.

Não é um retrato definitivo, como nenhum pode ser, mas é uma amostra daquilo que a equipa ReB* mais gostou (tal como na selecção nacional, todos os projectos com dois ou mais votos foram incluídos).



[Against All Logic] 2017 – 2019

Nicolas Jaar teve um ano ocupado. O artista chileno-americano lançou três álbuns em 2020, e tudo começou com o pé direito e sob outro nome artístico. 2017-2019 é o segundo projecto de Against All Logic e apresenta-se mais cerebral que o seu antecessor. Há um tom profético neste projecto, Jaar apela a uma introspecção familiar nestes tempos, surgindo pelo meio temas como “If Loving You Is Wrong”, “Penny” ou a mais caótica “Deeeeeeefers” que nos relembram que existe uma discoteca onde um corpo dançante quiser. Mais uma vez, é clara a mestria que Jaar tem em trabalhar a mistura do som e a torná-lo verdadeiramente seu, a atenção ao pormenor em cada um dos instrumentais é máxima e cada loop soa ligeiramente diferente do que o antecede. 2017-2019 é uma viagem pela música electrónica expansiva de Nicolas Jaar, e uma digna adição à sua multifacetada discografia.

– Miguel Santos



[Aminé] Limbo

O tão aguardado sucessor de Good For You – o primeiro LP de Aminé – chegou na época veranil de 2020, a estação ideal para se consumir este disco. 

Limbo bateu com estrondo nos pisos da pop, com Aminé a assumir-se como figura irresistivelmente atrativa e apetecida, à semelhança de ícones como Tyler, The Creator, A$AP Rocky ou Skepta, cujos nomes representam, hoje, muito mais do que música. Além dos variadíssimos hits incansáveis que reúne, Limbo deixou uma marca bem impressa nos courts mainstream. Quando se trata de criar sucessos comerciais sem essa pretensão, Aminé joga em casa e parte em vantagem. Está destinado a essas finais. Agora, tem todas as bolas do seu lado, só tem de continuar a jogar.

– Paulo Pena



[Apollo Brown & Che’ Noir] As God Intended

Detroit e Buffalo, que é como quem diz Apollo Brown e Che’ Noir, em conluio para criar um daqueles “livros” em que se sente tudo e mais alguma coisa quando se molha o dedo para folhear cada página. Cada capítulo é um ensinamento, cada palavra tem um motivo e todos os momento são importantes. No recorte clássico dado pelo produtor e nos cenários vívidos descritos pela rapper descobrimos os valores de ambos, como se estivessem destinados a fazê-lo em conjunto. É com isto que se parece o destino? Olhem para cima e a resposta não aparecerá; ouçam As God Intended e de certeza que vão chegar a algumas conclusões.

– Alexandre Ribeiro



[Bad Bunny] EL ÚLTIMO TOUR DEL MUNDO

2020 foi o ano de sonho para Bad Bunny. Fez o que lhe deu na gana e ainda esvaziou os bolsos — falamos, claro, das edições de YHLQMDLG e LAS QUE NO IBAN A SALIR — mas deixou o melhor para o fim. Lançado no final de Novembro, EL ÚLTIMO TOUR DEL MUNDO é um álbum completo, maduro e destaca-se dos anteriores dois registos, que soaram mais a compilações que tentavam captar momentos mais específicos da sua carreira. Estamos perante um óbvio objecto de culto dentro da pop moderna: EL ÚLTIMO TOUR DEL MUNDO foi minuciosamente esculpido para soar imaculado nos nossos ouvidos, com produções que facilmente transitam do neo perreo ao rock ou ao trap e criam um dinamismo muito interessante que combina intimamente com a irreverência do porto-riquenho.

– Gonçalo Oliveira



[Boldy James & The Alchemist] The Price Of Tea In China

E sobre as revelações do ano? Boldy James, aos 38 anos, é, sem dúvida, uma delas, depois de ter lançado o seu primeiro de quatro projectos em 2020 (Manger on McNicholsThe Versace Tape Real Bad Boldy foram os outros três) – The Price Of Tea In China

O rapper de Detroit voltou a formar dupla com The Alchemist (já haviam colaborado em My 1st Chemistry Set – álbum de estreia de Boldy – em 2013, e no EP Boldface, em 2019) para executar o seu melhor trabalho até à data. Sobre The Alchemist, o produtor teve um ano inacreditavelmente preenchido e imaculado, e destaca-se cada vez mais como um dos produtores mais valiosos no presente do hip hop. Juntos criaram uma obra que ecoa as ruas de Detroit, um documentário que não precisa de ser visto para ser visualizado, graças às batidas que criam esse ambiente e as rimas que o descrevem. Qual é o preço do vinho na China? É que estes dois estão cada vez melhores com o tempo, e o valor deste disco é incalculável.

– Paulo Pena



[Chloe x Halle] Ungodly Hour

À toada do espanto, não há muita distância entre fascínio e medo. Erguidas as sobrancelhas e escancarados os olhos, falta saber se a boca vai sorrir com deleite ou secar pelo terror. No mergulho dantesco de Ungodly Hour, as irmãs Chloe e Halle Bailey não assustam, mas impõem respeito com harmonias monumentais, que fortificam alguns dos melhores protótipos de êxitos de 2020. Um pé está a chegar à discoteca e o outro segue o néon da pista; em poucos minutos, somos recambiados para um limbo onde o prazer é chamuscado pela incerteza. Nunca teremos palavras para a primeira vez a ouvir a imperiosa “Baby Girl” (produzida por Chloe) — o centro de gravidade deste álbum, onde o medo se funde no espanto. Dissemo-lo e voltamos a dizer: “Assusta-vos duas mulheres a chegar aos píncaros [da música pop]?”

– Pedro João Santos



[Conway The Machine] From King To A GOD

A conversa sobre o G.O.A.T. pode se tornar esgotante (e irritante até), mas há sempre quem traga argumentos novos que nos obriguam a contrariar os nossos próprios instintos na hora de abordar o assunto: é esse o poder de Conway The Machine, MC que fugiu a vários infortúnios para se transformar num dos mais dedicados atletas da rima de alta competição, chegando a um novo tipo de patamar em From King To A GOD. Imaginem “cuspir” taco a taco com Method Man e sair vivo e sem ferimentos desse encontro…

– Alexandre Ribeiro



[Dua Lipa] Future Nostalgia

Querem o óbvio? Em parlapiê da indústria, Dua Lipa venceu o ano. Soube fazer campanha como uma presidente, desbravando os meandros do Zoom quando a pandemia ameaçou o seu triunfo capitalista. Dominou a televisão como se fossem os anos 1990. Abriu uma portinhola para as mulheres voltarem ao cume das rádios. Ocupou uma discoteca para nela gravar um concerto ao vivo(talvez tenha quebrado algumas medidas de segurança pelo caminho). O mais surpreendente? É que, sob a prova de aferição da vedeta, havia um álbum quase à prova de bala. Disco sound numa matriz pop, baixo possante meias-paredes com opulentes violinos, sintetizadores galácticos e palmas numa altura em que dar as mãos é tão proibido quanto soltar a franga ao som de “Hallucinate”. Nostalgia presente, nostálgico futuro que se adivinha.

– Pedro João Santos



[Emma-Jean Thackray] Rain Dance

O EP da trompetista Emma-Jean Thackray, mais uma importante peça no complexo puzzle da cena jazz contemporânea de Londres, é um portento de dinâmica e luz e uma convincente amostra do seu talento que aguarda ainda pela mais ampla tela que o formato de álbum poderá proporcionar à sua visão. O facto de marcar igualmente a estreia da sua própria etiqueta, a Movementt, diz-nos que Emma-Jean está a dar passos seguros, a construir a sua própria estrutura que, certamente, será a que melhor poderá defender o seu projecto musical. E o que se escuta neste Rain Dance EP soa a condensação de todas as valências que Emma tem evidenciado: além de ser uma brilhante trompetista, ela ainda se afirma como beatmaker, DJ, compositora, produtora. Com pouco mais de 15 minutos, este EP só peca mesmo pela sua brevidade, mas voltar ao início e escutar tudo outra vez também garante renovadas recompensas.

– Rui Miguel Abreu



[Fiona Apple] Fetch The Bolt Cutters

Fetch the Bolt Cutters é uma ordem mas o espírito descontraído e despido do mais recente projecto de Fiona Apple retira alguma da cadência autoritária que advém desse título. Faz mais sentido olhar para esta escolha e álbum como uma libertação, o quebrar das grilhetas que surge depois de uma epifania, o desprezo pelas convenções, pelas expectativas que impõem a uma artista do seu calibre e, até certo ponto, pelos corações dos seus fãs (já lá vão oito anos desde The Idler Wheel…). Mas o hiato não se faz notar na qualidade musical, sendo que Apple apresenta alguns dos seus mais aguçados versos até à data. A ironia e humor da sua escrita é clara em temas como a hilariante “Under the Table” mas há também espaço para a seriedade e empoderamento feminino em temas como “For Her” ou “Newspaper”. “I would beg to disagree, but begging disagrees with me”, diz-nos a certa altura. Ainda que Apple não o faça, implora-se aos leitores que não deixem passar este álbum.   

– Miguel Santos



[Freddie Gibbs & The Alchemist] Alfredo

Não nos cansamos de enfatizar o brilhante ano que The Alchemist teve. Desde projectos a solo a álbuns divididos com alguns dos mais capazes rappers da actualidade, passando ainda por discos de uma série de MCs, o produtor (e rapper também, não esquecer) não ficou aquém do seu próprio estatuto em momento algum. O mesmo se pode dizer sobre Freddie Gibbs, sem tirar nem por. Kane foi várias vezes requisitado para “matar” faixas – nenhuma sobreviveu. 

Alfredo coliga (como o próprio nome indicia) Alc e Freddie num confronto de titãs das rimas e batidas. A culminar num dos melhores trabalhos de ambas as carreiras, a dupla fez uma revolução – “my execution might be televised” – num álbum marcado pela estética (sonora e visual) do gangster americano. Nomeado ainda para o Grammy de melhor álbum de rap, restam dúvidas acerca deste clássico instantâneo? E ganhou, fica aqui a premonição. 

– Paulo Pena



[Gabriel Garzón-Montano] Agüita

Como ser várias pessoas numa só? Gabriel Garzón-Montano responde através dos protagonistas que criou em Agüita. Três personalidades com ideias distintas, que nascem para unidas conseguirem melhor expressar quem é este americano, filho de mãe francesa e pai colombiano. Fruto da multiculturalidade, o artista produz um álbum que vai desde o alt-r&b ao art-rock da sua Nova Iorque, ao glamour parisiense e à cultura latina-urbana, a grande surpresa deste novo lançamento. A verdade é que, se a combinação destes três fatores parecia arriscada, Agüita mostra que também pode ser natural. Há tanto de classe e arrojo, como de sensibilidade e arrogância. Para tal, GGM despe-se camada a camada, tema a tema, até se mostrar na sua plenitude, e isso é algo profundamente belo.

– Luís Carvalho



[Giveon] TAKE TIME

Há um novo príncipe do r&b nos Estados Unidos da América e o seu nome é Giveon. Drake deu-lhe uma plataforma gigante com o convite para “Chicago Freestyle”, mas isso foi só um atalho para aquilo que era inevitável: a sua afirmação. “LIKE I WANT YOU”, “THE BEACH” ou “FAVORITE MISTAKE” são hinos modernos de amores e desamores que nunca vão desaparecer, só precisam de novas maneiras de serem escritos e cantados. TAKE TIME não podia soar mais irónico neste caso: entrem já e aproveitem esta viagem que ainda vai no início.

– Alexandre Ribeiro



[Gorillaz] Song Machine, Season One: Strange Timez

O novo álbum dos Gorillaz é mais do mesmo, no melhor dos sentidos. A primeira temporada desta Song Machine alude ao nosso mundo sem nunca sair do universo animado de 2-D, Russel Hobbs, Murdoc Niccals e Noodle, e é um retorno magistral à forma a que já nos habituaram. Auxiliado por um elenco de luxo, Damon Albarn consegue mais uma vez criar músicas fáceis ao ouvido com convidados que  acrescentam o seu cunho ao imaginário sonoro da banda. Ouvimos isso na doçura de “Pink Phantom”, que junta Elton John e 6LACK numa satisfatória e inesperada união, ou na gloriosa “Momentary Bliss” em que slowthai canta/grita com o alento de quem está confinado há demasiado tempo. “Mais do mesmo” significa que transparecem os excelentes trunfos do costume numa colecção de onze temas que cativa de uma ponta à outra. Aconselha-se fortemente a ouvir a versão deluxe, para ouvir ainda mais do mesmo. 

– Miguel Santos



[Jay Electronica] A Written Testimony

O regresso do ano. Jay Electronica, um dos rappers mais consagrados com menos provas individuais documentadas, voltou, num reaparecimento sentido como um renascimento – afinal de contas, este é o seu primeiro álbum oficial, uma estreia adiada há mais de uma década. 

Jay-Z é o convidado surpresa em A Written Testimony, que acaba por partilhar o disco com o seu homónimo no rap, num tête-à-tête majestoso servido por batidas não menos imponentes. Uma obra digna das escrituras, que foi anunciada 40 dias e 40 noites antes da sua divina revelação – “All I have in this world is my flag and my sword/ I’m on a battlefield with the flag of my Lord”.

– Paulo Pena



[Jeff Parker] Suite for Max Brown

Que Parker, com 53 anos, ainda acuse o peso de descobertas que fez aos 30 é apenas claro sinal da sua generosa abertura. E é essa ampla visão que se sente logo em “Build a Nest”, tema de abertura em que o músico assume bateria, vozes, piano, sintetizador e, claro, a guitarra para desenhar uma cadenciada base a que a vocalista Ruby Parker acrescenta depois a sua seda. E é óbvio que o que se cozinha em estúdio através da auto-gravação de diferentes instrumentos em multipistas ou da interacção de vários músicos em ensembles mais tradicionais pode perfeitamente co-existir com fantasias encriptadas em loops samplados. A ligar essas diferentes dimensões está a guitarra de Jeff Parker, músico capaz de debitar o mais lírico dos discursos, mas também de soar mais angular e abstracto. Pérola praticamente perfeita.

– Rui Miguel Abreu



[Jessie Ware] What’s Your Pleasure

Deleite de uma ponta à outra. É assim que podemos resumir What’s Your Pleasure, o novo projecto de Jessie Ware. A artista britânica leva-nos numa viagem musical pelos vários recantos da música electrónica com ginga, fintando géneros sem nunca esquecer que é no centro da pista de dança que este álbum brilha verdadeiramente. Mas há muitas maneiras de bater o pé, e aqui a artista quer mostrá-las a todas. Há música dançante para todos os gostos, seja a todo o vapor em temas como “Save a Kiss” ou “Mirage (Don’t Stop)” ou de forma mais recatada pela mão de “Ooh La La” ou a catártica “Remember Where You Are” que fecha o álbum em altas. É um projecto quente, sedutor, muito bem encadeado e um fantástico showcase das habilidades musicais de Ware.

– Miguel Santos



[Ka] Descendants of Cain

Os demónios que assombram Ka têm vindo à superfície da sua música nos últimos anos e a caneta que enverga tem sabido dissecá-los melhor do que ninguém. Já não é novidade de que estamos perante um dos melhores poetas a operar no circuito do hip hop, capaz de pegar em figuras mitológicas, momentos marcantes da história da humanidade e religião para nos descrever os paralelismos que neles encontra face ao seu próprio trajecto.

Em Descendants of Cain, Kaseem Ryan muniu-se de batidas maioritariamente suas mas recrutou também Animoss, DJ Preservation e Roc Marciano (que também actua como MC em “Sins of the Father”) para o ajudar na tarefa de encontrar ambientes inóspitos, quase cinemáticos, onde possa cristalizar as suas rimas. Este é um disco no qual o interprete surge “despido” diante dos nossos olhos logo nos primeiros segundos — “Loved things I should’ve lusted/ I rushed it, snubbed things I should’ve trusted” — e termina ainda mais vulnerável na tripla homenagem que “I Love (Mimi, Moms, Kev)” presta à sua mulher, mãe e melhor amigo.

– Gonçalo Oliveira



[Kate NV] Room For The Moon

Se em для FOR (2018) a russa Ekaterina Shilonosova se havia aproximado da música minimalista e ambiente de Hiroshi Yoshimura – registo em que brilhou e encantou –, no seu mais recente álbum, Room For The Moon (2020), ouvimo-la de regresso a estéticas próximas da new wave e synth pop, territórios que havia já explorado no seu disco de estreia, Binasu (2016). E este é um retorno no qual a também guitarrista de Glintshake se distingue, muito devido à genuína facilidade que tem em traduzir em geometrias musicais os imaginários pueris, coloridos e fantasiosos que lhe são tão caros. E o ouvinte, claro, embarca nesta viagem caleidoscópica com leveza e agrado, submergindo sem coerção num universo onírico digno de contos de fadas.

– João Morado



[King Krule] Man Alive!

Man Alive! reflecte o amadurecimento musical de um artista que a vida tem forçado a crescer. Após The Ooz (2017), King Krule foi pai e mudou-se de Londres para Cheshire. Porém, se o homem saiu da cidade, a cidade ainda não saiu do homem, sentindo-se ao longo deste novo trabalho reminiscências da sua cosmopolita e anterior vivência. De ambiência lúgubre, depressiva e revoltada, mas também com toques de classe e romantismo, Man Alive! remete-nos para o britânico (pós-)punk, aqui modernizado de forma tão idiossincrática por Archy Marshall. King Krule está mais velho, e isso sente-se nos sinais de esperança que começam a despontar do seu niilismo inveterado.

– João Morado



[Knxwledge] 1988

Não é fácil atentar ao que se passa na carreira e na cabeça de Knxwledge. Por um lado, tanto a regularidade como a extensão e o volume do seu output são admiráveis, até esmagadoras; por outro, a sua produção, automaticamente comparável à de ícones como J Dilla ou Madlib, é densa e pouco polida. Os crackles de vinil e a fraca qualidade de alguns samples usados deixam o espectro sonoro mais indefinido e complexo, mas sempre carregado de emoção, melodias cantáveis e batidas sujas de grooves em loop. Um pouco como na música de Dilla, Glen Boothe constrói beats que não precisam de ser explorados em demasia, e isso funciona para que não haja desvios de atenção de quem o ouve, mas permite também uma dinâmica ímpar num trabalho fluído de 22 momentos, ligados como se de órgãos humanos se tratassem. Este segundo álbum é dos seus registos mais marcantes, também porque talvez seja o seu trabalho mais ambicioso. É nostalgia e emoção engarrafada, mas também é a procura pelo melhor loop. Como é sempre com Knxwledge.

– Vasco Completo



[Little Simz] Drop 6

Com uma das vozes mais corajosas do rap britânico, Little Simz regressou em 2020 com Drop 6, uma mixtape que coloca frente a frente o sentimento de claustrofobia e de confiança pessoal sentidas numa casa que se tornou o mundo durante uma quarentena. Escrito e interpretado no seu próprio quarto, conseguimos sentir as paredes a fecharem-se sobre si mesmas em letras contemplativas que representam uma viagem de auto-análise num espaço pequeno. “You know I’ma be right here when you need that truth” é o refrão de “wheres my lighter”, o fecho deste trabalho, mas, ao mesmo tempo, o prelúdio para uma artista que ainda tem muito mais para oferecer.

– Fábio Nóbrega



[MIKE] weight of the world

Quanto pesa o mundo nas costas de um jovem afro-americano? Apesar de incalculável, MIKE tece o seu próprio ensaio sobre o que é estar debaixo da sua pele num 2020 atabalhoado, essencialmente pautado pela pandemia de COVID-19, tensão racial e um presidente que está a fazer de tudo para dividir ainda mais a população do seu país.

Habituou-nos a uma velocidade notável com que partilha connosco música nova mas depois de ter passado 2019 apenas com tears of joy para mostrar, repetiu a dose no ano seguinte, com um LP editado exactamente na mesma data que o antecessor, no dia em que se celebra o Solstício de Verão. weight of the world é mais uma importante fotografia da onda rap indie que está a ganhar cada vez maior expressão em Nova Iorque, criado a partir da saturação de samples, por vezes a roçar um gélido mas agradável ruído digital, e textos carregado de um drive típico dos jovens da sua geração mas sem cair no ridículo da tentação. Provavelmente um dos melhores “netos” que MF DOOM teve.

– Gonçalo Oliveira



[Moor Mother & billy woods] BRASS

Muitas vezes tenta-se esbater barreiras entre géneros e sub-géneros musicais, acusando-se até de heresia quem tenta ajudar a catalogar (muitas vezes bem, outras tantas mal) as diferentes nuances daquilo que se vai fazendo. Em BRASS, Moor Mother e billy woods obrigam-nos a esquecer categorias e definições: dois mestres da rima entregam-se àquilo que mais importa, a projecção da sua mensagem, enquanto constroem uma dinâmica que se desenrola a uma velocidade, nem lenta nem rápida, sem paralelo no panorama actual. Tão alienígena quanto humano, acreditem…

– Alexandre Ribeiro



[Moses Sumney] græ

Num ano em que a palavra “isolamento” foi, infelizmente, tantas vezes repetida, Moses Sumney dedica um épico duplo-álbum a essa ideia de estar e sentir-se isolado. græ é uma glamorosa viagem de psicanálise, em que se fragmenta, descobre e questiona a sua vulnerabilidade, a sua dualidade, o seu lado feminino, a sua solidão e o poder dos outros e das suas opiniões na sua vida. Uma espécie de maravilhoso sonho, onde os pensamentos são desenhados com orquestrações, samples de composições jazz, falsetes, muita soul e outro tanto art-rock, e, principalmente, por uma voz cristalina, delicada e única, como elemento primordial. Um álbum sobre ele, um álbum sobre o Homem contemporâneo.

– Luís Carvalho



[Nazar] Guerrilla

A metamorfose do seu rough kuduro ganha novos contornos em Guerrilla. O EP Enclave, dois anos antes, já era prometedor, tanto que por essa altura já tinha saído na britânica Hyperdub, a casa certa para quem quer subverter géneros, alterar as regras do jogo. Guerrilla não é só uma declaração da exploração musical de Nazar, é também um relato sobre os tormentos da longa Guerra Civil Angolana. Há neste álbum de estreia uma enorme coerência e uma interessante variedade de espaços sónicos para falar dum tema que só pode expressar-se acutilante e intenso. Fazendo-se usar, coerente e ponderadamente, de samples que ilustram por um lado a guerra, por outro a cultura ovimbunda, levanta a cortina para um mundo traumático, mas real, e fá-lo desde o extremo mais agressivo ao mais vulnerável. Já em Julho dissemos: “[Nazar] moderniza, por um lado, o kuduro e a tradição ovimbundo, mas também a electrónica europeia com que cresceu”.

– Vasco Completo



[Nubya Garcia] SOURCE

Rainha do jazz na capital inglesa, Nubya Garcia apresentou este ano SOURCE, o segundo trabalho de longa duração da sua curta mas prolífica carreira. Editado pela Concord Jazz, SOURCE vê a saxofonista transpor para as suas composições todo o manancial de inspirações que a formam enquanto música e pessoa. Das influências caribenhas às suas degenerações nos soundsystems britânicos, são ecléticos os ascendentes que emergem neste LP, que se apresentam fundidos com a matricial génese jazzística que tanto caracteriza a londrina. Para além do trabalho composicional, este é um álbum que ganha bastante pela simbiótica relação que Nubya estabeleceu com a sua working band, factor que claramente exponenciou as potencialidades do seu tocar quente e redondo. Estamos perante um trabalho que afirma a londrina como uma das personalidades mais relevantes do universo jazz feminino da actualidade.

– João Morado



[Perfume Genius] Set My Heart On Fire Immediately

Mike Hadreas já foi mais imediato nos seus desejos: havia urgência realmente crepitante em No Shape, o seu LP anterior. Mas, em Set My Heart on Fire, não há combustão igual a “Slip Away” ou “Wreath”. Há, sim, a concretização de uma promessa: a de que um corpo traumatizado, ainda a convalescer, é capaz de seguir o som e dissolver-se no éter — e voltar à terra quando sabe bem. Foi preciso chegar aos 40 anos para que o artista conhecido como Perfume Genius fizesse as pazes com essa carne tantas vezes posta à prova. Bom para ele, transcendente para nós, que abraçamos aquele que é o seu projeto sonoro mais consistente e delicado até à data: no cruzamento de pop barroco, folk e psicadélica, com a propulsão orquestral de um Schoenberg.

– Pedro João Santos



[Pink Siifu] NEGRO

Este não é um disco fácil de ouvir, sobretudo para quem chega aqui sem avisos vindo de Ensley, o seu trabalho de estreia de 2018, ou até Bag Talk, trabalho lançado já este ano e em que divide créditos com Yungmorpheus, discos bem mais melódicos, centrados no lado mais lo-fi do hip hop, mas com cadências reconhecíveis e de fácil head nodding, ainda que politicamente tenham já muitas das ideias agora depuradas em NEGRO. A diferença é que o que nesses discos é discurso, aqui é slogan, o que nesses registos resulta de reflexão, aqui é grito incontido, o tal “caos necessário”, a tal “fúria” mais do que justificada. Também há amor, sobretudo pelos irmãos e irmãs que estão consigo na luta, pequenos rasgos de luz na escuridão. Mas o nervo, o clamor, a urgência, a sensação de queda no abismo é o que domina este trabalho. E, nesse sentido, Pink Siifu oferece-nos um agudo retrato do momento.

– Rui Miguel Abreu



[Pink Siifu & Fly Anakin] FlySiifu’s

FlySiifu’s é uma profunda meditação sobre a identidade e a sobrevivência. Siifu: “Time crazy, my mind take me places I can’t pen, then again I know where I’m at/ Still trapped, doubling back again, bitch you watch”. E, depois, no mesmo tema, “Shloww”, Anakin remata: “We prevalent, carefully smoking the evidence/ Being benevolent”. Duas vozes carregadas de personalidade, cada uma com recorte textural próprio, flows que entrelaçam ideias antes de pensarem na ginástica com as palavras, beats de classe, cheios de pianos e de vibrafones e ecos cósmicos que servem a imaginação da dupla de forma perfeita. É só fechar os olhos e carregar no play para se apreciar um dos melhores “filmes” independentes do ano.

– Rui Miguel Abreu



[Run The Jewels] RTJ4

El-P e Killer Mike são pertinência e impertinência ao mesmo tempo. Pertinentes porque compreendem de uma maneira bastante avançada aquilo que se passa à sua volta, tanto socialmente como politicamente; impertinentes porque não se censuram e expõem o que consideram ser uma verdade inconveniente. No quarto volume desta jornada épica, a dupla superou-se, mais uma vez, e fê-lo com a ajuda de grandes como DJ Premier, Pharrell Williams ou Zack de La Rocha. O olimpo do hip hop está já ali ao virar da curva para os Run The Jewels.

– Alexandre Ribeiro



[Sault] Untitled (Black Is)

Este é um álbum urgente, criado na sequência do movimento #BlackLivesMatter, inspirado pela mesma justa raiva que tem varrido as ruas da América após as cruéis mortes de pessoas como George Floyd ou Breonna Taylor às mãos de um sistema policial que sobrevive graças à impunidade, que ampara o sistémico racismo que Trump tem amplificado. Untitled (Black is) é os Sault a juntarem a sua voz – as suas palavras – ao coro global que grita “NÃO MAIS!”, “NÃO CONSIGO RESPIRAR!”. “The Revolution has come (Out The Lies)/ Still won’t put down the gun (Out the lies)”, começa-se por se declarar, estabelecendo o tom, alinhando estas vozes com todas as outras que têm protestado nas ruas da América, de Inglaterra, de Portugal, do Brasil ou Hong Kong e mais além.

– Rui Miguel Abreu



[Sault] Untitled (Rise)

Este novo trabalho é a forma encontrada pelos Sault de recusarem a condição de eternas vítimas para os negros, sejam eles afro-americanos ou quaisquer filhos da diáspora global. É, portanto, um disco de celebração, de exaltação, de afirmação: “we shall reclaim our joy”, proclama-se a dada altura em jeito de discurso proferido durante uma manifestação. Este é um disco em que os Sault abdicam do tom marcial que marcava o plano rítmico de alguns dos temas do registo anterior, substituindo-o por um claro apelo à dança. “I Just Want to Dance” é um óptimo exemplo, ainda que possa ser a raiva o motor da procura de abandono na pista de dança.

– Rui Miguel Abreu



[Shabaka and the Ancestors] We Are Sent Here By History

“Estamos a falar acerca de estruturas imaginativas, estamos a falar sobre como entendemos as coisas e como processamos a informação que nos é dada – como nos vemos no sentido de como nos relacionamos com a história”. Musicalmente, isso significa uma consciência da espiritualidade explorada nas obras de Sun Ra, da família Coltrane, de Archie Shepp ou Pharoah Sanders, mas também uma muito clara ideia do contexto presente, do trabalho que tem sido feito por uma nova geração para ancorar o jazz não no dogma, mas nas inúmeras possibilidades abertas pelo escancarar de fronteiras entre géneros, entre culturas, entre experiências. E isso garante que We Are Sent Here By History se apresente como uma intrincada tapeçaria de palavras de forte intensidade ideológica e espiritual com os dois sopros a marcados pelo fogo da mais pura invenção.

– Rui Miguel Abreu



[Thundercat] It Is What It Is

Há poucos artistas tão talentosos e com tantas provas dadas na última década. O mais recente disco de Thundercat, It Is What It Is, pode não ser o seu melhor — nem ocupar o papel que talvez fizesse sentido, na sequência do aclamado Drunk, que chegou longe — mas ainda assim continua a ser um dos melhores lançados em 2020. As suas referências musicais são amplamente diversas e portanto este disco é mais um exercício que pode ir desde densas texturas jazz até a algumas das suas canções mais pop, equilibrando a tristeza do luto — é um álbum muito influenciado pela morte de Mac Miller — com alguma leveza sonora.

– Ricardo Farinha



[Tom Misch & Yussef Dayes] What Kinda Music

Lançado pela sua própria editora, Beyond The Groove, Tom Misch entrou em 2020 com um dos seus melhores trabalhos até à data. What Kinda Music, criado a meias com Yussef Dayes, um dos titãs sulistas das percussões do novo jazz britânico, traz uma lufada de ar fresco a um jazz que por si só já está cheio de drip.

A reverberação e os delays são ferramentas de criação de um psicadelismo único e bem assente: tratam-se de dois músicos generosos, que partilham espaços na música em que tanto um como o outro têm a possibilidade de trazer o melhor de si e contribuir para a beleza do produto final. É um álbum que fica no ouvido, mas que não cansa quem ouve, e, ao mesmo tempo, que corre uns metros a mais para chegar a lugares que os seus protagonistas, sozinhos, não conseguiriam alcançar.

– Fábio Nóbrega



[Westside Gunn] Pray for Paris

Se Westside Gunn soubesse o impacto que a capital parisiense viria a ter no seu rap, talvez tivesse lá ido mais cedo. Pray for Paris é fruto de uma breve passagem do rapper de Buffalo pela “cidade luz”, onde recrutou Virgil Abloh para o ajudar a criar a sua obra mais arrojada até à data. Escolheu ainda a dedo os seus pintores de eleição, tais como Tyler, The Creator, Joey Bada$$, Freddie Gibbs, Roc Marciano, Conway The Machine, ou DJ Premier, The Alchemist, Daringer, DJ Muggs, e montou um atelier de versos e notas avant-garde, nas mais variadas correntes artísticas do hip hop. Renascentismo no rap – é Westside Caravaggio.  

– Paulo Pena

*Quem votou: Sebastião Santana, Alexandre Ribeiro, Paulo Pena, Miguel Santos, Luís Carvalho, João Morado, Fábio Nóbrega, Gonçalo Oliveira, Vasco Completo, Pedro João Santos, Ricardo Farinha e Rui Miguel Abreu.

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