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Fotografia: João Octávio Peixoto
Publicado a: 01/11/2025

E muita chuva.

Mucho Flow’25 — dia 2: outras latitudes, a mesma experimentação sónica

Fotografia: João Octávio Peixoto
Publicado a: 01/11/2025

A itinerância de um festival traz muitas e boas vantagens. Diferentes concertos podem ser escalados para diferentes tipos de palcos, podendo a cenografia do local escolhido dar novas dimensões à música em questão e a tipologia do espaço mexer com as acústicas pretendidas. Numa cidade como Guimarães, onde todas as venues reservadas para um evento como o Mucho Flow são relativamente perto umas das outras — no máximo, caminha-se uns cinco minutos entre salas —, essas peregrinações são também um óptimo momento para poder apreciar a beleza da urbe que nos rodeia, aproveitando para reflectir sobre cada actuação antes do arranque da próxima. Essa característica deambulatória só tem um inimigo: a chuva. E ontem, 31 de Outubro, ao segundo dia do Mucho Flow, foi precisamente a pluviosidade a partida que a noite de Halloween nos decidiu pregar. Mais ou menos molhados, importa é procurar sacudir a humidade ao som da banda sonora que paira pela cidade. É como diz o adágio: “Quem dança, seus males espanta.” E se for com estaleca, até a roupa seca!

Os ritmos que escolhemos bailar nesta segunda jornada levaram-nos para vias completamente opostas às do dia inaugural. É música de outras latitudes, mas com a mesma característica laboratorial que o festival tão bem promove. Começámos na dupla que une o produtor Infinity Knives ao rapper Brian Ennals, detentora de um estilo de hip hop nada convencional orquestrado por dois artistas com backgrounds distintos: Infinity Knives nasceu na Tanzânia e cresceu entre vários países africanos — um deles de língua oficial portuguesa, Moçambique, como fez questão de referir a meio da actuação — antes de se fixar nos EUA, enquanto que Brian Ennals é norte-americano de gema e conviveu mais de perto com a tradição do berço da cena rap. Essa junção de diferentes visões tem resultado numa sonoridade que em quase nada se assemelha à dos seus pares, tal como as mensagens que procuram proclamar nos seus temas, muito assentes na auto-análise e no olhar crítico em torno dos problemas político-sociais, isto numa altura em que o hip hop se afasta a passos largos das suas origens interventivas. A passagem do par pelas Galerias do Teatro Jordão foi, por isso, uma verdadeira lufada de ar fresco e teve até mesmo um certo sabor a continuidade do momento que vivemos naquela mesma sala e festival um ano antes com a prestação dos Angry Blackmen. Mais pujantes que os clipping. e com uma densidade lírica superior à dos Death Grips, esta união entre Infinity Knives e Brian Ennals tem sido uma melhores fontes sonoras do circuito do rap alternativo dos últimos anos, da qual têm brotado trabalhos como Rhino XXL (2020), King Cobra (2022) e o mais recente A City Drowned in God’s Black Tears (2025), provavelmente a obra mais politizada de todo o seu catálogo.

Ao vivo, no entanto, toda essa carga pesada consegue virar combustível para um espectáculo de catarse, que nos deixa a pensar mas também nos faz saltar à medida que as jardas de bass nos bofeteiam a venta. E a militância anti-fascista — ouviram-se criticas e insultos a Doland Trump, Benjamin Netanyahu e Charlie Kirk, mas também a instituições de defesa como a IDF, o FBI ou a CIA — vai sendo pulvilhada com passagens mais descontraídas, como o declarado amor da dupla a todo o tipo de substâncias capazes de alterar estados psicológicos. Já bem na recta final, Infinity Knives e Brian Ennals tinham o público completamente embrenhado na sua barafunda sonora, saltando a cada kick mais vincado e reagindo a plenos pulmões às rimas mais incisivas. O par terá certamente saído de cena bem impressionado com o calor humano português e agradeceu a generosidade num post no Instagram. Mais um cantinho do globo conquistado pelo produtor e pelo rapper, mais uma vitória para a programação de 2025 do Mucho Flow.



Após uma nova travessia sob pingos intensos, chegámos ao Centro Cultural Vila Flor para testemunhar aquele que era um dos concertos mais esperados de todo o festival. Estreados este ano com um disco homónimo, os Los Thuthanaka têm vindo a galgar terreno numa rápida ascensão mediática: venderam incontáveis cópias — tanto digitais como físicas — desse seu debutante registo no Bandcamp, obtiveram uma das maiores pontuações deste ano em críticas da Pitchfork e foram até destaque no Público. A forma hipnótica e futurista com que os dois irmãos boliviano-americanos abordam as suas heranças indígenas num contexto de psychedelic rock meets beatmaking DIY tem conquistado fãs no mundo inteiro, mas ao vivo a sonoridade soa mais esparsa e parece não nos conseguir amarrar com tanta facilidade. Os Los Thuthanaka têm um longo e possivelmente brilhante futuro pela frente e a forma como vão lidar com os ensinamentos obtidos deste primeiro ano de estrada terão, certamente, um grande peso no desfecho da história. Para já, parece que falta dar uma outra energia às malhas em cima do palco e, possivelmente, procurar encurtá-las de modo a alcançarem um alinhamento o mais conciso possível. A fasquia estava alta e, por isso mesmo, soube a pouco esta prestação da dupla. O hype foi o pior inimigo dos Los Thuthanaka em Guimarães.



A noite prosseguiu sem sairmos dos mesmos sítios — do Centro Cultural Vila Flor e das sonoridades da América Latina, diga-se. Foi Nick León quem se seguiu, um DJ e produtor do sul da Flórida que se tem sobressaído pela vanguardista visão da música tropical que aplica em contextos electrónicos. Depois de ter trabalhado com alguns nomes bem interessantes da indústria nos últimos anos — de Denzel Curry a ROSALÍA, de Robb Bank$ a Oklou —, chega ao Mucho Flow na ressaca do lançamento do seu primeiro álbum em nome próprio, A Tropical Entropy. O título é auto-explicativo e ajuda em muito a descrever a sua actuação ao vivo no festival vimaranense: a operar teclados e controladores, o artista americano levou-nos numa viagem pelas noites de Miami através de uma sonoridade tão cuidada quanto minimal, mas muito cerebral no seu jogo rítmico, indo buscar o seu swing a estilos como o dembow e o reggaeton. Muitas vezes etéreo e celestial, quase como se conseguíssemos inalar os fumos que saem dos tubos de ensaio com que fabrica poções sonoras, também soube quando devia puxar pelo lado mais clubbing da sua música e levar-nos ao êxtase. Atrás de si teve sempre um conjunto de filmes caseiros — provavelmente filmados pelo próprio com o telemóvel — que nos iam mostrando alguma flora exótica ou tempestades tropicais, atribuindo um cariz o mais humano possível a uma arte tão alicerçada em máquinas mas que em nada se assemelha a produto sintético de produção imediata. As pistas estão definitivamente bem entregues a Nick León, que deu a tónica perfeita — mais leve — para anteceder a festa rija que depois se estendeu madrugada fora no Património Club.


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