LP / Digital

Infinity Knives & Brian Ennals

King Cobra

Phantom Limb / 2022

Texto de Nuno Afonso

Publicado a: 21/12/2022

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Sentados entre escadas e baldes de tinta, material diverso espalhado num chão caseiro e aquele sentimento de criação conjunta. A foto que ilustra King Cobra é desde logo reveladora da atitude quase operária deste duo maravilha. Assinam insuspeitamente aquele que será um dos discos do ano no género. Uma declaração de intenções que se desenrola, ganha vida e ressoa no éter ao longo de 17 polaroides da realidade (e também o que nela se esconde e camufla). Soará complexo, mas não o é; completo sim, ou, pelo menos, tanto quanto possível. 

Faz tempo que Tariq Ravelomanana aka Infinity Knives tem vindo meticulosamente a demonstrar horizontes maiores. Mais que mero produtor, é um genuíno visionário que projecta imagens em movimento, distorcendo percepções e revelando surpresas onde menos se esperam. Nesta magia que se cria, Brian Ennals evoca poesia em estado volátil; poesia que observa as ruas, que olha para dentro de si mesmo e que rompe com épocas. O termo vanguardista poderá pairar por aqui, no entanto, evoca-se (fazendo certa celebração disso) muito do p-funk e do boom bap que igualmente os trouxe até este bom porto. De resto, a empatia criativa com Ennals não é de agora, recorde-se que em 2020 ambos trouxeram Rhino XXL, disco sólido e promissor. 

“Neath The Willow’s Leaves” inaugura um álbum que se reinventa a cada instante. A guitarra acústica que se escuta em loop a certa altura desintegra-se por segundos, como quem joga com o tempo — e testa o ouvinte. Evocação algo onírica pelo sample de voz, oriunda de uma existência distante. Uma introdução, sem o ser, que é interrompida por “Coke Jaw”, primeira canção com a voz de Ennals e com “On The Run“, dos Pink Floyd, a centrifugar o beat que ainda encontra espaço para laivos de free jazz e ascensões apocalípticas. Uma fasquia elevada para arrancar (e justificar) os quase 45 minutos desta frenética viagem pelos Estados Unidos em desencanto – e em ressaca de episódios como o de George Floyd. Ainda assim, quem espera aqui encontrar um álbum de guerrilha, desengane-se; a luta é real, e nela tudo se centra, mas a dupla não alinha em atitudes panfletárias, per se.

O brilho de “A Melancholy Boogie” soa retro e logo escutamos: “Yeah, yeah this sounds like 1982 now/ Feel like disco back, uh” como quem anuncia nova mudança no GPS. Teclados luxuosos e uma vibe celebratória fazem deste tema seguramente um dos mais consensuais. Na linhagem de bangers, Infinity Knives não poupa no baixo pulsante e nas melodias líquidas cujas formas parecem desfazer-se entre os versos de Ennals. “Dont’ Let The Smooth Taste Fool You” apela ao corpo e faz puxar o cigarro, em jeito de preparação, para o chamamento de “The Badger”. O tema da gentrificação, do desemprego e da precariedade fazem Ennals cuspir palavras de desabafo, em jeito de ordem: “So, yup, six weeks ago, I’m gettin’ evicted/ Begged my landlord to help a n****, said he couldn’t risk it/ In the streets, been out here for weeks/ Shittin’ where I sleep, ain’t got shit to eat”. Basicamente aquele bater de realidade diante de nós.

O futurismo segundo King Cobra conhece também momentos algo absurdos e surreais. “Death of a Constable” resgata a veia funky da dupla numa narrativa em que os vocais de Brian Ennals soam, por breves segundos, a “Californication” dos Red Hot Chilli Peppers (propositado?). Num disco em que parece existir imenso terreno fértil, a soul vintage de “Milk & Codeine” ou “The Culling” também assoma, sem prejuízo, mas — uma vez mais — com fascínio. 

Escolhido como um dos álbuns do dia pela equipa editorial do Bandcamp, este é um tesouro pouco óbvio em 2022.


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