Esta é, sem dúvida, uma das melhores alturas para se estar em Guimarães. Ano após ano desde 2013, o Mucho Flow vai sendo uma espécie de farol na cidade berço para os verdadeiros aventureiros da música, aqueles que escutam versos, ritmos e melodias pelo seu verdadeiro valor e não para seguir à boleia de uma tendência qualquer. Este é um certame no qual dá para fazer all in às escuras, ingressar mesmo que não se conheça o cartaz, pois a sua organização está atenta a todos os micro-fenómenos que por aí andam e tem uma audição bem apurada para perceber quais os projectos aos quais vale realmente dar palco — não importa se têm 100 ou 100 mil ouvintes espalhados pelo globo, qual a língua em que se expressam ou de onde vêm.
Portugal e a sua vibrante cena musical actual não fica esquecido da curadoria. Já aqui tínhamos dado conta da electrónica espacial de Rita Silva no dia inaugural do festival, e anteontem, no derradeiro capítulo do Mucho Flow’24, começámos por um outro nome da esfera nacional e que joga num campo completamente oposto ao da já referida cosmonauta dos sintetizadores. Na cave do Teatro Jordão, ergueu-se uma nuvem de fumo rock pelas mãos dos PAPAYA, power trio onde militam Bráulio Amado, Óscar Silva e Ricardo Martins, eles que têm vindo a edificar uma considerável discografia desde que começaram a dar os primeiros passos juntos em 2013. No passado mês de Outubro, inscreveram mais uma edição no seu catálogo, chegando assim aos Nove/IX álbuns nas contas do grupo. Foi precisamente por aí que passou o grosso da sua actuação em Guimarães, das faixas mais morosas e abrasivas àquelas que quase nos rasgam os tímpanos pela cadência mais thrashy, elevando sempre os níveis de dopamina pela “pedra” que emanam e fazendo o público dançar ao seu ritmo. Foram de “Caparica” a “Rapazes do Tédio” ou “A Faca Que Ri”, mas também voltaram atrás no tempo para nos dar um par de antiguidades, como malha infectada pelo bicho do techno que é “Ripper”. A aposta nos três investigadores pós-graduados em ciências do rock é sempre certeira e ninguém ficou indiferente ao seu som massivo e corpulento.
Ainda na cave do Teatro Jordão, foi às 22 horas que se deu aquele que foi um dos mais ovacionados espectáculos de toda a 11° edição do Mucho Flow. Os Angry Blackmen foram uma das apostas mais rebuscadas deste ano — somam apenas uns modestos 2000 ouvintes mensais no Spotify, um número bem residual para a realidade norte-americana — e souberam estar à altura daqueles que dizem admirar, como Danny Brown ou billy woods. A representar Chicago, a dupla formada por Quentin Branch e Brian Warren mostrou-se super confiante em cima do palco, como se tivesse a plena noção de que a sua arte é capaz de conquistar imediatamente mesmo aqueles que nunca a escutaram na vida. Nas letras, registam palavras anti-sistema e reflexões sobre o que é ser-se negro numa das sociedades mais conturbadas do presente. Mas é sobretudo nas batidas que mais se destacam. Sonicamente, há laivos de Injury Reserve, JPEGMAFIA, Death Grips ou de Kanye West na fase YEEZUS, mas a maioria destes beats nem devia sequer existir. São falhas na matrix. Zeros e uns mal posicionados num dos algoritmos da vida. Os glitches e a saturação são de tal forma pujantes que fazem qualquer projecto auto-proclamado industrial roer-se de inveja. A tensão e a ansiedade também se dançam e aqui não existiram corpos que não estivessem irrequietos na presença deste par que diz estar habituado a tocar para plateias mais pequenas e bem menos enérgicas. Saímos todos deliciados — nós, público, pela jarda injectada nos nossos tímpanos; e os próprios Angry Blackmen, que naquele palco vimaranense conseguiram sentir-se realmente bem recebidos, tendo eles vindo de tão longe para actuar numa Europa onde não se sentem compreendidos em muitos dos países por onde passam.
No actual cenário da música electrónica de dança, ficamos muitas vezes com a sensação de que soa tudo igual na camada mais mainstream desse movimento. Os bons exemplos tendem a vir mais debaixo, de lugares que a vista dificilmente alcança. O Mucho Flow deu mais uma ajuda nisso, ao convocar 33EMYBW para um dos derradeiros actos do último dia da sua programação para este ano, aquele que ditou uma nova deslocação até ao Centro Cultural Vila Flor. Acompanhada pelos devaneios visuais de Joey Holder, a produtora de Shangai montou uma verdadeira selva sintetizada na Black Box daquele espaço, protagonizando um autêntico frenesim que combina ritmos hiperactivos e melodias capazes de corroer aço, como que a inventar o seu próprio conceito de techno — com muitas influências da bass music e footwork — sem nunca se vergar perante a monotonia do padronizado four on the floor. O alinhamento foi uma espécie de peça continua, com apenas um princípio e um final, que percorre pequenos ciclos de repetições sem nunca cair no erro de segurar o mesmo groove ou progressão melódica por mais tempo do que aquele que é recomendado. Fez-se rave de vanguarda em Guimarães, o corpo e a mente agradeceram.