Em dia de Halloween, não há como evitar um susto ou outro — mesmo que estejamos no arranque de mais um festival. A caminho do Mucho Flow, a viagem de Lisboa a Guimarães que se previa de 5 horas pregou-nos a partida de demorar uma hora a mais pelo trânsito que se fez sentir no último terço do percurso. Como no plot inicial de um filme de terror, instala-se o medo. Estávamos com o tempo mais ou menos contado e não havia grande margem para demoras se quisessemos apanhar o primeiro concerto. Em autêntico contra-relógio, corremos para chegar quarto de hotel e nos instalarmos com a maior da prontidão, sempre atentos ao elevador e aos corredores do grande edifício, não fosse a sorte espetar-nos as irmãs Grady pelo caminho com um convite macabro — “Come play with us”. Novamente em sprint, janta-se e quebra-se o recorde do Guiness de garfadas ingeridas por segundo, aqui com o medo de ser acusado de um dos 7 pecados mortais à espreita, tudo em prol de chegar o mais cedo possível ao Centro Cultural Vila Flor, onde toda a programação do primeiro dia do Mucho Flow teve lugar.
Por mais velozes que estes Nike sujos tenham sido, era humanamente impossível apanhar a actuação de Rita Silva na sua totalidade. Chegar literalmente a meio da sua performance — aos 30 minutos dos 60 previstos — já foi uma vitória. Sentados na primeira cadeira vazia que encontrámos, ainda levamos como prémio a fase contemplativa em que se encontrava a maquinista de sintetizadores naquele momento, perfeito para nos calibrarmos com a paz. Entre arpejos esculpidos em knobs, somos invadidos por imagens de auroras boreais de diferentes tons ou de baleias a emergir em câmera lenta num mar calmo enquanto cantam à lua. A dado momento, Rita Silva adiciona novos inputs com a voz, moldando-os de imediato para adicionar outras camadas de cores sintetizadas à tela que já tinha diante si. Em cadência vagarosa, o set progride até chegar a um momento de maior tensão, como se a nave da artista se tivesse perdido no espaço e andasse à deriva. É uma travessura agridoce: por um lado contempla-se o belo das estrelas e demais corpos celestes ao redor, por outro sente-se um certo pavor pela incerteza de encontrar o caminho que nos possa salvar. Com pena de não ter embarcado na aventura desde o seu início, valeu-nos a oportunidade de ver esta cosmonauta do som em acção numa altura em que se prepara para editar o seu segundo álbum, Vultures In A Quantum Space, do qual já mostrou recentemente como avanço “wytai”.
Pouco depois, outro imprevisto. Do pouco que conhecíamos de Ebbb, não contávamos ter saído do seu concerto tão entusiasmados como ficámos. A voz e a bateria ao vivo mudam por completo a percepção da música da banda de Londres Formada pelo produtor Lev Ceylan, o vocalista Will Rowland e o baterista Scott MacDonald. Apesar do vanguardismo sónico vindo da sua exploração electrónica, o resultado final daquilo que criam em estúdio é um produto musical bastante equilibrado que facilmente podemos associar a uma indie pop aventureira, capaz de assumir formas etéreas mas também traços de algo que vive bem dentro da cultura da cena club. É em palco que percebemos melhor o porquê da Ninja Tune ter decidido apostar neles para a edição do seu primeiro EP, All At Once, que nos chegou no passado mês de Julho. Durante a performance, sentimos o seu som mais musculado: a voz de Rowland chega-nos com redobrada nitidez aos ouvidos e o corpo adere à pulsação mais vincada com que MacDonald golpeia os diferentes elementos do seu kit de bateria, numa viagem que se faz entre nuances angelicais de techno ou jungle.
Duas surpresas boas — o novo registo em que opera Rita Silva e as inesperadas cambalhotas que a música dos Ebbb dá ao vivo. Era esta a contagem da noite inaugural do festival vimaranense até ao momento em que o relógio pouco passava das 23 horas. Queríamos terminar em beleza com a actuação de um dos projectos no qual mais colámos ao longo dos dias em que praticámos o aquecimento para a 11ª edição do Mucho Flow. Fechámos com chave de ouro graças à prestação de HYPNOSIS THERAPY, a dupla sul-coreana formada pelo produtor Jflow e o rapper JJANGYOU, responsáveis por um daqueles que será, sem sombra de dúvida, um dos shows mais electrizantes do line-up deste ano. Como mencionámos desde logo na peça de antecipação, esta é uma igreja onde se reza aos mesmos deuses que iluminam o caminho de JPEGMAFIA, mas o grupo asiático destaca-se por recorrer menos às influências do mundo do rock, preferindo trilhar o seu mapa sónico por um sem-número de referências do vasto planeta das batidas. Em cerca de uma hora, vamos de Kingston a Detroit, do Rio de Janeiro a Londres, sempre com uma postura punk digna de verdadeiros artilheiros do glitch.
Com Jflow a disparar os instrumentais, a puxar pelo público e a dar as dobras da voz, JJANGYOU é claramente aquele que carrega a prestação do duo em cima do palco. O MC apareceu a envergar a parte de cima do equipamento da selecção nacional de futebol — com o seu nome e o número 82 estampados nas costas — e uma máscara de diabrete que combinava na perfeição com a temática do Halloween. Esses adereços não duraram muito tempo no seu corpo, porque punk que é punk, mesmo que da era cibernauta, dá concertos de tronco nu. Mas as duas faces de JJANGYOU vão para além do lado visual. A sua bipolaridade nota-se também pelo tom humorístico com que emprega o inglês no diálogo com a massa adepta, que contrasta por completo da forma impiedosa com que descarrega a raiva no microfone. Se fosse o personagem de um filme, seria certamente Oh Dae-Su do clássico de culto Oldboy, capaz de nos varrer a todos à martelada no auge da sua loucura como um verdadeiro one man army quando exerce a sua arte, tal e qual a imortal cena viciosa filmada num só take ao longo de um corredor dentro da mencionada película de 2003. Só que aqui as ferramentas usadas para nos castigar são a sua voz enraivecida e a pujança das batidas, fortes de tal forma ao ponto de fazerem tremer o chão por vezes. Bendito Mucho Flow por nos permitir ter acesso a estas relíquias musicais que muitas vezes se eclipsam dos radares devido à saturação do mercado. A discografia de HYPNOSIS THERAPY vai, certamente, continuar a rodar pelos nossos ouvidos.