A estreia de Mishlawi ganhou finalmente contornos oficiais e o primeiro disco já é uma realidade. O burburinho pode até nem ser o mesmo de quando os primeiros singles rebentaram, muito por culpa de uma escrita em inglês pouco ou nada habitual na cena de 2015, só que Solitaire chega na melhor altura. O luso-americano já disse que antes de “Limbo” não queria realmente cantar ou assumir-se como cantor, e que os temas anteriores não passaram de experiências, mas acabou mesmo por seguir o caminho que todos lhe adivinhavam e chegou a 2019 como um verdadeiro r&b singer dos dias de hoje. Por mais cambalhotas que a forma vá dando, a escrita de um MC nunca o abandona e Mishlawi continua a ser um dos poucos artistas nacionais que se move realmente à vontade entre graves, agudos e flows multissilábicos — mesmo agora, que está longe de ser o único a escrever em inglês para depois “cuspir” algures na fronteira do rap com o r&b.
E como quase sempre acontece, o mérito tem que ser repartido com o homem das máquinas. Se, por um lado, melodias como as de “New Thang” ou “Selfish” nos transportam para um universo paralelo — mas não muito distante — onde a música só se ouve de olhos fechados e copo na mão, com direito a um passinho de dança, as tarolas e os hi-hats de Prodlem são a rede de segurança ideal para os que só conseguem curtir a sério, sem a falsa sensação de guilty pleasure, quando ouvem e sentem hip hop. Claro que Mishlawi continua a ser para os apaixonados, e “Uber Driver”, “Bad Intentions” ou “I Could” dão seguimento às aventuras do romântico de “Boohoo” e “All Night”, só que Solitaire não veio a reboque de uns quantos apontamentos orelhudos ou declarações de amor mais ou menos previsíveis. Por exemplo: a charmosa “Honor Roll” tem tanto de apelativa como de madura, e a emocional “Need a Hug” não deixa de ser um dos momentos mais fortes e seguros de Solitaire.
O artista da Bridgetown tem hoje uma escrita mais apurada do que há um par de anos, quando versos e refrões pareciam seguir direcções diferentes — como na própria “All Night”, em que Mishlawi se desdobra entre o refrão de pinga-amor que todos conhecem e umas quantas linhas soltas de egotrip e punchline, como “Clench your teeth and bite my flow/These folk is bogus, y’all go home”. Ao primeiro disco, que originalmente até foi pensado para ser uma mixtape, nada ficou ao acaso: há uma média perfeita de três minutos por faixa, numa tracklist que está excepcionalmente alinhada para intercalar, sem falhas, as jóias da coroa com os momentos mais ligeiros ou aqueles temas que, mesmo sem o fulgor dos singles, deverão reunir as preferências dos mais atentos, como “Win Some Lose Some” ou “Figure it Out”, dois dos momentos mais singulares na curta mas rica carreira de Mishlawi.
Chegados a 2019, Portugal continua a sonhar com o movimento r&b que nunca teve mas, como sempre aconteceu, a realidade continua a presentear-nos com nomes capazes de manter essa esperança bem viva (e sempre em comunhão com o hip hop, estejamos nós a falar de Mishlawi, GSon ou Richie Campbell). Podia comparar-se o rapper da Bridgetown aos mais sonantes e versáteis intérpretes do panorama internacional, para o enaltecer, ou até aos mais afamados liricistas nacionais, para provar que Mishlawi não é assim tão bom… Só que pelos vistos até é. E Solitaire, além de bom, é um dos melhores discos do nosso hip hop contemporâneo e um dos melhores discos da nossa “música urbana”, essa entidade fantasmagórica que começa a ganhar contornos.