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Fotografia: Ana Viotti
Publicado a: 06/10/2022

Problemas antigos, esperanças renovadas e o futuro à espreita.  

MIL Lisboa 2022: medir o impossível, escutar o amanhã e multiplicar a paixão enquanto factor de mudança

Fotografia: Ana Viotti
Publicado a: 06/10/2022

Quando há um ano dezenas de profissionais do setor da música se encontraram na edição de 2021 do MIL, ainda vivíamos uma profunda incerteza quanto ao futuro da cultura e da música ao vivo. Entre o otimismo da vontade de algumas pessoas, e o pessimismo da razão de outras, toda a gente parecia concordar que o futuro não podia ser um mero regresso ao passado.

A dolorosa experiência da pandemia expôs as injustiças, desigualdades e fragilidades laborais do setor, a sua urgente reestruturação ambiental e a premência da aposta em políticas de igualdade, representatividade e inclusão. Passado um ano desse encontro, a pandemia parece ser um assunto do passado, ao contrário de muitos dos problemas estruturais do setor cultural e da música que continuaram a estar no centro dos debates desta edição, que ocorreu nos dias 28, 29 e 30 de setembro, entre o Hub Criativo do Beato e o Cais do Sodré. Talvez por isso, o programa convenção deste ano tenha sido particularmente focado na relação entre a música e as políticas públicas e culturais. Foi essa relação, aliás, que Andrew Ogun discutiu logo na abertura do encontro. 



[CONVENÇÃO: VELHOS PROBLEMAS, NOVOS DESAFIOS E A COOPERAÇÃO COMO FUTURO]

Para Andrew Ogun, a cultura não pode estar desenraizada dos grandes problemas do seu tempo, considerando fundamental que o pulsar das lutas sociais que se expressam através da cultura chegue ao campo das instituições e das políticas, com todos os dilemas que isso evidentemente coloca. “É preciso criar legados”, sustenta Ogun, para logo a seguir, recuperando Audre Lorde, nos perguntar: “Will we be able to dismantle the Master’s House using the Master’s Tools?”. É uma pergunta imprescindível a que Ogun oferece uma resposta tanto pragmática como estratégica. Para Ogun, é urgente que os artistas e agentes da cultura empenhados em processos de mudança conquistem cargos de decisão política e institucional. No entanto, essa conquista só terá relevância se compreendermos que o objetivo estratégico não é chegar à mesa dos poderosos, mas antes criar as condições para que as comunidades construam as suas próprias mesas de trabalho, poder e decisão. 

O guião de Ogun acabou por ser premonitório para muitos dos debates onde se discutiu como o setor cultural, designadamente o independente, se deve posicionar e relacionar com os Estados, os decisores políticos e institucionais e até com os grupos económicos que determinam muitas das regras do setor. Por exemplo, num debate em que se discutiu “Como e porquê medir o impacto da cultura na sociedade?”, a investigadora Alessandra Gariboldi, e a especialista em políticas culturais Valentina Montalto, insistam que só é possível haver um maior reconhecimento político do setor se for possível medir o seu contributo para a sociedade. “Politics need numbers, or we’ll have a weak lobby”, sustentava Alessandra, embora a sua opinião não recolhesse consenso no painel, com Benjamin Feyen, secretário-geral do Cultural Creators Friendship Group, a argumentar que o impacto subjetivo da arte nos indivíduos e nas comunidades não pode ser medido por indicadores quantitativos abstratos. Opinião secundada por uma pessoa do público: “How do you measure empathy?”

Entre o pragmatismo e o romantismo, talvez a resposta esteja a meio caminho: nem a ditadura utilitarista dos números, nem uma atitude ingénua em defesa dos princípios não mensuráveis da arte, logo incapaz de disputar um lugar de relevo nas políticas públicas. Os métodos de análise são vários e nascem sempre das interrogações que se fazem. E a mais importante das interrogações colocou-a Alessandra: “Medir como, porquê e com quem?” Essa é a pergunta que deve estar subjacente sempre que se interage, negocia e luta com decisores políticos e/ou institucionais. 

Paralelamente, para lá da relação do setor cultural com os estados, governos e instituições, muitos dos debates que se deveriam centrar na especificidade do setor cultural, acabaram por avançar numa discussão mais profunda sobre a relação entre as políticas culturais e as políticas sociais, económicas e urbanas. Quando, por exemplo, a gestora Alicia Ruiz Muñoz e a fundadora da Sister Midnight Lenny Watson debatiam “O que faz um espaço cultural?”, foi inevitável que, para lá das questões artísticas, o diálogo se tenha focado nos processos de gentrificação de cidades. O problema, diz Muñoz, não é o facto de os artistas contribuírem para a gentrificação, como muitos apontam, mas a própria desregulação do mercado imobiliário, a desestruturação das comunidades e a desproteção laboral dos profissionais do setor artístico e das comunidades mais vulneráveis. 

O mesmo aconteceu num outro momento em que se discutia a questão do “Booking num mercado concentrado”, e no qual todas a todos os agentes concordaram que as dificuldades do booking, sobretudo para artistas independentes ou emergentes, são as mesmas dificuldades que enfrentam os próprios clubes e venues de pequena e média dimensão, que lutam pela sobrevivência em cidades liberalizadas e excludentes. Mesmo os espaços noturnos, cujos modelos de governo foram debatidos noutro painel, apesar de terem um contributo fundamental para a vida social e cultural das cidades, só são discutidos no campo das políticas públicas quando há problemas, geralmente “solucionados” com mais polícia e controlo social. 

O problema de fundo, parece ser essa uma das conclusões que atravessa os painéis, é que nas sociedades capitalistas em que vivemos, a cultura transformou-se num bem mercantil como qualquer outro, servindo para “vender as cidades”, mesmo que isso implique a desestruturação das comunidades locais e a sua diversidade. Daí que, quando se discutiu o papel da cultura na transição das cidades, António Brito Guterres tenha imposto a pergunta fundamental: “Quem é que cabe e não cabe no conceito de cultura usado nas políticas culturais”? O investigador sabe do que fala, desde logo pela sua experiência na Área Metropolitana de Lisboa, onde o trabalho com a cultura é frequentemente visto como “trabalho social”. E por isso é peremptório na afirmação de que, em muitos casos, os programas de políticas públicas que dizem querer envolver as comunidades acabam por desenhar políticas sem ouvir praticamente ninguém.  

Num MIL muito concentrado em olhar para fora, muitos também foram os debates em que se olhou para dentro do próprio setor cultural, identificando-se, sem surpresa, a desproteção laboral do conjunto do ecossistema socioprofissional do setor da cultura e da música. Para que estes profissionais sejam valorizados é preciso que haja um reconhecimento do seu papel, contrariando a irresponsabilidade de deixar às grandes plataformas digitais a gestão da mediação entre os artistas e o público, através de algoritmos que estruturam um modelo de governação dos gostos. Daí a pedagogia, insistente ao longo dos três dias, na importância das estruturas coletivas no setor artístico. 

Para dar um exemplo, num debate sobre “O que é uma editora de música em 2022?”, Pierre Hall, Charlotte Caleb, Theresa Langner e Márcio Laranjeira procuraram argumentar, quanto a nós de forma convincente, que a ligação dos músicos com uma estrutura editorial, sobretudo no caso das independentes, pode ser uma forma  de contrariar a transformação dos artistas em influencers, gestores de comunicação, marketing e de negócios, bookers, e tudo o mais que os afastes dos processos de criação artística, que é afinal a sua vocação. Estar numa editora permite fazer parte de uma “expertise coletiva”, construída coletivamente ao longo de anos, e que em muitos casos assegura um statement of quality que está para lá dos algoritmos e de quem os controla. Paralelamente, permite aos artistas fazerem parte de uma comunidade que mitiga a pressão para a ultraexposição em redes sociais, onde é imperioso ter números atraentes para os promotores. Tudo isto, advertem, com a devida precaução quanto aos contratos que se assinam e com a necessidade de se conhecerem todos os membros da estrutura. 

Em muitos dos profissionais que circulam pelo MIL há um romantismo e um apelo à cooperação que é de salutar. Um juntar de forças para uma batalha de David contra Golias, onde, como argumentava Andy C. Pratt na edição do ano passado, as três principais empresas discográficas determinam 80% da música que ouvimos. Por isso, tal como no ano passado, as baterias continuam apontadas sem grandes rodeios ao poder crescente e pouco escrutinado das grandes empresas tecnológicas que determinam a economia política do streaming, e cujos dados que recolhem crescentemente se cruzam com as bases de dados do público, centralizadas pelas empresas de venda de bilhetes, e com as políticas de programação, que fazem da gestão dos dados o alfa e ómega da sua estratégia de curadoria. No meio de tudo isto, fica o apelo de Lenny Watson: “Cooperation is the future!”. Não um futuro utópico, mas concreto, feito de redes já existentes, muitas das quais partilhadas no MIL, que por economia de espaço não mencionamos, mas cuja importância vem sendo discutida na sua revista, disponível por aqui



[FESTIVAL: SEGREDOS E CONFIRMAÇÕES DE UM FUTURO FIXADO EM RAÍZES SÓLIDAS]

A Convenção do MIL foi uma clara demonstração dos problemas estruturais que persistem no setor da cultura e da música. Talvez por isso, o programa do festival tenha sido um excelente contraponto para balancear algum pessimismo e evidenciar porque é que, apesar das dificuldades, ainda vale a pena continuar a lutar pelo setor. 

Foi assim que, sempre que o sol se pôs no horizonte, todos os caminhos foram dar ao Cais do Sodré, e a alguns dos seus clubes mais vibrantes. O MIL prometeu-nos descobertas que ainda são segredo. Diríamos, num balanço geral, que a missão foi cumprida, ainda que o festival também nos tenha permitido celebrar projetos de músicos que trazem na bagagem um longo e sólido percurso. 

Um desses artistas é prétu, que nas últimas duas décadas nos formou cultural, social e politicamente sob o nome de Chullage. Neste novo projeto confluem todas as viagens de um rapper profundamente conectado com as lutas sociais, mas que agora se apresenta com uma sonoridade ainda mais desafiante, inventiva e com um olhar bem fixado tanto nas raízes quanto no futuro. Depois de o vermos cheio de força e confiança numa das edições da Fidju-Fema, prétu repetiu a dose no B.Leza na quinta-feira, dia 29, permitindo-nos assistir a muitos dos temas em que tem trabalhado e aos quais acrescenta uma dimensão audiovisual onde marcam presença alguns dos seus colaboradores recentes: Tristany, Scúru Fitchádu, Cachupa Psicadélica, Dino D’Santiago, entre outres. Um espetáculo em que a negritude, símbolo de luta e beleza, raízes e futuro, marca o compasso de um projeto que esperamos que conquiste muitos mais palcos. 

Próximo destino Roterdão, não sem antes fazermos uma paragem pelo Titanic Sur Mer, onde vimos Milian apresentar o seu espetáculo performático e multidisciplinar. Apesar de um início atribulado, a sua “música para chorar, dançar e fritar”, ancorada nos trópicos e de dimensão experimental, fez com esta “dama da noite” rapidamente conquistasse a numerosa plateia que foi ao seu encontro. Quando deixamos a sala, a pista estava absolutamente conquistada. 

Direção Roterdão, dizíamos nós, onde o entusiasmo era muito, numa sala que se revelou demasiado pequena para Soluna, uma das mais promissoras artistas sediadas em Lisboa. Elegante, sorridente e confiante, Soluna engendrou uma conexão quase imediata com uma plateia de várias partes do mundo e que se rendeu à sua frutuosa mistura de reggaeton com tarraxo. Ao leme do som esteve Uma Africana, que disparou os beats, aos quais haveriam de juntar os dois convidados da noite: primeiro Lucy Val e depois Niiko, parceiros com quem Soluna tem trabalhado em temas que só esperamos que possam em breve ver a luz do dia. Numa sala onde não couberam todos os interessados, Soluna confirmou que tem todas as condições para voar muito alto. 

De volta ao Titanic Sur Mer, e ainda a balançar com Soluna, o ambiente era silencioso e introspetivo, olhos postos em Rosie Alena. Do Reino Unido para Lisboa, a cantora e compositora mostrou-nos um pouco do seu universo, perante um público que a escutou atento, de início ao fim, rendido ao seu encanto vocal e narrativo. Trouxe consigo o seu álbum de estreia, Pixelated Images, editado este ano, e foi através dele que confirmou que estamos perante uma entusiasmante e muito promissora escritora de canções. 

Circulando apressadamente entre clubes, numa noite preenchida com 26 concertos e duas festas, ainda tivemos tempo de assistir à performance de Isabel do Diego, construída num lugar de interseção entre o brutalismo, os ecos industriais e as heresias emocionais; e, num extremo diametralmente oposto, à sensibilidade lírica de Verde Prato, voz fundada na tradição oral basca, tanto trágica quanto doce, acústica e elétrica, e sempre ancorada na dimensão narrativa com que construiu o seu Kondaira eder hura (2021). 

Entretanto, a afluência de gente ao Lounge já não nos permitiu assistir ao aguardado concerto de Iolanda, que visto de fora, parecia estar a ter uma reação muito calorosa. Entre os concertos que perdemos nessa noite, diz-nos o público com quem metemos conversa que Lewis Ofman trouxe um groove que arrebatou o Musicbox, que igualmente se rendeu à potência multidisciplinar de L’Homme Statue. Contam-nos, também, que Puta da Silva foi uma loucura no B.Leza, o que não nos surpreendeu, depois do que vimos no Iminente.

Na noite seguinte, sexta-feira, dia 30, viveu-se o mesmo rodopio, de concerto em concerto até se acabarem as baterias. Começamos às sete e meia, atestando a garra punk e ginga funk que As Docinhas fizeram ecoar no Auditório da ETIC, conquistando os primeiros festivaleiros da noite. E logo de seguida, no Lounge, foi a vez dos Kriol, dupla formada por Danilo Lopes e Renato Chantre, que nos trouxeram um pouco da sua história, convidando-nos para uma viagem pela reinvenção do cancioneiro cabo-verdiano, com paragem obrigatória na obra de Orlando Pantera. Dançamos bem, e felizes, ao som da dupla que se despediu com o seu single de estreia, “Tempo Djá Muda”, tema pujante, esperamos que seja o primeiro de muitos.  

Praticamente sem pausas, seguimos para as salas perto do Tejo, onde assistimos a dois momentos mágicos, estreias absolutas em Portugal. Primeiro com Reinel Bakole, artista belgo-congolesa de potência estonteante, e que seguramente terá Erykah Badu como guia ancestral. Bakole é uma artista total: cantora de sensibilidade apurada, compositora de groove doce e vibrante, bailarina de conexão profunda à música, performer íntima e irresistível. Não temos dúvidas que, mais cedo que tarde, estará sentada à mesa da realeza do mais vibrante neo-soul. 

Depois de Bakole, a exigência ficou elevada, e assim se manteve depois de um outro dos grandes momentos da noite, que aconteceu no Titanic Sur Mer, quando Bikôkô tomou o palco. Problemas com os voos fizeram com que não pudesse tocar com a sua banda, mas nem isso foi um handicap para a artista com, com apenas 20 anos de idade, nos trouxe uma madura sonoridade inscrita num r&b moderno, fundido de tons experimentais, mas sempre dialogando com uma reinterpretação da herança camaronesa das suas origens. Para além de Alma Alma, disco de estreia de 2021, trouxe na mala inéditos, e uma versão acapella, um dos mais bonitos momentos do festival, cantada num dialeto dos camarões que arrebatou os corações da sala. A música foi sempre o mais importante, ainda que a sua empatia com o público também tenha sido evidente pela forma genuína e despretensiosa como fala destas suas primeiras experiências em palco, e como sorri, meio envergonhada meio orgulhosa, sempre que cada música se conclui e arrebata um aplauso da sala. O futuro é dela. 

Entre estes dois momentos, vimos ainda Hinako Omiri, no auditório da ETIC, que nos convidou para uma viagem espiritual guiada por uma eletrónica expansiva e espetral que preenche cada uma das pessoas que sentadas no chão se deixam levar pela experiência; Davi Sabbag, cruzando os terrenos da pop com o r&b, que tinha também casa cheia no B.Leza, com um show repleto de fãs  bem conhecedores do alinhamento. E Trypas Corassão, claro, que no Lounge voltaram a fazer da beleza uma vingança, num concerto-performance cheio de ruído e a cremosidade, suores partilhados e uma fila à porta que durou até ao fim do ato. 

Depois de tudo isto, corrupio absoluto de sons e emoções, ainda guardámos energia para ver Danifox conquistar a pista do Musicbox, com a potência e o bom gosto com que nos tem habituado, antes de DJ Carin, que tanto gostámos de ouvir na convenção, encerrar os trabalhos. Já não assistimos ao ato final, mas a avaliar pelo fogo com que deixamos a pista, não temos dúvidas que o encerramento fez justiça a esta excelente edição do MIL. Até para o ano!


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