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Fotografia: Filipa Martins, Miguel Chorão, Eduardo Filho, Ana Viotti e António Almeida para o MIL Lisboa 2021
Publicado a: 23/09/2021

Reaprender a andar.

MIL 2021: debates estratégicos para mudar o futuro

Fotografia: Filipa Martins, Miguel Chorão, Eduardo Filho, Ana Viotti e António Almeida para o MIL Lisboa 2021
Publicado a: 23/09/2021

Há perspetivas distintas, cenários diversos, mas sobretudo muita imprevisibilidade quanto ao futuro da indústria musical e, muito em particular, quanto ao futuro do setor da música ao vivo no pós-pandemia. Os problemas são variados, uns mais conjunturais outros mais estruturais, e as expectativas diferem, até pela posição que cada pessoa e cada organização ocupa no setor. No entanto, nesta quinta edição do festival MIL, que aconteceu entre os dias 15 e 17 se setembro, ninguém parecia realmente acreditar, ou mesmo desejar, que o futuro venha a ser igual ao passado.

O encerramento e a falências das salas e dos clubes, o cancelamento generalizado de concertos, digressões e festivais e a lenta recuperação dos públicos e das agendas, expôs as fragilidades estruturais de um setor onde proliferam situações de precariedade e estabilidade laboral, muitos tipos de invisibilidades, expondo ainda as profundas desigualdades de poder no seio da indústria e do setor da música ao vivo. 

Como dizíamos, para as centenas de profissionais que se encontraram no Hub Criativo do Beato, nada poderá ficar como antes, mesmo que os caminhos sejam imprevisíveis. Sente-se que o futuro está realmente em aberto e, apesar do tom fatalista que aqui e ali se fizeram sentir, a generalidade dos debates e das conversas de bastidores, concentraram-se em algumas das discussões estratégicos do setor, rumo a uma reorganização em que todos parecem estar concentrados. 

Um dos debates estratégicos mais estruturantes, que atravessou os três dias, centrou-se no futuro modelo de negócio do setor. As baterias são apontadas sem grandes rodeios ao poder crescente e pouco escrutinado das grandes empresas tecnológicas que determinam a economia política do streaming, tal como à concentração da produção musical nas três principais empresas discográficas que, segundo o investigador Andy C. Pratt, protagonista da conferência de abertura, dominam e determinam 80% da música que ouvimos. 

Desta forma, muitos foram os debates que se centraram no repensar dos festivais, na valorização os direitos dos artistas, na construção ou reforço de redes e plataformas de otimização de recursos e nas melhores estratégias para pressionar os Estados ao desenvolvimento de políticas públicas que protejam o setor. Tudo isto num contexto que todos admitem adverso, marcado por um lento regresso da música ao vivo, por um amplo conjunto de falências de salas e espaços de concertos, por uma sobrecarga de edições e, em muitos casos, por uma dificuldade de relacionamento com um público que não só perdeu rendimento, como ainda está a reaprender a relacionar-se nestes espaços. 

Todas as discussões sobre a sobrevivência económica do setor, e em particular do setor independente, tinham subjacente uma preocupação com um caráter mais amplo: a proteção do ecossistema social do setor da música ao vivo. Por isso, foram muitas as vozes que acentuaram a necessidade de haver reconhecimento generalizado dos direitos do trabalho e uma dignificação das profissões do setor. Os debates foram variados, passando pelo apoio à criação e à liberdade artística, pelos programas educativos, pela proteção das carreiras contributivas dos intermitentes do espetáculo, pelo reconhecimento e valorização de quem faz a intermediação entre a música que se cria e a música que se frui: managers, tour managers, equipas de som, palco, luzes, cenografia, PRs, promotores, divulgadores e muitos outros. Apesar da precariedade não ser uma novidade no setor, a pandemia expôs de forma particularmente violenta a sua fragilidade um pouco por todo o mundo, forçando igualmente a que se pense não apenas nos grandes palcos e aparatos comerciais, mas também na cultura que se forma nas escolas, nas ruas, nos bairros e nos territórios, em salas pequenas e no espaço público.

Toda a discussão sobre o modelo de negócio e a proteção dos seus profissionais, esteve também submetida a uma preocupação generalizada quanto ao peso ambiental de um setor que implica movimentações massivas de audiências, profissionais, materiais, um grande desperdício de resíduos, e-trash e tecnologia com cada vez maiores exigências em termos de processamento e armazenamento de dados. Todo o setor precisa de uma reorganização ambiental, o que também implica, segundo muitos participantes, repensar a própria organização cidades e os seus espaços de criação e fruição, os transportes dos públicos e as condições de acesso, a importância das pequenas escalas, da descentralização da oferta, tal como a promoção do cruzamento de públicos de escalas menos longínquas. A aposta, por exemplo, na promoção das conexões entre Espanha e Portugal foi um dos temas importantes, o que igualmente se refletiu nas magníficas residências artísticas de Pedro da Linha com Álvaro Romero e de Tarta Relena com Lavoisier.   

Ora para um modelo de negócio mais justo, uma dignificação dos profissionais e uma reconversão ambiental, é necessário também uma organização política e coletiva do setor. Esse foi também um dos debates que atravessou os painéis onde se abordaram múltiplas possibilidades: dos sindicatos e cooperativas de músicos à proteção de arquivos e da herança cultural, da negociação coletiva às conexões entre artistas, da ligação ao território às estratégias de pressão sobre os decisores económicos e políticos. 

Política, ainda, num sentido mais amplo, já muita gente insistiu que o setor não pode preocupar-se meramente com a sua sobrevivência, desligando-se do mundo em que se insere. Neste plano, salientou-se a importância da música e da oferta cultural enquanto forma de conexão social, perante as tendências de fechamento, xenofobia, ultraconservadorismo e nacionalismo. Importância que não foi só teórica, mas também artística, veja-se as múltiplas expressões de diversidade em palco, do afro-presentismo de Tristany à desconstrução do binarismo de Dianna Excel, do afro-r&b da luso-angolana Carla Prata à negritude implicada de YN, passando raízes fundidas de Acácia Maior ou A’mosi Just a Label.

Diversidade foi uma palavra importante no MIL, com vários promotores e programadores a insistirem que promover a diversidade não significa apenas abrir espaço no slot de artistas. Significa, pelo contrário, repensar a estratégia geral dos eventos: da constituição das equipas aos espaços de decisão, dos locais escolhidos aos diálogos com o território, da relação com os públicos à programação e comunicação. Não deixamos de nos perguntar, a este respeito, se o próprio espaço que acolheu o MIL não era também ele um impedimento a essa diversidade, nomeadamente para pessoas com deficiência e diversidade funcional que teriam bastante dificuldade em assistir a muitos dos debates e dos concertos. 

Mais justiça no negócio e no setor, valorização, dignificação e proteção dos profissionais, reconversão ambiental e aposta na diversidade. Estes parecem ter sido alguns dos debates estratégicos de um festival onde, como se dizia no início, ninguém parece querer voltar ao ponto de partida. Apesar de haver muitos debates por continuar e muitas ideias por concretizar, cremos que no MIL ajudou a construir novos caminhos para um setor que não pode adiar o futuro.  

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