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Fotografia: Tatiana Lages
Publicado a: 24/02/2024

Numa programação desconhecida até começar.

menor’24 — Dia 1: qualquer coisa antiga de recente

Fotografia: Tatiana Lages
Publicado a: 24/02/2024

Um atrevimento desafiante, no risco de pôr em jogo as premissas básicas da programação cultural, serviu de ideia maior para a 2ª edição do menor — Festival de Música Electrónica do Teatro Académico de Gil Vicente (TAGV) em Coimbra. Até ao instante de ter público sentado no lugar e tudo pronto a começar atrás da cortina de palco, apenas o programador, Alexandre Lemos, os técnicos de palco e os próprios músicos sabem quem será protagonista no festival. Segredos difíceis de guardar, num tempo em que a partilha massiva de informação é o mote dominante dos dias. Também noutros palcos recentes se ousou programar com tais requintes. No ano transacto o programador Bob Van Heur, em entrevista concedida a Maria Carvalho para o Rimas e Batidas, explicava a ideia da “experiência auditiva mais pura e sem quaisquer preconceitos” a propósito do Anonymous Project no decurso do Le Guess Who?’23 em Utrecht. Aí o público nunca ficaria a saber directamente quem tinha actuado, tudo se passava numa caixa opaca de onde apenas saía a música tocada em palco. Aqui no TAGV, os nomes ficaram anunciados pela mesma voz doce, aquela que instantes antes nos relembra para silenciar aparelhos e nos dita outras regras de bom comportamento em plateia.

João Hasselberg, o primeiro dos dois nomes revelados para a noite. O músico-fotógrafo-arqueólogo, multidisciplinar em palco e fora dele, que faz desta ocasião a estreia ao vivo do mais recente álbum a solo The Weight of Light, editado em Novembro último e que abre de par-em-par as possibilidades sónicas de uma nova música electroacústica de Hasselberg. O palco a denunciar isso mesmo, um piano de cauda a fazer ângulo recto com os dispositivos electrónicos necessários, entre eles um sintetizador. Instrumento fundamental, neste palco, que sustem a força imposta pela ambiência transposta dum final de dia suspenso com um gigante halo cor de fogo com propósitos de cruzar a linha do horizonte. O peso da luz pensada em palco para servir a música feita de rugosidades texturais densas. As camadas da estratigrafia que Hasselberg se ocupa em palcos dos subsolos feitas emergir neste lugar. Um passado transposto ao presente para revelar o que é trazido entre mãos, estas mesmas que disparam habilmente linhas cronológicas a definir a dimensão do tempo. Naquilo que resulta na práctica numa música atonal, desafiando os princípios hierárquicos, uma ideia do presente da música de Hasselberg a servir de chave descodificadora do passado que procura entender e revelar. O principio do uniformitarismo trazido à música, o autor músico-estratígrafo, mas também é o músico a largar as suas ferramentas habituais, as que definem em marcam o tempo — o baixo e o contrabaixo. Antes ali socorrido por frases esporádicas ao piano como que a desenhar um tempo mais recente e solar sedimentado às camadas mais profundas da electrónica. Do que em disco surge em sete faixas resulta na prestação de palco num continuum num desvendar da luz como matéria sonora que percorre um arco temporal desde ascensões, celestiais, auroras, até um eclipsar. A pausa de reverendo agradecimento do músico à plateia serviu de prenuncio de despedidas à entrada da última peça escutada, num prolongado final.

Surma é o segundo nome bem guardado da noite. Desce ao palco, porque Surma surge vinda de outros espaços, desde os quais o palco é um lugar cá em baixo. E em palco desce aos dispositivos que preenchem a mesa rés-do-chão. E neles mergulha a pique para um estilo de propulsão aquática como a da figura imaginada para a capa do seu disco alla. Não prescinde em toda a prestação dessa persona manipuladora obcecada com o tricotar na electronica multicolor. Esta música desta música é a resposta devocional à perda irreparável de voltar a ouvir novas composições trazidas pelo mestre Ryūichi Sakamoto. Numa homenagem em forma de composição, Surma surgiu com if i’m not home : i’m not far away, no final de 2023, a música inspirada nos silêncios, mas expirada em diversidades sónicas. Uma palete de cores sonoras que fazem pintar um palco de cores, que as luzes ajudam a dimensionar. É uma electrónica cromática, que num traço continuo sonoro faz uso de tonalidades ininterruptas, entre o resplandecente e brilho cintilante, preenchem o espaço criativo e entusiasmado de Surma. Há uma fruição genuína de uma fonética inventada que se aprende facilmente num ensino à distância entre palco e plateia. É uma música identitária, mas que procura a fala dos outros, neste caso de Sakamoto. E os outros, fontes permanentes de inspiração, são também os cúmplices da viagem no lugar da noite. Surma chama, no olhar, Hassel — Hasselberg. Junta-se à sua música para trazer a aura sónica para um saber fazer a dois o mais difícil — o fechar de tudo aquilo. E é um final em suspenso num som espectral evolutivo, a pairar….

Resultando noutra estreia absoluta em palco, de novo um novo registo discográfico, é as tantas este o leitmotiv maior deste menor, como motivo recorrente fora da música propriamente tocada. Ficamos para ouvir e conferir no segundo dia de festival, revelado o segredo da primeira noite.

(A expressão usada no título desta peça devo-a à minha filha Laura.)

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