Numa cidade como Utrecht, em que o barulho acutilante das correntes das bicicletas parece estalar nos nossos ouvidos, torna-se impreterível conseguir parar para ver e ouvir música. Não fosse o Le Guess Who? ter escolhido como casa esta pequena cidade Holandesa, que esconde dentro de si mesma uma caixa de Pandora na qual se desdobram todas as possibilidades para os maiores melómanos, não saberíamos o que seria feito de todos os peregrinos musicais que se deslocam até a uma das cidades mais antigas dos Países Baixos para explorar os lugares e experiências que o festival pode proporcionar.
A acontecer desde 2007, as sementes plantadas pelo Le Guess Who? já viram os seus frutos brotarem em projetos como a plataforma Cosmos e, mais recentemente, num spin-off do festival chamado apenas U?. Porém, não é só destas sementes que podemos falar, mas sim de todas as ideias que, através da mente de quem colocou este ponto de interrogação no mapa da indústria da música, desafiaram os olhares e os pensamentos de uma audiência que, na era da saturação, se vê forçada a parar e a refletir sobre outros pontos de interrogação.
Este ano, a maior pergunta incidiu sobre um projeto pensado por Bob Van Heur, diretor do festival que, impactado pela ideia do anonimato e pelo valor da performance mais do que pelo “nome” do artista, decidiu “vendar” os olhos ao seu público e proporcionar-lhe uma experiência única. Anonymous Project foi, como o nome indica, um momento de anonimato exclusivo que aconteceu no primeiro dia do festival e que colocou três artistas não anunciados a performar num cubo, através do qual não se conseguia ver nada além de uma projeção visual acompanhada por uma viagem sonora. Sem nomes anunciados, sem rostos para onde olhar a não ser o das pessoas que permaneciam na plateia, o segredo mais bem guardado de Bob fez levantar a curiosidade de cada um de nós.
Dias depois, o Rimas e Batidas sentou-se com o diretor do festival e propulsor da ideia para o Anonymous Project, dentro do TivoliVredenburg, para debater e refletir sobre o papel do artista, dos concertos e do futuro da música. No final desta conversa, falamos sobre as maiores vontades para a próxima edição de 2024, cujos bilhetes já estão à venda e, diga-se de passagem, estão a voar.
De onde surgiu a ideia para o Anonymous Project?
Isto já está na minha cabeça há algum tempo. No início levantámos alguns pontos de interrogação porque, claro, a “cena” do Le Guess Who? é um ponto de interrogação. Eu sempre me debati com o facto de como é que as pessoas ouvem música, como é que elas experimentam, o que é um cabeça-de-cartaz… E senti que este projeto preenche todos esses requisitos. Afinal, o que é um cabeça-de-cartaz se não se sabe o nome do artista? É mais interessante porque não se sabe quem é? Ou seria musicalmente mais interessante se não soubesse o nome? O público está menos interessado em ouvir, se não souber quem é? Acho que isso é uma questão pessoal de cada um. Mas também para os artistas: se fores, digamos, um artista bem conhecido, posso dizer que havia bastantes artistas bem conhecidos a tocar no cubo…
Já lá vamos chegar… [Risos]
Não vais ter resposta para essa pergunta [risos]. Mas, digamos em forma de piada, se fores os Bon Iver, o público vai esperar que toques muitas coisas que eles conhecem, obviamente. Há apenas algumas bandas como os Radiohead ou os Animal Collective que conseguem estar sempre a experimentar porque o seu público está “treinado”, mas a maioria das bandas não está.
Mas essa é a questão principal sobre a atuação, certo? A melhor forma de atuar é trazer algo novo ao público, não apenas tocar um álbum.
Não é necessariamente novo. Nunca lhes pedi que fizessem nada de diferente, para mim era ótimo se quisessem tocar os êxitos deles. E acho que o primeiro tocou de facto alguns dos seus “chamados” êxitos. Por isso, houve algumas pessoas que o reconheceram de certeza. Mas depois o segundo era uma coisa completamente nova e experimental e o terceiro era também com música já existente, mas música bastante espiritual, bastante flexível e sonora. Mas, sim, acho que este projeto tinha como objetivo criar mais liberdade para os artistas e criar uma experiência auditiva mais pura para o público, sem quaisquer preconceitos sobre o artista ou julgamentos que as pessoas possam ter com base na sua carreira, na sua personalidade ou em qualquer outra coisa. Eu só queria tirar isso tudo. Acho que começar o festival numa quinta-feira é uma boa maneira de dar o tom.
Ia-te perguntar o que é que o anonimato deveria trazer aos artistas, mas acho que já respondeste. Trata-se de liberdade, como disseste — dar liberdade aos artistas, para que possam decidir o que fazer.
Não estar dependente da interação com o público, de forma a não ter de fazer um espetáculo e poder concentrar-se apenas nas coisas musicais e ser mais preciso como músico, na sua atuação. Porque também não tens de entreter ninguém, podes fazer a música que queres fazer, em vez de tentares agradar ao público. Assim, todas essas coisas ficam de fora e torna-se uma experiência auditiva, pura para o público e para os artistas.
O que é que achas que esta experiência traz ao público?
Muita confusão, de certeza. Acho que muitas da pessoas geralmente pensam “quero saber quem está a atuar”, mas também acho que há curiosidade. E acho que a melhor coisa é que, para cada membro da audiência, quem quer que seja que eles pensavam que estava no cubo, era quem que estava no cubo. Assim, torna-se uma experiência pessoal para cada pessoa. Pode ser a Madonna e para outra pessoa pode ser a Beyoncé. E se acreditarem, e se pensarem honestamente que a ouviram, então é essa a experiência que têm.
Estava a pensar no fenómeno da memória coletiva. As pessoas podem, de facto, construir um mito em torno de uma história ou de algo que vêem. Alguma vez tiveste isso em consideração quando pensavas no Anonymous Project? Alguma vez pensaste que as pessoas iriam falar sobre isto?
Eu diria que proporciona e abre conversas entre as pessoas, e acho que isso é bom. Quando vamos a um espetáculo, vemos o espetáculo e, cinco minutos depois de ter acabado, não falamos sobre ele e seguimos em frente. Acho que, como há tantas incógnitas para o público, continuamos a falar sobre o assunto e a partilhá-lo, porque queremos saber mais. Por isso, no final, não lhe chamaria uma memória coletiva, mas acho que é definitivamente uma experiência coletiva.
É diferente para cada um de nós, mas depois acumula-se numa grande experiência. Portanto, é do micro ao macro, e todos estão a ver algo, a esperar algo. E depois constroem uma memória de uma experiência colectiva. As pessoas estão a falar sobre os artistas que estavam a tocar. Ninguém sabe, mas toda a gente quer saber. E publicaste esta story no Instagram com uma fotografia do cubo que dizia: “Obrigado Billie Eilish, Burial, Floating Points, John Hopkins, Björk, Bon Iver, Devendra Banhart, James Holden e Aphex Twin por aparentemente terem tocado no Anonymous Project. Não teria acontecido sem vocês. Acho que sim”. O que é que queres dizer com “acho que sim”? [Risos]
Estes foram todos os nomes que as pessoas mencionaram durante as noites e que pensavam que iam atuar.
Era uma piada?
Não tenho a certeza se é apenas uma piada. Não me cabe a mim decidir. Estes são os artistas que me foram mencionados durante a noite, e havia muitos mais, mas fiquei com preguiça e não consegui escrevê-los todos [risos]. Só queria que as pessoas continuassem a falar sobre isso, a tentar descobrir quem estava lá… Muitas pessoas fizeram combinações que eu adoraria ver ao vivo. Billie Eilish com Aphex Twin no cubo? Que grande espetáculo.
O Anonymous Project vai voltar a acontecer no próximo ano?
Boa pergunta. Não tenho a certeza. Penso que, como conceito deste festival, provavelmente está terminado, a não ser que a procura do público, das pessoas e dos artistas seja tão grande que eles queiram mesmo fazer isto — nesse caso, penso que talvez valha a pena voltar a fazê-lo. Mas também gosto da ideia de começar um projeto, como o 24H Drone, ou outros eventos que começámos aqui e que acabaram por ter ramificações noutros locais. E, claro, adoraria ver o “Anonymous Cube” em grandes festivais que corressem o risco de o fazer e de dar ao público uma ligeira frustração. Penso que poderia ser um projeto interessante para outros festivais ou outros eventos. E talvez o desenvolva mais tarde, talvez numa outra coisa, ou numa coisa mais pequena, ou numa coisa que não sei. O meu primeiro instinto diz-me que não o vou repetir — já marquei a minha posição ao fazê-lo.
Mudarias alguma coisa?
Provavelmente teria feito algumas curadorias de forma diferente, agora que sei como funciona. Quando contratei os artistas, não fazia ideia de como funcionaria um cubo com objectos visuais, ou o público, ou a experiência. Acho que, dentro da curadoria, provavelmente teria mudado alguma coisa. Mas isso também depende muito do contexto. Se for o mesmo contexto no próximo ano, se houver bandas diferentes, então a curadoria também trará bandas diferentes, porque continua a estar ligada ao programa — o que falta no programa tocará no cubo e vice-versa. Eu mudaria algumas coisas, talvez a forma como o cubo foi construído.
Eu tentei ver um pouco através do cubo, não muito. Mas mal conseguia perceber se era uma pessoa ou duas. No primeiro concerto, tentei descobrir se era um DJ set ou um concerto ao vivo. Mas foi muito, muito difícil.
Posso dizer uma coisa, foi tudo live. Por isso, a questão é essa, ao nível da produção, fazer isto num festival com apenas uma hora de mudança. Fazer com que os artistas entrassem e saíssem do cubo sem que a equipa reconhecesse quem estava lá… Temos câmaras e coisas lá dentro. Quando falo em termos de produção, penso que, provavelmente, poderíamos ter suavizado um pouco as coisas. Da próxima vez, faria uma saída de emergência no cubo. É que o processo de saída é complexo e, depois de tocarem, os artistas têm que ir diretamente para o camarim e depois do camarim para um táxi que os leva para o hotel. Alguns são caras mesmo muito conhecidas.
Assim, se andassem por aí, o público ia conseguir reparar que, se não estavam na programação, é porque estavam no Anonymous Project. Sim. Não se trata apenas de construir a performance, trata-se também de partilhar os riders técnicos e de hospitalidade, os e-mails, a equipa, toda a gente. Não é fácil.
Alguns elementos da equipa técnica devem ter visto as pessoas, e não me importo que as reconheçam. Só quero que o público tenha uma experiência pura. Por isso, se soubermos um dia quem atuou no cubo, eu não me importo. Alguns artistas quiseram anunciar e não há problema. Mas acho que os artistas também gostaram muito de não falar sobre isso e de poderem fazer o que queriam.
Será que alguma vez vamos saber quem são estes artistas?
Espero que não… Mas talvez vocês já saibam. Acho que isso é mais uma questão. Quem é que achas que tocou?
Não tenho palpites.
Não acho que seja importante saber quem é. Acho que é mais importante pensar em como foi a experiência lá. Como é que ouvimos? Até que ponto estamos conscientes da nossa própria audição quando não estávamos a ver quem era? Em que medida é que os efeitos visuais também nos distraem da experiência auditiva pura? Deveria a projeção visual ser completamente silenciosa? Porque, se for esse o caso, não é necessário construir um cubo, basta pendurar uma cortina em frente ao palco, por exemplo. [Pega no telefone e suspira] Oh, já estamos quase esgotados para o próximo ano. Uau. Isto é de loucos.