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Fotografia: Marta Bento
Publicado a: 16/11/2023

A cultura mexe em Utrecht.

Cruzar canais a caminho do desconhecido: o U? que o Le Guess Who?’23 tem

Fotografia: Marta Bento
Publicado a: 16/11/2023

O extenso festival neerlandês Le Guess Who? (LGW) que marca o panorama de música na Europa, faz da cidade de Utrecht um local incontornável no Outono. E como o título do evento de quatro dias bem ilustra, programam-se propostas que cruzam nomes surpresa, quer pela mais inesperada presença quer pela mais desconhecida existência. Cruzam-se propostas nos mesmos alinhamentos que partem de curadorias feitas por artistas que também marcam presença com a sua música. Os créditos firmados ao longo das edições anteriores (desde 2006) envolve de entusiasmo e expectativa este acontecer. Um sinal disso mesmo é a total venda de bilhetes meses antes do acontecimento e antes de o firmamento estar anunciado em definitiva. Isto faz com que haja uma barreira na acessibilidade, dificultando a fruição de muito público que atempadamente fica arredado do evento que faz do multidimensional e vibrante teatro TivoliVredenburg o centro nevrálgico que se estende por toda a cidade e que leva propostas que chegam a ocorrer em 15 salas em simultâneo. Parece que é muito? 

O LGW e a cidade de Utrecht ainda têm mais para servir, e o programa paralelo U? como iniciativa do LGW, joga com a homofonia da letra num quem será? e numa inquietude questionando a cidade a participar, surge para dar respostas a quem quer mais e saber mais. O U? é um festival de acesso livre e gratuito feito com e para Utrecht, para celebrar a diversidade criativa (da e) na cidade. Ocorre em simultâneo nos últimos dois dias do LGW e parte de uma programação totalmente virada para o desconhecido e emergente panorama musical mais local, mas não só. Fizemos de um dos dois dias programados o nosso roteiro. 

Sábado dia 11 de Novembro, primeiros raios de sol após dias e dias de aguaceiros, convite celeste para andar a seco, de local em local, de concerto em concerto. Almoço reforçado, no melhor ramen da cidade, para a estamina necessária. O programa “desdobra-se” na app e faz-se às escuras, entre a centena de propostas entre música e arte para dois dias, em 25 locais, em 3 núcleos de Utrecht (centro, Sul e Oeste). Rumámos a Sul, sem barco, nem bicicleta, cruzando canais e ciclovias para percorrer o caminho. Mesmo não sendo a primeira das escolhas feitas, fora do nosso programa, cruzamos o canal de Oosterkade para Westerkade e acedemos ao chamamento sentido à passagem do De Utrechtse Boekenbar, bar-livraria onde no subterrâneo tinham palco MARUSKES para “Cursed Bunny” reimagined. Duo grego formado por Tania Zountsa (saxofone alto) e Lida Brouskari (voz, teclados, theremin, electronica). Vão musicar um par de contos do livro do autor coreano Bora Chung, onde os breves textos exploram o imaginário do horror e ficção partindo da crua realidade do patriarcal e capitalista estado nas sociedades modernas. Estas duas contadoras/tocadoras de estórias fazem da leitura de um conto a sua acção. Anichadas no topo do túnel húmido, esguio e gotejante que serve de sala de eventos naquele inusitado lugar. Temos a sensação de estar em baixo de um canal, a ouvir uma música lânguida soprada do saxofone e amparada pelas dramáticas vozes do teclado, algures a procurar a beleza do horror na leitura do conto pela voz sedutora de Lida. Um monstro que ia crescendo a partir dos despojos atirados pela sanita abaixo… Gotejo no tornozelo, e volto àquele sítio, a cabeça já estava na casa de banho que a estória ia descrevendo. Tocam com minúcia cada palavra dita, contam com musicalidade as frases que o texto lhes desperta. Fazem-no de forma íntima e terminam com a intensidade de última fúria. Voltam para um segundo conto… Ainda a tarde começava, num total de 3 sessões de contos musicados.  

Voltar ao luminoso e inesperado dia, pela rua que ladeia o canal até chegar ao The Drain no complexo LE:EN. Chegar a tempo de Phantom Wizard, músico multi-instrumentista com ascendências no Suriname e radicado em Amsterdão. Conta com dois registos disponíveis no Bandcamp, Conscious (2021) e Resurrection (2023). Artista que segue o caminho fértil dos chamamentos e visões na sua vida. A vinda ao U? é uma celebração e convoca para além dos presentes que apinhoam o antigo armazém um trio de parceiros que se ocuparam da bateria, de um baixo e de uma tela. Baterista, baixista e pintor, uniram música e arte a Phantom, e fizeram da música um lugar mágico e inspirador. Wizard, que nem mago sem condão visível, preferiu nas palavras não falar e apenas anunciar que nos haveríamos de encontrar no final deixando-nos perder pela música. Começo num solo atmosférico de flauta dupla, convocando a palco o trio, que rompeu entre a plateia, transportando o cavalete essencial para “tocar” os pincéis na tela em palco. O baixo tocou quase sempre nos trastes mais agudos em malhas que nem solos permanentes, a bateria fez-se de desmesurados ritmos convocando o piano vertical de Wizard a desfazer-se em escalas tocadas em cadeia. Pareceu-nos já ter ouvido esta música antes, lugar de conforto reconhecido, que nem num dos muitos serões pressurosos de domingo à noite no éter das Notas Azuis (Antena 3), novos caminhos do jazz, pois claro, ali mesmo pelas mãos daquele quarteto de Wizard. Som que chama desde África que contém o negro quente da terra mãe, e que eleva ao espírito do afro-futurismo, destemida viagem com laivos de hip hop no estilo da batida, numa atuação densa e etérea que ficou a dever apenas a quebras de uma expressão que se queria em contínuo. Razões técnicas de um trio menos rodado com o mestre, que nas suas palavras revela que: “A técnica deve servir para exprimir. A expressão vem de sensações ou ideias. As sensações e ideias vêem do subconsciente. É magico e único em ti”.  Dêem palco a este profeta do subconsciente que ele devolverá em música despertares conscientes para um desconhecido presente, certamente.

Este bairro no Sul de Utrecht está hoje em transformação, com uma herança de edifícios industriais a passarem para o lado cultura e mais vibrante da cultura citadina. 

Tonto foi quem escolhemos em seguida para continuar o programa, podia ser pelo nome, de quem se apresenta de forma tão directa como inocente, mas foi antes pela sinopse que Francesco Zedde (aka Tonto) se deu a revelar ao programa U?: “Some sexy blast beats but also african polyrhythms at times, a lot of bumbum-cha like ghettoblasta and occasional ass-shaking straight 4/4.” Enigmático e desafiante na descrição capaz de fazer espreitar para saborear, segundo o princípio elementar de que apenas provando saberás ao que sabe, se gosta ou não. Embora hoje seja comum e fácil saber à partida ao que se vai com um sondar nas plataformas várias ao que soa, deste lado segue-se a preferência da prática maior do efeito surpresa por completo. À chegada do local programado, Tafelboom, uma carpintaria, que nos recebe com confortável par de fire pits, mesmo a calhar para retemperar. Dentro uma bateria que denotava estar armadilhada, com pastilhas pickup coladas nas peles e ligadas a uma maleta de comandos muito lo-fi. Tonto apresenta-se como “uma one man band electroacústica de beats lo-fi furiosos e disparos insignificantes.” Luzes desligadas aos primeiros sons, e na carpintaria, com as mesas de corte, tupias e plainas a um canto, é agora a bateria que impõe a cadência sonora. Uma caixa de protectores auditivos denotava o volume que se seguiria. Primeiros minutos e fica a timpana impressão de que Tonto é como um filho sonoro imaginário (ilegítimo talvez) de um Alec Empire (Atari Teenage Riot) e de Aphex Twin. Mensagem inaudível, imperceptível na mensagem, a voz entra em canal de tal forma obliterado que sai somente como instrumento, que em loop serve de tapete onde a bateria de ritmos obsessivos, hardcore, thrash, e tantos outros epítetos que possamos imaginar de densidade máxima possam existir. Luzes strobe, a iluminar, a disparar sincronizadas com a bateria e um baterista em ira controlada, que se apresenta uma assumida tendinite, imagine-se em estado imaculado… Numa plateia mais calorosa ou em paralelos mais a sul, teria dado lugar a danças efusivas, estilo mosh, mas apenas as cabeças abanaram ao som de um baterista em estado de sítio que por diversas vezes deixou o aparato a “tocar” sozinho e fez acrobacias várias pendurando-se nas estruturas do tecto da carpintaria, convocando delírios e provocações, o resto vai de cada um… Depois disto um interregno impunha-se como uma bebida que se serve para o prato e sabores que se seguiriam.

Kim David Bots & Lyckle de Jong, dupla de manipuladores de controladores electrónicos seguiram-se no NEEL – LE:EN. Situamo-nos paredes meias com o já experienciado The Drain. Este armazém de dupla entrada, e deste lado um restaurante de fusão asiática e tem na sala contígua um amplo espaço de concertos. Em placo, que já alcançámos em concerto começado, a dupla ocupa desmesuradamente o cenário disponível, com maquinaria diversa e pejada de cabos de ligação, aproximamos o olhar na descoberta do som. Aqui tricota-se som sem agulhas, nem de malha nem tão pouco de pratos, mas tricota-se a valer. Esta dupla tem créditos firmados, dois registos na etiqueta South of North de Amesterdão com os títulos Bij Annie Op Bezoek (2020) e Os (2021) assinados por de Jong e com Oostwestkruisbest (2023) pelas mãos de Kim. Como dupla fazem incursões que tiveram início num bunker que fez parte da linha defensiva de Amesterdão nos anos de 1890. São praticantes de uma música electrónica de descoberta sonora que remete para paraísos trazidos pela britânica Warp. Bots serve-se bastas vezes para além da electrónica de um clarinete, também armadilhado, para trazer sons vozeantes ao tapete sonoro que parece servir um jogo de arcada por vezes e noutras situar um espelho de água tocado por ondulações superficiais. Calhou bem na programação ao acaso idealizada após tumulto sónico vivido no concerto anterior. 

Não fora o desconforto da hora do concerto à hora que por rotina o corpo pede comida, e o mergulho desprendido teria sido mais retemperador. 

Para o final, haveríamos de guardar o melhor, como quando se começa a degustar um prato cheio de surpresas. Para concerto último, nosso, não da tarde-noite do U?, que ainda contava em estender-se a horas mais tardias. Voltando ao The Drain, ainda apanhando o ensaio de som do que nos fazia regressar a esse lugar — Sydney Lowell. A poeta neerlandesa que viu ainda este ano editado o EP debutante do seu trabalho como poeta em modo de poesia dita musicada, que assume como sendo um trabalho “carregado de intenção, espírito e emoção”. Sydney é envolvente em palco, como o é na dimensão da sua escrita que explora o dizer sobre a arte do ser, apoiada num presente bem consciente que pisa e percepciona com cumplicidade reivindicativa. Em “Word (interlude)” explícita ao que vem: “… It is my urge as a poet/ To conjure the words sent to me/ An instrument of language/ I materialize and vocalize the abstract/ A portal of communication between the possibility of things and their being”. A poeta traz consigo uma roupagem sonora que em tudo acrescenta mais a cargo do guitarrista que a acompanha, Ruben Croes. A guitarra ouve-se certeira num dedilhar quase continuo, discreto e fundamental que é auxiliada por ambiências pré-gravadas e que ampliam a dimensão da escrita dita, integrando-a em espaços entrelaçados do jazz ao hip hop e ao poder da soul. Sydney, que tem bem mais que os 4 temas editados em EP, capazes de a inscrever num firmamento onde constam nomes emergentes como o de Aja Monet com o álbum de estreia e tão revelador When The Poems Do What They Do. Lowell é generosa no seu dizer, e convoca todos para uma partilha: “We are an element of sound…” que levou a uma construção colectiva naquele lugar pela mão da poeta. Noutros momentos trouxe na sua actuação verdadeiros mantras que se levam para casa em repetição dentro de nos mesmos: “For all the times my mouth denied my words/ And left me/ All in time” como foi repetidamente cantou em “What’s Even in a Word?”. 

E assim foi, para nós pelo menos, a maneira cimeira de terminar U? sem mais dúvidas e interrogativas, antes com certezas do ali vivido e trazido para contar.


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