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Fotografia: Rui Palma
Publicado a: 05/12/2022

Homenagens, metáforas e desconstruções.

Faixa-a-faixa: alla de Surma explicado pela própria

Fotografia: Rui Palma
Publicado a: 05/12/2022

Cinco anos depois de Antwerpen, Débora Umbelino – que é mais conhecida como Surma – regressou no passado dia 11 de Novembro aos discos, um alla – editado pela sua casa de sempre, a Omnichord Records – em que a vulnerabilidade e a disrupção abrem as portas para novas e ambiciosas explorações sonoras apresentadas ao longo de 11 faixas. A lista de convidados vai desde Selma Uamusse até Angelica Salvi, passando por gente como Noiserv, Cabrita ou Pedro Melo Alves.



[“etel.vina”]

“Olha, é uma faixa em homenagem à minha avó materna. Não sou muito ligada à parte da astrologia nem à parte espiritual, mas sinto que ela está muito presente na minha vida desde sempre. E aquele paninho das flores que uso ao vivo? Era dela, da máquina de costura, e sinto que quando não o uso, e isto é um bocadinho também já aquelas coisas de superstição, vai tudo correr mal. E alguns concertos correram mal quando eu não pus o pano! Mas é um bocadinho a homenagem à minha avó e fazia todo o sentido abrir o álbum para mim, que assim como a ‘Hemma’, que é a minha avó paterna, quis usar uma homenagem à minha avó materna, que foi muito importante na minha vida. E ainda é — é o meu amuleto da sorte.”



[“Islet”]

“Foi a música que abriu todo o futuro do álbum, toda a estética, toda a mensagem que eu queria passar enquanto artista. Acho que foi a música mais importante para mim para tentar definir o que é que o álbum iria ser no futuro. Acho que a música com que tenho mais ligação é a ‘Islet’. É especial, para mim.”



[“Tous les nuages”]

“Foi bocadinho uma metáfora que eu quis dar, em que estou debaixo das nuvens, ou seja… O Cabrita e o Victor [Torpedo] são um bocadinho as minhas nuvens nesse aspecto, que deram inspiração desde sempre enquanto músicos, enquanto pessoas, e que me levaram para sítios muito bonitos nesta música, que eu não estava à espera. A ‘Tous les nuages’ é um bocadinho essa metáfora de estar debaixo das nuvens, estou num espaço seguro, e que estou confortável com eles e comigo mesma, e essa música leva-me para sítios muito bonitos.”



[“Nyanyana”]

“O nome foi a Selma [Uamusse] que escolheu, que eu quis que ela também trouxesse muito as raízes moçambicanas dela para este álbum. Ela canta em changana, que é um dialeto moçambicano, e ela falou muito da letra que remete muito para a infância dela – ‘Nyanyana’ é uma expressão que usam para chamar um pássaro em Moçambique e eu achei aquilo muito bonito. É um bocadinho uma música que remete um bocado à infância, mais específico da Selma, mas também um lado muito bonito da natureza que vai buscar muito esse lado de empatia. É muito amor essa música, para mim. [Risos] É visceral, também.”



[“Tergiverso”]

“Com a Ana Deus. Demorei muito tempo a chegar a essa palavra. Também quis um bocadinho esse desafio de trazer um bocadinho da nossa língua para o álbum e não senti de todo que tinha de ser eu a cantar. Tinha que ser mesmo uma pessoa que me fosse muito especial, e a Ana Deus é essa pessoa, que é uma lenda viva que nós temos em Portugal, e quis que ela viesse para o álbum também por isso mesmo, que é uma música incrível, uma pessoa incrível. Ela fez uma letra para a música e foi das letras mais recentes que ela fez de há uns anos para cá, e foi uma exploração também de palavras portuguesas, que remetia assim um bocadinho ao ambiente da música. ‘Tergiverso’, nem sei como encontrei. Lá está, dicionários, e ok — o que é esta música me traz? E foi um bocadinho isso. O virar das costas, que a música fala sobre isso mesmo, de virar as costas à arte e à época que passámos naquela fase menos boa, e foi uma ligação que eu senti em relação à letra, à Ana, à música, e à palavra entre si mesmas. Fez todo o sentido para mim quando vi a palavra em dar o significado à música e a Ana deu uma dinâmica incrível à música, desde a letra à química que tivemos as duas em estúdio a cantar apesar de eu cantar em fonético o refrão e ela em português , foi uma ligação muito engraçada e acho que deu uma abordagem à música muito interessante no que toca a esse aspecto assim um bocado diferente.”



[“Huvastï”]

“’Huvastï’ foi uma palavra que eu vi num livro do Saki, que são contos fictícios, fantasia, em que ‘Huvastï’ é uma terra imaginária que era o teu safe space. E o Hassel e o Pedro são o meu safe space, e esta música também me levou a sítios muito bonitos, internamente falando. Já tinha esta música trabalhada à imenso tempo, e pô-la em estúdio… eles os dois olharam um para o outro e disseram ‘bora trabalhar nisto!’. Não sei, também fez todo o sentido para mim criar uma ligação entre o nome da música e a atmosfera da música e as pessoas que fizeram parte dela. É um bocadinho a nossa casa, ‘Huvastï’. Costumamos dizer que é o nosso nome de trio agora Os Huvastïnhos. [Risos]”



[“Myrtise”]

“[Risos] Ele [o Noiserv] goza muito com esta música. Goza no sentido em que parecia ter letra. Esta música é em fonético e foi a primeira música que o Noiserv fez em fonético. Ele estava confuso com o que eu estava a dizer e eu, ‘meu, vai por mim, segue, nem tens que dizer o mesmo que eu’, e ele no fundo não disse o mesmo que eu e quis desafiá-lo também nesse aspecto. Ele é uma pessoa muito insegura e está sempre, ‘hmm, será que isto está bem, será que isto não está”, e foi assim uma luta. Ele é muito perfeccionista. E ‘Myrtise’ foi um dos nomes que eu li num livro de mulheres feministas da antiguidade, que foram muito fortes e que nos abriram muitas portas para nós hoje em dia, e esta música trouxe um bocadinho muito esse lado feminista e de… Não sei porquê, mas trouxe-me muito essa luta e trouxe um bocadinho uma música de intervenção, apesar de não ter uma letra. Entrei um bocado nessa atmosfera introspectiva, de me levar a sítios mais introspectivos dentro de mim – daí ter dado o nome ‘Myrtise’. No fundo, explorar com o Noiserv foi inacreditável, porque também o trouxe um bocadinho para sítios desconhecidos e um bocadinho não-seguros para ele, o que foi muito giro, vê-lo em estúdio com medo de cantar. Mas foi muito divertido criar essa música com ele. Muito divertido, mesmo.”



[“Aïda”]

“Foi a música mais psicadélica que eu criei em estúdio até hoje, com o Rui [Gaspar]. E foi dos primeiros nomes a serem fechados. Eu gosto muito do nome ‘Aïda’, é um bocadinho pessoal, e trabalhei com uma amiga que é a Jenna [Thiam], que é francesa, é a namorada do Salvador Sobral, já está cá há muitos anos, e criámos uma ligação muito bonita entre as duas. Ela estava grávida na altura e eu falhei-lhe dessa música e ela na altura disse-me que a filha dela ia chamar-se ‘Aïda’. E eu: ‘Como assim vai-se chamar Aïda?!’. Nós nunca tínhamos falado nisto e ainda ficou com uma ligação mais pessoal para mim por causa desta história. Qual é que a probabilidade do nome ‘Aïda’ estar com uma pessoa tão chegada a ti? E estava com dúvidas nesse nome, mas não, ficou fechadíssimo, por ter uma ligação tão pessoal, uma história tão pessoal, e foi das músicas mais divertidas que eu fiz em estúdio no que toca a estrutura. Aliás, a melodia acabou por acontecer quando estávamos a falar com um amigo nosso, e pedi ao Rui para gravar porque me estava a surgir uma melodia. Foi essa exploração louca e é a mais espontânea e psicadélica do álbum. Foi a mais divertida que eu já fiz até hoje. Foi incrível.”



[“Did I drop acid and this is my ego death?”]

“Esse nome também veio inspirado de um livro do Saki acho que foi o livro que me inspirou mais para este álbum. E esta música com a Ecstasya é mega techno, foi uma desconstrução total da demo que ela me enviou. Aliás, ela ao início enviou-me uma demo a dizer, “olha, fui muito de encontro à tua atmosfera”, e eu disse-lhe que não queria isso, queria era que ela viesse ao meu encontro com a atmosfera dela. E a segunda demo foi totalmente o oposto da primeira. Mega techno, mega na essência dela, era mesmo aquilo que eu queria. E foi um desafio em estúdio desconstruir tudo aquilo e tentar chegar a um equilíbrio. E este nome, não sei porquê, senti que era para a Ecstasya, tinha de ser. Foi um bocadinho a inspiração desse livro do Saki, que me levou um bocado à metáfora de que o ácido, que era um bocado a sociedade, levou um bocado à morte do meu ego. Eu não sou de drogas ou de álcool, mas foi um bocadinho uma metáfora para mim nesse aspecto. E, epá, nunca fui muito da coisa dos egos e foi também um bocadinho uma indirecta para, às vezes, não é muito bom ter o ego elevado, não é muito fixe. Mas, pronto, foi um bocadinho uma metáfora à sociedade de hoje em dia, mesmo aos políticos, mas não quero entrar muito nesse tema. Mas foi um bocadinho uma metáfora aos tempos que corremos hoje em dia, sim.”



[“Biyelka”]

“Foi um nome que eu vi num filme, era o nome de uma miúda, assim muito insegura, mas que tinha um apoio incrível da família, que a elevava para ela ser uma pessoa melhor e mais segura de si mesma, que às vezes isso não acontece e é triste. Mas não sei, esse nome veio porque é uma música que tem assim um crescendo enorme no final e lembrei-me, ‘ok, se calhar é a mutação desta Biyelka em bebé’, e em adulto era uma pessoa completamente diferente. E inspirei-me um bocadinho nessa personagem, por assim dizer. A música em si vai muito ao contemporâneo, vai muito buscar a música clássica que a Joana [Guerra] estudou, também a Angelica [Salvi], vai buscar muitas influências ao Rodrigo Leão, que é uma pessoa que eu adoro, e vai buscar muitas influências de bandas sonoras japonesas que eu também costumo ouvir. Não sei, foi assim uma coisa mega experimental, mas ao mesmo tempo muito pensada estruturalmente. E trabalhar com a Joana e com a Angelica foi incrível. Costumo dizer que são as minhas meninas do coração porque tivemos mesmo uma química muito bonita trabalhar juntas em estúdio. Trabalhamos à distância, tive muita pena, mas acabou por resultar bastante bem. É uma música muito especial para mim também, é acutilante de certo modo.”



[“Nico my love. anaoj”]

“‘Nico, my love’… Foi muito engraçado, porque foi uma jam que eu tive com o Rui em estúdio, e pus o telemóvel a gravar às escondidas [risos], e estávamos ainda em exploração de como é que iria ser o álbum. E esta música sempre ficou em último e supostamente não ia entrar no álbum, mas eu queria que a música entrasse porque me remetia para os tempos de Velvet [Underground], que sempre foi uma banda que me influenciou, à Nico, que é uma musa incrível para mim, a nível musical e pessoal. Foi então um bocadinho a homenagem à Nico, mais especificamente, mas também a Velvet, uma banda que já me tirou de sítios muito maus e sempre esteve lá para mim. E ‘anaoj’, pronto, é uma pessoa muito especial para mim, está no meu coração para sempre. Não quero ser lame [risos]. É uma homenagem ao amor, de certo modo, sem qualquer filtro, mesmo amor puro e duro.”


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