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Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 20/03/2024

Um poster nada consensual a marcar o concerto.

Mary Ocher nos Maus Hábitos: liberta de todas as amarras

Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 20/03/2024

Mary Ocher de volta a nós, a solo, na urgência da palavra cantada e escrita. Em digressão feita entre Lisboa, Porto, Aveiro e Setúbal, deixando à sua passagem nada por dizer. Marcámos presença numa das datas, 15 de Março nos Maus Hábitos, e como num acaso objectivo, no concerto marcado pela irredutível irreverência entre duas artistas. Ocher e Francisca Sousa, esta última artista visual e autora do póster que serviu para anunciar o concerto da primeira, na sala do último andar do prédio mais alto e feito estacionamento vertical da Rua Passos Manuel, no Porto.

Não terá sido o controverso cartaz a promover a nossa ida à cidade. Onde na mesma noite, à mesma hora e na mesma rua, para outro concerto, muitíssimos mais se perfilavam para escutar O Próprio de Dillaz. Do outro lado da rua, escadaria acima, outra voz preponderante dos dias de hoje, para a pop experimental que diz por palavras o que tem a dizer, e é tanto. Mary Ocher lançou no final do ano passado Approaching Singularity: Music for the End of Time, álbum e ensaio, como serviu de tema maior na entrevista feita dias antes desta digressão.

A solo, depressa se revela que o alinhamento será divergente do álbum mais recente, que apenas veria em palco representado deste “Cosmic Rock”, tocado com as mãos nos dois Korg trazidos e servindo-se do tacão da bota como boa batida. Começa em prontidão com “The Endless (Song for Young Xenophobes)” como que a procurar estontear em redor, pelo fraseado no sintetizador. Deixando clara a mensagem que: “[…] There’s nothing left to conquer here / Not even your own / prejudice / You’ll hardly find a place / as safe as this.” Sem sobressalto e demoras passa a “The Irrevocable Temple of Knowledge”, tema para voz e flauta, do distante registo, de 2017,  The West Against The People. Segue-lhe no alinhamento tirado do bolso “The Sound of War” à guitarra, desgraçadamente pertinente, como já o era em 2011 o álbum feito de War Songs. Encarrega-se de tornar a prestação em algo mais dançável e serve uma tripla encadeada com “Earth Mother”, “Cosmic Rock” e ” To The Light”. Ainda de mãos colocadas no teclado, nas vezes do piano, faz uma incursão num onírico-carnavalesco e colorido “The Android Sea”. Até aqui tudo muito escorreito, como que a cumprir um compromisso — o de estar ali —, embora servindo um passado bem treinado, sem surpresas e sem riscos. Mas foi-lhe inevitável cair no presente. 

Essa noite estava irremediavelmente marcada pelo cartaz que anunciou o seu concerto. Num convite para uma proposta de artwork livre, Francisca Sousa imaginou e desenhou um póster onde pretendeu “apresentar uma figura que nos enfrenta e resiste, de nudez aparente pois a pele é a linguagem intrínseca ao nascimento e à noção de intemporalidade”, conforme esclareceu ao Rimas e Batidas. Numa figuração chamativa, aparece um corpo feminino, mascarado e suspenso por cordas, amarrada ao nome encimado de Mary Ocher. Ainda nas palavras da própria artista visual, é a “aparição de uma figura feminina mascarada, de identidade desconhecida mas visualmente ritualista, que se encontra pendente por cordas num cenário onírico mas de influência tribal.” O propósito estava relacionado também com a primeira curadoria da recém criada produtora Machamba, que se propõe escolher um(a) artista a cada programação.

A artista em palco esperou sete músicas para mostrar o seu desagrado pela figura evocada para aquele propósito. “Nada contra o póster em si, mas não representa esta música”. Ocher tem um compromisso na sua arte, de combate ao controlo, à dominação, ao autoritarismo. Ver-se assim representada, num primeiro impacto, causa-lhe um desconforto que não esconde e comenta como que a demarcar-se em absoluto. Para Francisca Sousa, igualmente investigadora de arte, é uma extensão consequente do seu trabalho que “dedica a explorar os jogos de poder, como domínio e submissão, que operam no corpo feminino, recorrendo, essencialmente, à expressão da pose e da sexualidade (sex-positivity de Carol Queen) para estabelecer um discurso de resistência”.

O confronto de palco pela música, e o visual pelo póster, a ilustrar as facetas na arte de representar tão somente o real. Concerto retomado com as ruas distantes, mas bem presentes, da Rússia de Ocher — “On The Streets” — e canta como que contra-ilustrando que “On the streets of hard labor / Ex-soviet shrines / All the women are weeping / Endlessly […]”. Puxa da guitarra, agora a plena distorção para um “Baby Indiana”, e a reafirmar a prestação em one-woman-band, de pandeireta no pé, e num falsete estilo primórdios de uma PJ Harvey. Para chegar a uma guitarra dedilhada e voz ecoando uma “Across Red Lines”, onde canta em modo autobiográfico o tema contido na colectânea Woman Life Freedom – Music For Iran, Volume 1. Ocher termina a prestação com “Thunderbird/Eden” a fazer da voz um instrumento mais além das acutilantes palavras, num ideal que a liberta das amarras que o presente contempla.


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