Digital

Dillaz

O Próprio

Edição de autor / 2024

Texto de Ricardo Farinha

Publicado a: 26/02/2024

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Quando um artista não dá entrevistas nem reflecte publicamente sobre os seus discos, o seu trabalho só pode falar por si. É o que acontece com Dillaz, rapper que desde que apareceu com estrondo há mais de uma década, com o segundo volume da mixtape Sagrada Família, preferiu manter-se discreto e algo misterioso, não desvendando a visão que tem dos seus álbuns nem explicando porque tomou esta ou aquela opção. Sendo assim, deste lado só podemos avaliar aquilo que ouvimos, entregues às nossas próprias percepções.

O Próprio, o novo trabalho do MC da Madorna, é certamente um dos discos se não for o disco mais elaborados do seu percurso até agora. Não significa que seja o melhor a inocência e a crueza dos primeiros trabalhos, o posterior afinamento de uma identidade enquanto autor e produtor, enfim, cada fase tem as suas virtudes mas seguramente será um dos mais aprimorados, sobretudo ao nível da produção e de todos os detalhes técnicos.

Dillaz explora como nunca a ferramenta estética que é o auto-tune, conferindo melodias distintas à sua música. Os instrumentais redondos, por vezes trabalhados a várias mãos, mas quase sempre no núcleo duro, são ricos em texturas e certamente o resultado de horas e horas (e horas…) de estúdio, autênticas peças artesanais moldadas com o melhor barro do panorama.



A entrega do rapper, a forma como debita cada uma das suas rimas, como acrescenta sentimento e informação com os pequenos desvios que vai fazendo na sua entoação, mostra não só o já conhecido talento de Dillaz para o ofício, mas o imenso cuidado que houve com todas as fases do processo que foram necessárias para um disco recheado de arestas limadas.

Não existem aqui enormes surpresas, nem seria isso certamente que se pediria a um rapper com uma identidade vincada, com um público fiel, numa fase de consagração, sem necessidade de se revolucionar. Dillaz apresenta-se como ele próprio, um MC de rimas memoráveis que tanto podem ser punchlines como tiradas mais satíricas, versos auto-reflexivos ou com camadas suficientes para estarem envoltos nalgum abstracionismo a aura de mistério em torno de Dillaz também é alimentada pela forma metafórica como por vezes escreve.

O Próprio é um disco equilibrado que aposta em diversos skits e pequenos trechos narrativos (algo que é sempre bem-vindo numa era em que os álbuns perderam relevância enquanto objectos artísticos). Tanto apresenta bangers como a estrondosa “Cantona” (só faltou um cameo especial no videoclipe, visto que o francês vive por cá), o bem conseguido exotismo de “Habibi” ou “Qualquer-Feira” com os contributos carismáticos de Zeca e Tiwi como temas que falam mais ao coração, que neste álbum até ganham alguma preponderância, como “Direção Paris”, “Alô” e “Nota 100”, para os quais convocou pesos pesados como Plutonio e Julinho KSD. Não seria óbvio que os temas feitos a meias com estes rappers fossem mais emocionais e harmoniosos, mas serviu certamente o efeito pretendido.



O tema mais alienígena no meio de um alinhamento de 16 faixas (quase 50 minutos de música!) será mesmo o single “Colãs”, uma rumba que evoca uma faceta latina e sedutora que encaixa bem no universo de Dillaz. A novidade é bem-vinda e por vezes pode faltar esse maior atrevimento. De resto, todas as características do rapper estão lá, mesmo que a vista agora seja outra: o bairro continua na aparência, nas ideias e nos versos castiços de Dillaz; encontramos por aqui os storytellings salpicados de realidade e personas; falamos de música que veio de baixo para conquistar o mundo, uma e outra vez, visto que o álbum até bateu o recorde nacional de disco mais ouvido no Spotify no primeiro dia após o lançamento, destronando o êxito recente de Slow J, o que é um feito.

Mantendo a sua essência e inovando o quanto baste, O Próprio é mais um disco seguro e meritório de Dillaz que cumpre aquilo a que se propõe, não inventando a roda mas apresentando uma jante actualizada e com qualidades extra, reforçando o imaginário mitológico em torno de um dos rappers mais carismáticos, populares e relevantes que apareceram em Portugal na última década.


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