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Fotografia: Pietro Pontieri
Publicado a: 12/03/2024

Na aproximação de um tempo a esgotar-se.

Mary Ocher: “Tenho um enorme privilégio de estar sentada na Europa, no meu apartamento, e de poder criticar o mundo”

Fotografia: Pietro Pontieri
Publicado a: 12/03/2024

Entrevistámos Mary Ocher comprometida com o presente, a fazer da sua música uma intervenção urgente virada ao futuro. Comunicar, em mais que diálogos, em conversa efectiva. Para quem a música é sobretudo “uma forma de arte muito pessoal e emocional — amplifica os estados emocionais existentes, mas também pode provocar novos estados”. É disso que trata através da pop experimental que reúne neste seu novo longa-duração Approaching Singularity: Music for The End of Time, onde conta com colaborações de Mogwai (Barry Burns), de Red Axes (Dori Sadovnik e Niv Arzi), do pianista Roberto Cacciapaglia e do duo de bateristas Your Government (Mats Folksson e Theo Taylor).

Num disco que rende homenagem, num dos temas, à pioneira da música electrónica, Delia Derbyshire, os recursos são múltiplos e encontram lugares singulares nas recolhas auditivas de Ocher e registos sonoros de ondas cerebrais. Mas de igual relevância é também o ensaio que acompanha a edição discográfica e que pode ser lido como complemento da música, como quem se prepara para a dupla intervenção da artista.

Neste ensaio, Ocher aborda a emergência do futuro que se desenha já hoje e que ameaça pontos de partida sem retorno e que devem preocupar. “Dentro de uma zona de transferência, os seres humanos podem mover-se à vontade, como sardinhas numa lata, não muito diferentes de objectos inatos, sem identidade, a sua humanidade não tem significado, não tem valor e pode ser deslocada, reorganizada, eliminada, se necessário — podem chamar-se a estas remoções deportações”. Assumindo no final das nove páginas as influentes referências da sua análise enumerando, entre outros, Karl Jaspers, Guy Debord, Slavoj Zizek, Michel Foucault ou Noam Chomsky, assim como os novelistas distópicos George Orwell e Aldous Huxley.

Mary Ocher tem asseguradas quatro datas em palcos lusos: dia 14 no Lounge (Lisboa), dia 15 nos Maus Hábitos (Porto), dia 16 no GrETUA (Aveiro) e, para finalizar a digressão nacional, no dia 17 apresenta-se em Setúbal, na Casa da Cultura, para abrir o ciclo Emergências promovido pela Experimentáculo Associação.



Nasces na Rússia pouco depois do ano distópico de Orwell, 1984, cresces em Israel e, desde então, foges ao autoritarismo e ao controlo. Atualmente, és uma das pessoas que o mundo mais deveria ouvir. A música é uma forma de viver na clandestinidade ou de reivindicar uma mudança efectiva?

Antes de mais, obrigada, mas achas que isso faz de mim uma voz que vale a pena ouvir? Sabes, tenho um enorme privilégio de estar sentada na Europa, no meu apartamento, e de poder criticar o mundo. As pessoas (em Israel, na Rússia, na China, no Irão, em tantos outros lugares) são espancadas, presas, violadas, maltratadas de tantas formas que se transformam no terror do silêncio — não têm o privilégio de criticar, arriscam os seus corpos, a sua saúde mental, o futuro das suas famílias… A maioria das pessoas só quer ter um lugar quente e seguro, com comida no prato, mas o mundo não é justo, não somos iguais. E apesar de a Internet ser — supostamente — este grande espaço aberto, onde qualquer pessoa que queira pode encontrar qualquer coisa, não creio que tenha influência para mudar as coisas a uma escala maior, estou a ensinar o padre a rezar a missa. Fui convidada para um evento antirracista centrado no antissemitismo, com alemães e israelitas que são bastante de direita na minha escala, e disse que só participaria se pudesse fazer parte do painel, mas isso parece ser desconfortável, as pessoas parecem fugir ao diálogo, só querem falar com pessoas que são iguais — seja de esquerda, seja de direita, ou talvez estas definições já não interessem… São pessoas que têm medo do outro, e pessoas que estão convencidas de que o que precisamos mais é de nos misturar e aprender com as nossas diferenças?

A imprensa de esquerda está sempre a dizer que o Ocidente deve fazer alguma coisa. Mas o quê? Juntar-se às armas? Ir combater na Ucrânia? Invadir Gaza e libertá-la de Israel? Tudo o que fazemos é abanar a cabeça em sinal de preocupação e simpatia (e agradecer o nosso privilégio de estarmos aqui e não lá).

Escolheste Berlim para viver como uma cidade criativa e referiste recentemente que é um local onde se pode “falar de tudo sem medo de censura ou mal-entendidos, enquanto na maior parte do mundo isso não acontece”. Como é que se lida com as recentes tentativas do senador da cultura de Berlim de fazer depender o financiamento público dos artistas de um “juramento de fidelidade ao Estado de Israel”? Qual foi o verdadeiro impacto disso na comunidade artística alemã?

Essa é uma óptima pergunta. Mais uma vez, sinto que estou rodeada de pessoas que têm mais ou menos as mesmas convicções políticas que eu, mas estamos numa bolha. Todos os países reagem à guerra de Israel na faixa de Gaza a partir da sua própria narrativa histórica, o que é fascinante, mas também incrivelmente perigoso e arrogante, porque não se trata deles, mas concretamente das pessoas que estão a ser massacradas em Gaza neste momento (no caso da Irlanda e da África do Sul, a sua narrativa histórica coloca-os de facto em aliança com o lado palestiniano, mas isso vem do trauma histórico de cada país).

Nos meses que se seguiram a 7 de Outubro, o Governo alemão tomou medidas para mostrar a toda a gente que escolheu uma das partes. Isto deve-se à sua culpa histórica, que é muitas vezes terrivelmente mal orientada e, francamente, muitas vezes embaraçosamente ignorante. Enquanto muitos artistas são pressionados a alinhar com esta posição oficial e claramente não o podem fazer em consciência, eu, pessoalmente, ainda não estive nessa posição — mas é provavelmente apenas uma questão de tempo e é terrível. E sinto-me envergonhada e irritada com tantas declarações do governo. O que é particularmente interessante é que estas reacções estão diretamente ligadas à ascensão de um novo tipo de nacionalismo alemão, que pega na narrativa do antissemitismo (ao qual se opõe), esvazia-a de todo o significado (por exemplo, podem rotular de antissemita uma pessoa, mesmo judia, que critique o governo israelita) e depois fazer declarações xenófobas contra estrangeiros que não sejam judeus. Parece que estamos a caminhar para tempos ainda mais sombrios. O partido “Alternativa para a Alemanha” (AfD) está a ter um excelente desempenho nas sondagens, e não são apenas os muito revoltados e os muito pobres que votam nele, mas também os alemães instruídos e de classe média-alta.

Quase todo o meu trabalho é sobre o nacionalismo (e os seus perigos) — tenho escrito sobre isso desde o meu primeiro álbum (War Songs, 2011), é claro que podem optar por não me deixar ser ouvida (haverá imprensa na Alemanha para o próximo álbum?), e optar por não me financiar no futuro, o que é um perigo real, mas não podem mudar o meu trabalho, ou a sua história, não podem esvaziá-lo do seu conteúdo, é literalmente tudo o que é… Felizmente, trabalho a nível internacional, por isso talvez não o sinta tanto como os outros — embora alguns jornais alemães de esquerda tenham optado por fazer declarações sobre o facto de não concordarem com as minhas críticas e não publicarem as minhas cartas abertas, ainda não senti a faca afiada da censura como algumas pessoas sentiram, talvez também porque o meu trabalho é extremamente de nicho e o seu público é muito específico e, nesse sentido, menos perigoso?

Toda a tua actividade cultural é desencadeada por causas urgentes. Uma delas é a dos direitos das mulheres. Em 2023, participaste com Audrey Chen na compilação musical do Underground Institute Hope for Her Future – A Compilation for Girls in Afghanistan. Isso é fundamental para a tua música? Tivemos o prazer de ver a Audrey atuar recentemente no Porto na Sonoscopia. Como é que foi a experiência de colaborar com a Audrey?

Ah, isso é ótimo! Eu fiz a curadoria dessa compilação. A Audrey e eu conhecemo-nos num evento de rádio e gostámos do trabalho uma da outra, por isso perguntei-lhe se podíamos tentar gravar alguma coisa, mas a peça é realmente dela com algumas sobreposições e um pouco de edição.

O teu último álbum — Approaching Singularity: Music for The End of Time — foi lançado em conjunto com um ensaio, disponível no teu site, e na edição física há uma versão curta do mesmo. De alguma forma, é aconselhável ler o ensaio antes dos concertos ou mesmo antes de ouvir o disco?

Seria fantástico se as pessoas o fizessem! A minha relações-públicas (RP) achava que era demasiado longo, e é claro que tinha razão, mas eu achava, e ainda hoje acho, que tem de ser lido na íntegra, embora não saiba se todos os leitores são ouvintes e vice-versa. O ensaio de “O Ocidente contra o Povo” tinha apenas duas páginas, este tem nove, e as pessoas parecem ter uma capacidade de atenção muito curta actualmente.

O título Music for The End of Time refere-se a um ponto de não retorno para a humanidade? Achas que já chegámos a esse momento da nossa história?

É apenas o meu sentido de drama. Penso que toda a história da humanidade está marcada pela violência, e o ensaio levanta a questão de saber se cada geração pensa que é, de alguma forma, especial e testemunha algo inteiramente único (eu, pessoalmente, duvido disso, penso que somos simplesmente uma espécie muito arrogante, embora, claro, cada momento seja único, mas isso esvazia-o de toda a singularidade ao mesmo tempo, não é?)

O álbum viaja por diferentes tipos de campos sonoros — da pop experimental e gravações de campo ao rock, folk e até techno. Numa era em que tudo requer algum tipo de rótulo para nos ajudar a navegar pela abundância, como descreverias o tipo de música que vive dentro deste projeto?

Se for preciso, acho que podemos chamar-lhe pop experimental, não?

Voltando a 2023, no EP Power and Exclusion from Power, podemos ouvir a canção “Love Is Not a Place (feat. Your Government)”. Este ano Portugal comemora o 50º aniversário da libertação de um regime ditatorial e estas eleições mostram um crescimento dos movimentos de extrema-direita. Acreditas que vivemos em tempos cíclicos?

Lamento imenso, é muito lamentável! Infelizmente, está a acontecer em muitas partes do mundo neste momento (e na Europa em particular, já mencionei a Alemanha como exemplo). Parece que não estamos a aprender com a história tanto quanto gostaríamos, parece que durante algum tempo a Europa viveu sob a sombra do holocausto e jurou nunca mais repetir algo do género, mas talvez nos estejamos a esquecer, já para não falar que o nosso trauma (judeu) levou ao estado de Israel (onde cresci, fui criada num ambiente religioso e nacionalista) a usar esse trauma e a passá-lo adiante, a criar mais traumas, como uma criança que foi espancada e se tornou um adulto violento, o que, na minha opinião, não é desculpa (a propósito, fui criada por uma mãe violenta, mas felizmente até agora parece que estou — talvez milagrosamente — bem equilibrada… desde que a música esteja a ancorar-me e eu esteja ocupada com o trabalho).

Que tipo de papel pensas que a música desempenha nestes tempos urgentes em que vivemos?

A música é uma forma de arte muito pessoal e emocional — amplifica os estados emocionais existentes, mas também pode provocar novos estados. Nos últimos anos, sinto-me atraída por tipos de música ambiente, talvez por terem esta qualidade calmante. Talvez seja particularmente necessária quando tudo o resto parece estar fora de controlo, mas talvez seja também a idade, as nossas hormonas parecem afectar tanto os nossos estados emocionais. A música punk, zangada, já não me inspira tanto como antes, embora tenha o seu lugar.

Na tua biografia é mencionado que és a artista “por quem temos estado à espera — uma destemida pioneira no som, uma feroz desafiadora da autoridade e uma visionária sem remorsos que ultrapassa os limites da música e do significado”. Pessoalmente, continuo a ir a concertos, esperando que o próximo seja aquele que vai revolucionar a minha vida. O que podemos esperar dos teus concertos? Um daqueles que mude as nossas vidas?

É uma descrição muito lisonjeira e exagerada, à qual temos de estar à altura, não é? Obrigada, RP! Todos os espectáculos desta digressão até agora têm sido tão calorosos, tão encorajadores! Estou muito grata por as pessoas aparecerem, se organizarem e se esforçarem, agradeço imenso! Quem sabe por quanto tempo mais será possível? (A idade, o interesse, o mundo em ebulição, etc., etc.) Espero também conseguir estabelecer uma ligação muito íntima com o público nos próximos espectáculos — esses são os melhores espectáculos —, quando se pode conversar e não é apenas um diálogo.


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