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Fotografia: Raphael Gimenes
Publicado a: 28/07/2023

O guitarrista e compositor inscreveu recentemente o seu nome em matriz_motriz.

Mané Fernandes: “A repetição é uma oportunidade de exploração dos infinitos detalhes que qualquer pedaço de informação tem”

Fotografia: Raphael Gimenes
Publicado a: 28/07/2023

Músico de visão transcendente, Mané Fernandes tem-se afirmado como nome maior da música nacional. Desde que, no ano passado, lançou ENTER THE sQUIGG pela Clean Feed Records, os holofotes têm-se voltado para ele, curiosos por perceber que música tão engenhosa é esta, repleta de texturas, cor e grooves balançantes que o guitarrista e compositor tem criado. Mané é uma verdadeira esponja de influências — absorve com a facilidade com que só as grandes mentes o fazem. Mas o seu brilhantismo não advém de uma mera síntese de correntes separadas, antes de um pensamento independente que, com a dose certa de teimosia, sabe como fazê-las convergir em algo fresco e singular.

Com novo álbum editado pelo Carimbo Porta-Jazz, Mané Fernandes apresenta-se, assim, em 2023, com a mesma frescura com que o ouvimos em anos anteriores. matriz_motriz consiste num trabalho multidisciplinar em que jazz, hip hop, soul e música minimalista se fundem com dança, movimento, ritmo e swing numa nova unidade significante. Concebido no âmbito da parceria entre o Festival Guimarães Jazz e a Associação Porta-Jazz, este projeto confirma com distinção o valor das ideias de Mané Fernandes e a validade das estratégias através das quais as põe em prática. 

A riqueza e inovação artísticas deste guitarrista nascido e criado na Maia não se circunscrevem, contudo, à avidez com que assimila e à destreza com que manipula informação musical vinda de diferentes universos estéticos. Na sua metodologia de pesquisa — e na obstinação e obsessão com que a leva a cabo — encontram-se traços de personalidade que seriam valiosos em qualquer outra área do conhecimento. Não é, por isso, surpreendente que, à conversa com Mané Fernandes, facilmente se estabeleçam pontes de ligação entre conceitos pós-tonais, as teorias rítmicas de Malcom Braff, a filosofia do movimento ou a filosofia da mente. Tivesse nascido há 2500 anos e em Éfeso, e estaríamos agora a chamar-lhe Heráclito pela forma articulada como plasma o devir em explorações sobre o movimento físico, rítmico, harmónico e tímbrico.

Depois de um período a viver na Dinamarca, a prioridade de Mané tem radicado em dar enfâse à experiência subjetiva — a qualia, como gosta de lhe chamar. Paralelamente ao trabalho desenvolvido em ENTER THE sQUIGG, matriz_motriz tem sido outra via predileta para materializar a sua concepção de uma “drum machine machine do futuro, feita de sonhos”. Sonhos esses que o neoliberalismo vigente tenta inexoravelmente deitar por terra. Mas o guitarrista e a Invicta resistem — e continuam a lutar. Tudo isto e muito mais para ler nesta entrevista de fundo a Mané Fernandes.



Depois de ENTER THE sQUIGG, que foi uma verdadeira pedrada no charco na música nacional, lançaste agora matriz_motriz. De certa forma, com este trabalho, regressaste às origens, dado que, em 2014, já tinhas lançado o BounceLab pelo Carimbo-Porta Jazz. Porém, este não foi um regresso unicamente em termos editoriais, porque agora também estás a viver na tua cidade natal, na Maia. Como é regressar a casa? Sabe bem?

Sim, depois daquele tempo todo fora foi importante estar em casa outra vez. Depois da pandemia, que implicou estar longe da família, estar longe das minhas pessoas, assim daquela forma que todos nós sabemos… foi importante voltar! Portanto, soube-me bem voltar a casa, estar no Porto mais tempo, e lançar e interagir com a Porta-Jazz outra vez. Voltar a fazer parte da comunidade. Foi fixe.

Depois de anos a viveres no estrangeiro, na Dinamarca, como é voltar a criar a partir do meio que te viu crescer? Achas que, de algum modo, as tuas primeiras influências se manifestam mais neste ambiente? 

Não sei se afeta muito, porque, para mim, o processo de influência é um processo entre o linear e o circular. É uma cena que progride no tempo, de trás para a frente, mas que também anda em círculos. É uma coisa difícil de descrever e fácil de fazer com a mão, tal como estou a fazer agora [risos]. São círculos que vão para a frente e voltam atrás, e que depois vão um bocadinho mais à frente e voltam novamente atrás. É assim que eu visualizo a coisa, estás a ver? Independentemente de onde estiver, estou sempre a descobrir a coisa nova da semana, a ouvir aquela música de que gostava quando tinha 11 anos ou aquele disco com o qual bati mal quando tinha 14. Estou sempre assim, sempre… a minha vida toda. Por isso, nesse aspeto das influências, o estar aqui em Portugal não mudou muito. O que mudou mais foi o aspeto de ligação com as pessoas, isso sim.

O matriz_motriz teve a sua origem como projeto multidisciplinar proposto pela associação Porta-Jazz em parceria com o Guimarães Jazz. Queres falar-nos um pouco mais sobre como foi o seu processo de criação? Como é que se deu a construção da música e como foi trabalhar com este ensemble?

Então, isto resultou desse projeto que disseste entre o Guimarães Jazz e a Porta-Jazz. Isto consistiu numa residência de 7 dias, após a qual tivemos o concerto de estreia do projeto no próprio Guimarães Jazz, no contexto do festival. Neste caso, foi na Black Box do CIAJG (Centro Internacional das Artes José de Guimarães), não no Centro Cultural de Vila Flor [local onde foi gravado matriz_motriz]. E o processo estava completamente em aberto. Eu podia ter feito com aquilo o que eu quisesse. Há muita gente que vai para lá com a ideia de criar um projeto de raiz em 7 dias. A forma como eu funcionei — até porque esta música tem uma data de recursos composicionais bastantes específicos, não muito usados e até bastante subexplorados no mundo da música, que requerem alguma atenção e estudo — foi fazer uns quantos “pré-ensaios” antes da residência. Ou seja, eu compus o núcleo de cada peça — a informação essencial, não improvisada, de cada peça —, e reuni-me, às vezes individualmente, às vezes com parte do ensemble, para discutir essas ideias e para dar ideias de prática das mesmas. Fiz isto para as pessoas criarem a sua relação com a coisa, de forma a chegarmos à residência já com mais controle sobre as matérias e, assim, termos realmente oportunidade de trabalhar tudo com mais profundidade. Porque, lá está, são matérias específicas, pouco comuns, que as pessoas não encontram no seu dia-a-dia normalmente enquanto músicos. Por isso, foi fixe fazer esses “pré-ensaios” — vamos chamar-lhes assim — antes da residência.

Na residência em si, foi um trabalho diário — umas boas horas por dia — em que houve oportunidade de aprofundar mais e explicar melhor algumas dessas ideias. E também de trabalhar em conjunto. Não propriamente de compor. Imagina, há partes improvisadas da música que eu digo: “Ok, como compositor quero que vocês improvisem aqui, com estas matérias, desta maneira.” Depois, experimentávamos e sugeria novas coisas. Outra vezes, dizia: “não é bem por aqui, é mais por aqui”. Neste processo de muita experimentação, e com muita boa vontade e paciência da malta, conseguimos desenvolver uma cena forte para cada uma das peças. E, como disseste, isto é um processo multidisciplinar. Por isso, além disto, à medida que eu trazia as minhas ideias musicais muito concretas para o ensemble musicalmente resolver, a Britney Brown estava a aprender, também ela, um bom um bocado do material musical, especialmente do ponto-de-vista rítmico — que é o ponto-de-vista mais complexo desta música. E estávamos os dois a perceber o que é que eu precisava que fosse mais específico da parte dela e onde é que ela teria mais liberdade. Ou seja, a coreografia foi dela, mas eu pedi-lhe certas sincronias, certos pontos de contacto.

E como foi a dinâmica de articular o teu trabalho com o da Britney Brown? Houve algum tipo de retroalimentação entre a música e a dança ou a coreografia dela foi uma espécie de interpretação física do movimento subjacente à tua música?

Eu cheguei à residência com uma ideia um bocado concreta nesse aspeto: eu não queria que isto fosse uma banda a tocar e uma pessoa a dançar por cima. Porque a própria forma como esta música está pensada envolve jogar com muita liberdade, mas jogar com a “mão na massa”, com as funcionalidades da orquestração. Ou seja, com ideias como “o que é que é papel de um baixo?” Apesar de não termos ninguém a tocar baixo ou contrabaixo nesta banda. “O que é que é o papel de um solista? O que é que é o papel de um acompanhador? O que é que é o papel de um subacompanhador, isto é, de um segundo acompanhador?” Em relação a todas estas funções — chamemos-lhe assim — musicais, a minha ideia era que a dança também estivesse sempre numa dessas funções. Mas em silêncio. Por exemplo, aquilo que eu disse foram coisas como: “eu aqui gostava mesmo que fosse solístico para a dança”; “neste momento, eu quero que tu estejas comigo e com o Grilo a ser a secção rítmica”; “aqui quero que acompanhes o solista”. Eu fiz-lhe propostas deste género, estás a ver? Depois com coisas mais concretas. Por exemplo, no tema “MM2”, há uma parte a meio da composição de uníssono do ensemble todo, com um ritmo bastante espaçado, mas bastante complexo. Poucas pessoas teriam o software rítmico para entender o que está ali a acontecer, sinceramente, porque é uma forma de pensar muito pouco comum em termos de ritmo. Esse uníssono, a dança fe-lo também. E é uma coisa muito difícil de pedir a alguém não-músico para tocar aquilo, percebes? É um ritmo difícil. E a Bee partiu a loiça toda! Dançou aquilo na batata, está perfeito. Ela partiu tudo, dedicou-se imenso.

Como é que se deu o contacto inicial com a Bee Brown? Como é que surgiu esta colaboração?

Olha, como a maior parte das coisas da vida… Quando uma pessoa procura, procura, procura, encontra as pessoas que tem que encontrar. Eu acredito mesmo nestas coisas, porque fui viver para Copenhaga e rapidamente encontrei o baterista da minha vida. Passado pouco tempo, também rapidamente, encontrei o contrabaixista da minha vida. E, de repente, estávamos os três a viver na mesma casa. Eu vivi com a minha secção rítmica de ENTER THE sQUIGG, o Simon Albertsen e o Luca Curcio. Também conheci lá bué de gente… viveu lá o José Diogo Martins de ENTER THE sQUIGG, vive lá agora a Sofia Sá — que faz parte de matriz_motriz nessa casa onde eu já não estou. Até a minha namorada foi para lá viver. Ou seja, aquela casa onde eu vivi reuniu ali as minhas pessoas todas [risos]. 

A Bee Brown tem um percurso artístico e currículo impressionantes. É americana, estudou na Juilliard, trabalhou na Suécia durante imensos anos numa companhia de dança muito famosa. É uma pessoa com um percurso invejável, com alto currículo. Chegou lá a casa porque é a companheira do Simon, do baterista de ENTER THE sQUIGG. Estão juntos há muitos anos, e eu conhecia-a assim, como amiga. Ela é uma pessoa que tem um gosto musical incrível, conhece muito mais música do que eu — é impressionante! Ela conhece mesmo muito música. Por isso, como temos imensa música e procuras em comum, foi perfeita para este projeto.

E já que falaste da Sofia Sá, queres descrever-nos um pouco mais como foi a escolha dos músicos para este projeto?

Para começar por aí tenho logo de começar pelo João Grilo, do piano. O Grilo é uma pessoa que eu admiro muito artisticamente. Adoro como ele faz as coisas, a seriedade com que trabalha, e a pureza e profundidade artísticas que põe em tudo o que faz. É uma pessoa que, quando o conheci pela primeira vez nas jams da Escola de Jazz do Porto, eu tinha os meus 18 anos e ele os seus 15. Tocávamos muito nas jams da ESMAE e somos amigos há imenso tempo. Eu já estava há muitos anos a querer fazer coisas com ele, à procura da desculpa perfeita — e esta foi a desculpa perfeita.

Foi uma escolha natural…

Sim, absolutamente. Esta música é muito menos explosiva do que a do ENTER THE sQUIGG, não é? Não tem secção rítmica, a leitura da coisa é quase como se fosse música de câmara. É um ensamble pequeno, “acústico”, uma coisa de volume baixo, detalhes pequenos e ideias pequenas. Isso é uma coisa que o Grilo já explora há bastante tempo na música dele e que me inspira muito. Uma parte de mim é ENTER THE sQUIGG e vai ser sempre ENTER THE sQUIGG, que é sempre “mais, mais, mais” [risos]. More is more, estás a ver? Essa filosofia. Já matriz_motriz é o lado de: “Hey! Mas esta coisa minúscula, explorada com profundidade, é linda, e eu adoro isto também!” Eu tenho esses dois lados, absolutamente. Por isso, para mim, matriz_motriz e ENTER THE sQUIGG estão mesmo em paralelo a dizer o que é que eu quero fazer. Estão lado a lado… 

Less is more, neste caso…

[Risos] Neste caso é less is more à beira de more is more. Na realidade, foi até o Grilo que me disse que o Brandão estava à procura de malta para fazer o projeto e que me disse para lhe escrever. Foi ele que deu o push para isto rolar. Por isso, é a primeira pessoa que tenho de mencionar. Depois, eu sabia que queria trabalhar com vozes de modo criativo. Precisava mesmo de malta disposta a aprender uma cena e a trazer muito em termos de input criativo. A primeira pessoa que eu tinha na minha cabeça para isto era a Mariana Dionísio. Trabalhei com a Mariana primeiro no septeto Omniae Ensemble do Pedro Melo Alves, e depois no Omniae Large Ensemble, na orquestra de 23 pessoas dessa mesma música. Desde então, ficámos super amigos e já tocámos algumas vezes. Fizemos um duo, bastantes sessões, conversámos imenso sobre música. É das pessoas que eu admiro mais na improvisação — é impressionante! Por isso, a Mariana foi a minha primeira hipótese, porque sabia que ela estaria interessada em aprender estas coisas rítmicas específicas, ia perceber o que era pegar nestas coisas, e ia conseguir criar e expandir a partir daí. Sabia que ela ia perceber logo. E a Mariana é de uma solidez técnica e de uma força naquele instrumento que ajuda imenso num ensemble deste género. Traz muita solidez à coisa. Depois, a Sofia Sá e a Vera Morais vieram de dois sítios diferentes. A Vera, eu não a conhecia muito bem, apesar de a conhecer de vista porque estudou lá na ESMAE. Mas tinha ouvido o projeto dela com o Hristo Goleminov.

O Consider the Plums.

Sim! Que é um projeto magnífico, muito lindo. Falando deste tipo de música, em que é preciso pegar em coisas muito pequenas e tirar imenso lá de dentro, esse projeto é um excelente exemplo. Eu admiro-o imenso, e acho o trabalho deles os dois incrível. A Vera impressionou-me muito nesse projeto. Achei que ela ia alinhar e, então, conversámos, e ela mostrou-se super entusiasmada. Fiquei muito contente. Ou seja, a Vera conhecia-a neste projeto. E adoro! Ela trouxe uma camada de criatividade e de expressividade à coisa, de sons diferentes de voz — há uma riqueza imensa ali, e também uma solidez muito fixe. 

A Sofia Sá marcou-me muito num concerto que fez no Ermo do Caos. Foi o primeiro concerto a solo que ela fez, numa noite em que o Grilo também tocou a solo. A Sofia preparou uma cena com piano, loops e voz absolutamente dentro deste universo de: “Ah! olha este pequeno loop, olha este pequeno timbre, olha eu a fazer vinte minutos de música a partir de uma ideia pequena”. A Sofia é, também ela, de uma expressividade e de uma riqueza… não estou a falar propriamente das qualidades dos timbres e das vozes, que também são de uma riqueza incrível — tive muita sorte porque estas três vozes são super-ricas. Estou a falar mais da cena da criatividade, da procura, da sede… isso foi aquilo que mais me motivou nestas pessoas. O mindset criativo fez mesmo sentido e encaixou tudo muito bem. Na realidade, elas têm três registos de voz relativamente próximos, mas como têm este espírito em comum, conseguiu-se criar ali uns entrelaçados mesmo fortes, estás a ver?

Sem dúvida! E falando agora de um aspeto da tua música relativamente ao qual tenho interesse em saber mais. Numa entrevista que deste no ano passado ao Rui Miguel Abreu, afirmaste que o movimento tem um valor nuclear na tua música. Contudo, a tua conceção de movimento é bastante ampla e vai muito além daquilo a que habitualmente, no senso-comum, se entende como sendo movimento, nomeadamente uma alteração de um corpo no domínio espacial. Neste sentido, a minha pergunta é muito direta: o que é entendes por movimento e como é que enquadras o ritmo, a harmonia e o timbre neste conceito?

Ufff… tens duas horas e quarenta e cinco minutos para falar? [risos]

Desculpa. Eu disse que a pergunta era direta, não que a reposta era simples! [Risos] Explica-nos de uma forma resumida.

De uma forma resumida [risos]… vou fazer o meu melhor. Para mim, o movimento é absolutamente tudo o que me interessa, sabes? É mesmo tudo. É difícil eu começar a falar sobre isto sem começar a entrar num modo em que parece que estou a fazer apologia espiritual/religiosa, porque há aqui uma cena hardcore do que isto quer dizer, naquilo que é mais nuclear em termos filosóficos e espirituais para mim. Mas se partirmos de um princípio budista mesmo base como… a impermanência. O não-movimento não existe: tudo é literalmente movimento, sempre. Tudo o que aparenta ser estático é-o devido a uma relação de escala: podes ter que acelerar o tempo ou estar longe para ver que algo se está a mexer. Isto vem de eu pensar sobre isto todos os dias da minha vida, estar constantemente a aperceber-me de como todas as ideais de algo ser estático estão, na minha existência, sempre a ser questionadas. Desde o ato de uma pessoa meditar, concentrar-se na sua respiração, e reparar que tudo o que sente numa coisa parada que existe, como por exemplo um braço, vejo que não sinto um braço; sinto uma coisa que se mexe; sinto “eletricidadezinhas”; sinto movimento, vibração. Isto para dizer que a ideia de estar parado nem cabe na minha cabeça.

Falando de música, fazer um acorde já não é fonte de fascínio para mim — e eu sou um geek da harmonia! [Risos] Se há alguém que ficaria aqui a dizer todos os acordes lindos que há, sou eu. Mas aquilo que me interessa é que um acorde só por si não é realmente nada. Um acorde é uma fotografia arbitrária dentro de movimentos de vozes. Um acorde tem um valor muito diferente se se mexer desta forma ou daquela, ou se vier deste ou daquele movimento. O movimento em si é o que dá qualia às coisas. Para não usar a palavra cor, que é demasiado usada, eu gosto do termo qualia, que é mais neutro. Qualia é tudo o que é passível de ser sentido, isto é, perceived. Ou seja, na harmonia, eu vou querer saber mais em relação ao que são pequenos movimentos dentro das vozes, o que é ir de um tipo de cor a outro, e como é que nos temos de mexer para lá chegar. Até coisas mesmo concretas como movimentos de vozes, voice leadings. Como é que um formato interválico vai dar a outro formato interválico e como é que as vozes se entrelaçam? É sobre como estudar e explorar isso.

Acho interessante essa conceção, porque está bastante afastada daquilo que nos dias de hoje se entende como sendo movimento, mas não é de todo uma ideia que nunca tenha sido reinante, digamos. Aristóteles dizia que o movimento não era só espacial. Uma mudança de estado, quantidade ou forma também é, segundo ele, movimento. Por exemplo, podemos considerar um acorde um determinado estado e outro acordo um outro estado, e referirmo-nos à mudança entre os dois como sendo esse movimento a que te referes. Isto faz sentido para ti?

Isso faz completamente sentido. É o problema das palavras, é o problema de falar [risos]… Já usei a palavra movimento se calhar a querer dizer mais do que uma coisa. Nesta conversa, estamos a concluir isso. Porque às vezes estou-me a referir a coisas concretas. Eu faço muitas comparações com as áreas do movimento físico humano que eu conheço melhor: eu joguei basquete bastantes anos e gosto muito de skate, também.

E dançaste…

Dancei um bocado. Foi sempre informal dançar, mas sempre gostei muito de dançar. Por gostar da estética do movimento humano, fascina-me como é que aquilo que no papel seria levantar o cotovelo e esticar o braço, é feito por dez pessoas de modo completamente diferente e de como é que isso pode ser a assinatura de um ser humano, estás a ver? No basquete, isso é mesmo óbvio. Os movimentos técnicos são sempre os mesmos, mas eu vejo uma silhueta e sei perfeitamente que jogador é. Se não souber que jogador é, sei de que década o jogador é, de certeza. A forma como os jogadores se mexiam nos anos 80 não tem nada a ver com os jogadores dos anos 90 ou os jogadores da atualidade. Eu sou mesmo geek em saborear essas microdiferenças e de as explorar. Na música, em particular, sempre me fascinou muito o groove por ser a expressão disso. Isto é, um microritmo que leva a que os mesmos ritmos soem tão diferentes. As colcheias do Charlie Parker são tão diferentes das colcheias do John Coltrane, que são tão diferentes das colcheias do Wayne Shorter. Esta música de matriz_motriz foi um explorar mesmo específico de formas de mexer ritmicamente por mecanismos diferentes.

Desenvolvendo esta ideia de movimento. É notório que dás uma importância fulcral ao ritmo, ao swing, ao groove na tua música, a qual está repleta de estruturas métricas complexas, e que até se alteram várias vezes dentro de uma mesma faixa… há alguma lógica, quase matemática, por detrás das diferentes de fórmulas de compasso pelas quais as composições transitam ou tem tudo a ver com a direção musical que queres dar à música em termos de feeling

Isso é difícil de dizer. Eu tenho imensa informação rítmica mesmo muito complexa na minha música, ou seja, há muitos números… e grandes! [Risos] Há compassos grandes, há subdivisões complexas, e há o uso de uma coisa menos comum, que são as subdivisões swingadas, subdivisões tortas. Ou seja, isto são quintinas, mas não são quintinas no sentido em que são cinco notas iguais — são cinco notas diferentes umas das outras. Essa é a subdivisão que nós estamos a usar para tocar. Isto são septinas, mas não septinas even, são septinas swingadas de uma certa forma. No contexto do jazz, a malta está habituada a pensar em swing de colcheia, que são duas notas, uma maior do que a outra. Isto é um expandir disso para um número de subdivisões maior. Este tipo de complexidade é muito pouco explorado e é diferente de ter um som com um compasso dito chato. Um 13/8 são treze notas num compasso. Boa, mas são todas iguaizinhas. [Risos] Outra coisa é ter, por exemplo, aquilo que pode ser um simples compasso de 5 notas, mas no qual as notas não têm todas o mesmo valor. Esta é a estrutura base que uso nos meus ritmos. É uma forma de pensar um bocadinho diferente. O que me interessa é o sabor da coisa — lá está, a qualia. É tudo o que me interessa.

Há muita gente que tem interesse por ritmos complexos que também gosta de passar uma espécie de mensagem secreta: “tu ouves esta música, mas se soubesses os números que estão aqui ias a ver que com isto tudo somado escrevias uma palavra mágica!” [Risos] Eu sempre achei uma piada descomunal a isso, mas não tenho interesse nenhum em fazer isso. Só quero que as pessoas ouçam a música e que se permitam a sentir exatamente o que está lá e nada mais. Não é para retirar nenhuma mensagem, nenhum significado. Não, é só isto. Tão isto quanto uma refeição é precisamente e só aquela refeição. Não quero transmitir mais nada que não seja a música em si. Sou um bocado purista nessa cena… não estou mesmo a tentar passar mensagem nenhuma. Se houver alguma mensagem, tem muito mais a ver com ideias políticas do que com outra coisa, mas certamente não tem nada a ver com a música em si. Tem a ver com o acto de fazer música. Fazer música é uma mensagem política. Escolher fazer música em 2023 é, em si, uma mensagem política. Mas isso é outra coisa. A música em si é só a música. Estas coisas todas complexas que exploro dedicadamente há uns bons anos são só sabores que articulam essa qualia que quero que as pessoas sintam. Ou melhor, se estiver relacionado com alguma coisa é com a minha curiosidade por áreas não exploradas. Há pessoas que fazem de bom grado música em áreas em que já existe imensa música. Consigo perceber isso perfeitamente, mas eu tenho imensa curiosidade em explorar gavetas enormes de brinquedos com os quais ninguém está a brincar. “Deixa-me ver que coisas fixes é que eu faço com estes brinquedos na mão.” Eu tenho essa cena em cima. ENTER THE sQUIGG já tem muito disso, e a música de matriz_motriz também.



Algumas das ideias rítmicas que descreves — em que por exemplo há tercinas que não são necessariamente três notas com o mesmo valor — foram também muito exploradas por J Dilla, por exemplo. Penso que já referiste noutras entrevistas a tua admiração por ele.

O primeiro sítio em que conheci estas ideias deve ter sido mesmo no hip hop, porque eu sempre fui hip hop head. Para tu perceberes, o disco da minha adolescência foi o Voodoo do D’Angelo. Se eu tivesse que escolher um disco que me marcou dos 15 aos 19 anos foi esse. Eu nessa altura da minha vida ouvia muita música, tinha muitos discos. E o Voodoo do D ’Angelo é um exemplo de uma riqueza de time feels em que há muitas posturas rítmicas diferentes. E também há imenso hip hop produzido pelo J Dilla de que eu gostava muito e que nem sabia que ele era o produtor. Na altura, o meu irmão vivia em Inglaterra e mostrava-me imensas cenas de broken beat londrino, onde havia já muita procura por grelhas complexas — nada assim de quintinas, septinas e por aí em diante —, mas onde já se utilizavam estas grelhas em música produzida eletronicamente; música em que se brincava muito com as posições da tarola e dos hats. Esse tipo de experimentação já existia muito nesta música britânica, que eu também curtia. 

Por oposição, e isto até é um defeito, da mesma forma que eu visceralmente gosto muito de música, também não gosto nada de muita música, estás a ver? [Risos] E nunca gostei de muita música mainstream que é muito quadrada ritmicamente. Eu sempre gostei de música eletrónica, mas há muitos géneros de música eletrónica que são tao quadrados ritmicamente que me angustiam verdadeiramente. Doem-me. Eu já tive crises de ansiedade hardcore, de estar a sair à noite e de ter que fugir — “eu não consigo estar aqui com esta gente toda a gostar desta música horrível.” [Risos]

Identifico-me com isso, definitivamente.

Mas o parâmetro que mais me batia sempre era: “meu, isto não groova, a música não é para isto, o que é que estamos aqui a fazer?”. Isto só para ilustrar que é uma cena que me bate muito deste chavalo. Até desde mais novo… eu já tocava alguma música brasileira desde miúdo — os meus pais gostam muito de música brasileira —, e há um groove que a música brasileira também tem que é diferente. Então, esta cena do ritmo sempre teve lá. Houve foi um percurso de procurar ferramentas musicais que me permitissem aproximar disso. Na verdade, as ferramentas que eu considero mais úteis para entender estas ideias até chegaram tarde na minha vida, nos últimos 5 ou 6 anos, na altura em que me estava a mudar para Copenhaga. Mas, sim, a procura, o querer esse tipo de textura rítmica sempre esteve lá.

Faz sentido… No tema “MM2”, por exemplo, prestas tributo às teorias de ritmo de Malcom Braff. No teu Instagram disseste que todos aqueles que tem tido aulas contigo perceberão o que se está a passar na primeira parte desta composição. Podes explicar também aos leitores quais são as ideias aqui presentes?

Sim, isso é quase uma inside joke. O Braff é uma pessoa com quem ainda não tive aulas presencialmente. Tudo o que tive com ele foram três horas de Zoom, de obsessão, os três sem conseguir parar. Era suposto eu ter ido passar uns dias a casa dele na Suiça com o Simon e o Luca de ENTER THE sQUIGG, mas tive um problema de ouvidos grave no ano passado. Tive meses knocked out, por isso não pude sair de Portugal. Eles foram para lá sem mim, e eu estive online a fazer todas as perguntas que tinha para o Braff após muitos anos passados a estudar as coisas dele por mim. Entretanto, fiz algumas turmas, uma cá no Porto, no Ermo do Caos, e outra em Lisboa, no Aguardente, a falar deste tipo de ideias, numa de partilhar estas ideias que ninguém conhece com os colegas da minha geração para ver quem é que também tinha interesse nestas coisas. 

A música que eu mais uso para ilustrar o potencial das teorias do Braff é um tema chamado “Crimson Waves“. Essa música usa um padrão de septinas swingadas para onze. Ou seja, são 7 notas entortadas de uma forma que quase parece implicar uma grelha de onzina. Ele tem o ritmo de 11 num sítio e o ritmo de 7 noutro, e sabe tocar no meio dos dois; sabe viajar lentamente entre os dois. E essa informação rítmica é independente da informação melódica e harmónica — os acordes e as melodias não dizem nada sobre o ritmo. O ritmo é o ritmo, e as melodias são as melodias. O “MM2” não usa só isso porque do meio para a frente recorre a devices rítmicos diferentes, mas o primeiro que usa é exatamente esse. Por isso, é essa cena conhecidíssima do Braff — para quem conhece a música dele, claro — que eu usei. Fi-lo mesmo em gesto de homenagem: “olha eu a fazer uma coisa bastante diferente do que tu fizeste, com o teu brinquedo.”

E como inspiração para o tema “MM5” referes a tua curiosidade por estruturas pós-tonais…

É engraçado, porque o “MM5” é um tema muito especial para mim na medida em que não é um tema. O “MM5” é um mashup, uma micro-mixtape de cor. É uma textura que eu adoro e da qual eu não tenho vergonha nenhuma. Na minha música, não procuro propriamente linearidade, narrativa, contar uma história ou fazer um filme. Tudo isso são coisas muito nobres, muito lindas — muitas pessoas fizeram música incrível a pensar desta maneira —, mas eu não estou mesmo à procura de fazer isso. Isto porque também gosto de colagens, graffiti e mixtapes. Gosto de arte que, nesse parâmetro em particular — o narrativo —, é muito bruta e brusca. Esteticamente, gosto dessa textura.

Por isso, “MM5” são três loops que eu compus quando estava com COVID fechado no quarto com uma guitarra acústica. E quando estou fechado com uma guitarra acústica, só consigo improvisar grooves de soul. É tudo o que eu faço com a guitarra. Pego nela e sai-me um groove novo de 5 ou 6 acordes — porque isso, esteticamente falando, é a coisa que está mais profundamente enraizada dentro de mim. O “MM5” é um desses grooves, seguido de uma construção super estranha — improvisada —, para as vozes, onde há conceitos de música pós-tonal a serem explorados, sem dúvida. Depois há outro groove onde há um solo de piano que desagua numa improvisação de guitarra a solo, onde eu também exploro tudo e mais alguma coisa do ponto-de-vista harmónico. Por fim, tudo desagua num terceiro groove — a coisa mais gospel que já escrevi na minha vida! 

Este tema é muito especial porque representa muito da minha proposta artística em geral. Se estou a fazer alguma coisa para além de música é a dizer: “para mim, isto e isto ao lado um do outro tem valor.” Muitas vezes, vejo isso a não acontecer e vejo pudor em fazer isso, como se fosse um tabu. E, sinceramente, como pessoa que estudou num país escandinavo vindo do Sul da Europa, recebi muito preconceito estético; muita superioridade de valores de sobriedade, linearidade e contenção — uma data de valores estéticos que são o que são. Mas eu tenho muita vontade de dizer: “não, para mim, isto e isto ao lado um do outro tem valor. E eu gosto. E estou-me a cagar se tu não gostas!” [Risos] Tenho isso como uma cena muito forte em mim hoje em dia, porque tive de lutar muito lá por aquilo em que acredito. Fui muito criticado por þessoas com outras ideias. O “MM5”, então, para mim, é isso: um groove que podia ter sido sacado do D’Angelo, outro da Jill Scott, uma improvisação vocal que podia ter sido escrita pelo Schönberg, acordes que são literalmente a teoria harmónica do Barry Harris do bebop. Portanto, está tudo a valer. Se eu gosto, se ressoa em mim, merece estar junto. Se o pessoal não curte, paciência [risos]. 

Já que estamos a falar de toda esta informação musical que entra na tua música… Para além do jazz, referiste no passado que és muito influenciado por outros géneros que vêm da black american music, desde o hip hop ao neo-soul, ainda que saiba que esta não é uma denominação que te agrade particularmente. Apesar da repetição estar já presente no ENTER THE sQUIGG, parece-me que neste matriz_motriz as ideias de circularidade exploradas estão muito mais próximas das correntes tradicionalmente designadas como minimalistas do que propriamente à repetição de loops encontrada nos beats do J Dilla ou do Alchemist. Digo isto porque há na música de matriz_motriz e principalmente no tema “MM1” — uma certa construção progressiva que envolve, por vezes, uma gradual sobreposição de camadas e que não é, de todo, requisito nas bases de hip hop. Sei que és bom a reconhecer e a estabelecer continuums musicais… há aqui pontes de ligação entre estes dois mundos?

Sim. Vale a pena dizer que esses compositores europeus e norte-americano de art music, de música erudita, não inventaram essas ideias, certo? Esses compositores inspiraram-se em músicas folk do mundo todo para concretizar essas ideias. Os seres humanos fazem música repetitiva desde sempre, isto é, desde que fazem música. Desde sempre que as pessoas perceberam que dizer uma coisa uma vez tem um valor, e que dizer essa mesma coisa 500 vezes seguidas tem um valor drasticamente diferente.

Apesar de estar-se a dizer exatamente a mesma coisa…

A questão é essa. Voltando àquela história de que falávamos há um bocado em relação ao movimento inerente das coisas. Podemos descrever racionalmente com palavras e ideias que aquela pessoa disse a palavra “caneca” 50 vezes seguidas. Isso é uma descrição que até pode correta do que aconteceu, super accurate. A pessoa que está a viver a experiência de dizer “caneca, caneca, caneca” 50 vezes seguidas, se se predispuser a viver essa experiência, vai reparar que, na experiência em si, a perceção viaja imenso: agora repara mais na primeira sílaba, depois na segunda; agora repara no som da primeira e da segunda sílabas juntas; depois repara na terceira, ou a terceira e a primeira juntam-se; depois é a segunda e a terceira sílabas que se juntam; de repente, há um som que a palavra em si tem, e o som muda — todos nós já tivemos a experiência de estar a dizer uma palavra e de acharmos que é estranha. As músicas minimais — ou podemos chamar-lhes repetitivas — exploram isto. A repetição não é repetição por si. A repetição é uma oportunidade de exploração dos infinitos detalhes que qualquer pedaço de informação tem. O repetir é dar a oportunidade de voltar a ouvir outra vez. Isso é tão comum a um beat de hip hop, como a um círculo de drumming da west africa ou à música de gamelão. As músicas repetitivas têm essa cena: a oportunidade de saborear todo o infinito de perceção que uma frase tem.

Referiste-te ao “MM1”… Este tema é, também ele, uma exploração das ideias do Braff, em que existem pequenas partes — pequenos blocos de Lego — que se repetem durante muito tempo. Mas essa repetição está organizada em 3 partes diferentes, em que um padrão de swing em particular é esticado do 0 ao 100 por cento, devagarinho. Ou seja, é uma coisa que está a repetir-se, mas com um parâmetro a progredir linearmente, o qual afeta drasticamente o significado daquelas notas, dos ritmos e da junção das diferentes camadas. Se estiver aqui a provar um point, é que nada nunca se repetiu. Se reparares, a coisa está sempre a ser ligeiramente diferente. Isso põe-me num estado de audição com muito mais profundidade do que música que é muito linear e que está sempre a mudar. A repetição é uma oportunidade de ouvir com mais profundidade.

Gostas de compositores ditos minimalistas, como Terry Riley, Steve Reich ou, para dar um exemplo de um compositor afro-americano, Julius Eastman?

O Julius Eastman por acaso não conheço. O Reich e o Riley, já tinha ouvido, mas não conheço profundamente. Passei por lá num “passar de folhear”, por saber que eram compositores de referência e para ouvir algumas peças importantes. O meu passar por essas músicas é um passar de querer conhecer e de querer estar ciente do todo que é feito. Não é música que me apaixone, nem é música que tenha estudado profundamente como estudei outras músicas. Mas, lá está, muitas vezes há pessoas que fazem coisas separadas e que não têm referências umas das outra, mas sim de algo em comum, que se encontra lá para trás. Músicas do mundo, música africana, isso sim, influencia-me muito… eu cavo muito aí.

Isso é interessante… o meu ouvido inocente pensou que tinhas ido beber principalmente ao Steve Reich e ao Julius Eastman.

É possível ser influenciado indiretamente por uma pequena ideia. Podemos ter estas coisas todas em comum, mas a questão é que eu posso ter toda uma pesquisa individual que não passa pela observação dessas outras pesquisas, ainda que possa até levar a resultados parecidos. Eu tenho perfeita consciência que, estando a explorar isto pela primeira vez com esta banda, neste disco saíram coisas únicas, com relevância e valor. Parte de eu escrever mais para banda se calhar vai ter de passar por pesquisar outras soluções que outras pessoas descobriram. Para já, ainda não senti falta de soluções. Talvez um dia sinta necessidade de ver algumas perguntas respondidas por essas pessoas; para já, as minhas influências chegaram como resposta. 

Que sonhos são estes que perfazem “a drum machine do futuro” que é este ensemble?

Ora aí esta… opá, ui [risos]. Adoro responsabilização… sonhozinhos, mas quais? [risos]

Isto, claro, para não te perguntar o que dizem os teus olhos [risos].

Uffff [risos]. O sonho em que as pessoas podem fazer a música em que acreditam, ao mesmo tempo que conseguem sobreviver a fazer isso. Esse é o primeiro sonho que me salta à cabeça, porque isto está difícil. Se me permites 2 minutos de política, sinto mesmo que pertenço a um grupo de pessoas que está desesperadamente a dizer: “hey, bro, deixa-me existir… posso existir?”. Isto num mundo que está todo afinado por pessoas que só querem saber de fazer muito dinheiro e de mais nada, e que não vêem valor em nada que não faça muito dinheiro.

Olha, tive um Professor em Copenhaga, um baterista chamado Kresten Osgood. Ele é baterista, improvisador, um dos músicos mais importantes da história da Dinamarca. É uma pessoa de uma profundidade única dentro da improvisação livre e do free jazz, e já tocou com o Sam Rivers e outras lendas. O Kresten tinha uma aula chamada “discos que tu nunca ouviste.” Era literalmente uma aula em que íamos para lá, e ele trazia 4 trabalhos aleatórios da parede de discos que tinha em casa e mostrávamo-nos: “olhem este saxofonista improvisador japonês que só lançou uma cassette”.

Wow! Adorava ter estado nas vossas aulas.

Foi incrível. Foi brutal. Houve uma vez que ele disse: “Vocês estarem aqui a querer saber disto, a querer fazer isto, e todas as implicações que isso vai ter na vossa vida por não estarem naquele escritório, ali à frente, a trabalharem das 9 às 5, todos os dias, é um statement político escandaloso — quer queiram quer não — porque estão a dizer que isto tem valor.” É difícil, porque tudo está desenhado para isso não funcione e teres de desistir da música e aceitar um trabalho que não queres fazer. Assim, pessoalmente — não posso falar pelo resto da malta do ensemble, embora sinta que iam todos concordar —, um dos sonhos é esse: eu só quero existir e perseguir as coisas que acho que são absolutamente lindas e valiosas no universo, ter teto e comida. Não peço muito mais do que isso — e já isso é difícil!

Isto até no traz a um tema que é muito atual e que tem que ver com a situação que o Porto hoje vive em termos da sua cena musical. Todos os episódios das últimas semanas relacionados com o STOP demonstraram, por um lado, a situação precária da música em Portugal, e segundo, que existe uma forte união entre os músicos e uma grande vontade de lutar por uma sociedade que valorize a arte e a criação. Qual é a tua visão sobre estes acontecimentos?

Eu tive sala no STOP durante muito anos. Por exemplo, BounceLab aconteceu por causa do STOP. Até matriz_motriz: eu fiz as pré-misturas deste projeto com o Filipe Louro, antes de mandar para o Zé Diogo Neves para ele misturar e masterizar a sério. Demos ali uns jeitinhos, no STOP, no estúdio do Filipe Louro. O STOP é algo que faz parte do quotidiano de qualquer músico do Porto. A malta vai lá ensaiar, buscar um instrumento emprestado, deixar alguma coisa… é uma parte importantíssima da cena. Contudo, como não tenho sala no STOP neste momento — estive fora muitos anos —, o que senti que devia fazer era acrescentar mais um corpo àquela massa na mensagem de que o que nós fazemos tem valor e que merece ser tratado com mais respeito do que aquele com que foi tratado. Porque independentemente de se a malta se organizou bem ou o suficiente, ou se houve disputas internas que tornaram a comunicação difícil, a medida de fechar abruptamente o STOP e obrigar a requerimento para recuperar material foi de uma animalidade e brusquidão, de uma falta de respeito… É ver zero valor no trabalho da malta! Isto, claro, na altura alta do Verão, quando muitos de nós estão a tocar em festivais. Foi mesmo violento. 

Por isso, estive lá na primeira manifestação. E também estive agora na caminhada da câmara ao STOP, a tocar bombo — nunca tinha tocado um instrumento de percussão tantas horas seguidas, ainda me doem os braços [risos]. Estive lá numa só de fazer barulho. Eu não tenho as soluções, não sei o que é podia ter sido feito melhor ou o que é terá de ser feito melhor. Mas não é por não saber as soluções que não tenho o direito de dizer: “assim, não! A forma como me estás a tratar está errada.” Os músicos uniram-se pelo direito à existência e ao trabalho. Eu acho que a malta da associação está a procurar as melhores soluções, reúne-se com a câmara… Não sei como é que aquilo se vai resolver, mas espero que se resolva. Nenhuma das propostas da parte da câmara foi sequer séria — e isso é o mais frustrante. Não só o desrespeito com que a malta foi tratada, mas também virem dizer: “ah, mas nós oferecemo-vos o Silo Auto”. Um open space para 500 músicos!

Eu não sei qual é a solução, mas a minha disponibilidade, corpo e peso estão lá para o que for preciso. Porque é mesmo um privilégio incrível — não há muitos STOPs no mundo. Não há aquela coleção de músicos todos a ensaiarem uns aos lados dos outros. A fertilidade artística daquele tipo de espaço é fabulosa, e não há muitos casos assim no mundo. Por isso, essa fertilidade tem de ser preservada e respeitada.

Para terminar, em que outros palcos é que ainda te vamos poder ver e ouvir este ano?

Gostava de ter melhores notícias. Para já, este ano, está um bocado complicado. Está a ser difícil de marcar concertos. Tive um Junho fixe, mas para já não tenho grandes datas para vender, nem de ENTER THE sQUIGG nem de matriz_motriz. Acho que o matriz_motriz, para já, vai acontecer de certeza no festival da Porta-Jazz, em Fevereiro de 2024. Isso tenho garantia. Mas, de resto, está complicado. São ensembles com malta internacional, é sempre mais difícil de marcar as coisas. E, sinceramente, quando se quer expandir a caixa, demora até as pessoas perceberem o valor da caixa expandida [risos].


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