Fado Camões sucede a LINA_Raul Refree e impõe a fadista LINA_ como uma das mais tremendas intérpretes portuguesas da actualidade. Não apenas do fado, o território vasto que ainda navega, mas da música em geral. No trabalho anterior realizado com o mesmo produtor espanhol que desenhou a penumbra que cobria Los Angeles, o trabalho de estreia de ROSALÍA, LINA_ vergou-se à enormidade de Amália para medir o alcance da sua voz. Num trabalho que contornava convenções e dogmas formais do fado, a sua capacidade de se encontrar em obra alheia, de descobrir um lugar singular onde tantos outros artistas procuraram, muitas vezes em vão, distinguir-se, foi absolutamente fulgurante. E o que poderia pensar-se ser alquimia de estúdio, fruto do trabalho e visão de Refree, confirmou-se, em assombrosos espectáculos de palco, como realidade inescapável: dotada de uma voz de transparência e leveza absoluta, carregada de alma e carisma, LINA_ consegue voar onde tantos e tantas artistas só caminham.
Desta vez, Fado Camões conta com Justin Adams como produtor, outro absoluto desconhecedor do fado que, por isso mesmo, consegue abordar as cristalizadas formas tradicionais sem sentir o peso dos códigos, das práticas consagradas na história. Ele, cujo longo percurso se estende de trabalho ao lado de David Toop com as japonesas Frank Chickens ainda na década de 80 até à militância nos belíssimos Invaders of the Heart de Jah Wobble e participações múltiplas em registos de Sinéad O’Connor e Natasha Atlas nos anos 90. Já neste milénio, o seu nome surge em créditos de registos de Robert Plant, Tinariwen ou Rachid Taha, nomes com quem trabalhou igualmente como produtor, além de músico. Um currículo ultra sólido que se sente bem em Fado Camões, álbum em que a poesia do nosso maior poeta — que Amália acreditava ser já fadista — se cruza com as melodias do fado tradicional vestindo-se, no entanto, de arranjos que vão bem para lá das margens a que tal tradição está habituada.
Agora, já na próxima terça-feira, dia 30 de Janeiro, LINA_ sobe ao palco do Teatro da Trindade para nos mostrar este Fado Camões, descendo depois, dia 17 de Fevereiro, até Beja para idêntica missão no Pax Julia. Sobre tudo isto, LINA_ conversou em frente de uma audiência na FNAC do Chiado, em Lisboa. Essa é a conversa que a seguir se transcreve.
Acabas de chegar do frio.
Vim [risos].
Nevava em Groningen por esta altura?
Nevou, nevou. E é uma coisa que não costuma acontecer muito em Groningen. Disseram-me que não é normal nevar, mas caiu um grande nevão.
Como é que correu esta tua primeira apresentação, que aconteceu no âmbito no Eurosonic?
Correu muito bem. Eu já lá tinha estado em 2020, com o projecto anterior com o Raül Refree. Já sabia mais ou menos como é que funcionava, como é que era toda a gestão deste festival, a correria que este festival é [risos]. Mas valeu a pena pelo facto de estar com 300 artistas no mesmo festival. Acaba por ser recompensador o poder levar também este projecto para lá.
Como é que foram as reacções? O que é que as pessoas sentiram relativamente a este novo projecto? Até porque, como tu dizias, já conhecem os teus passos anteriores, não é?
Correu bem. A sala estava bastante composta, quase cheia. Houve uma reacção interessante, porque a sala era muito mais destinada a uma cena mais jazz, não tanto para música electrónica. Mas a sala estava bem composta, houve receptividade e houve silêncio, que é muito importante para o fado. Acho que fizemos um bom trabalho.
Entretanto, tens pela frente duas apresentações nacionais: dia 30, no Teatro da Trindade, em Lisboa, e no dia 17 de Fevereiro, no Pax Julia, em Beja. Vi alguns concertos do projecto anterior e percebia-se que foram concertos criados com régua e esquadro no que dizia respeito à iluminação, à encenação, ao rigor do som… Isso é muito raro no espectro nacional. E dado todo esse cuidado, tu elevaste muito a fasquia. O que é que podemos esperar destas apresentações para este Fado Camões?
Enquanto o álbum anterior, Lina_Raül Refree, estava muito centrado na musicalidade, nas texturas, no trabalhar o som… Nós pegámos nos temas clássicos de Amália Rodrigues, mas a atenção principal foi para a forma de criar as paisagens musicais. Neste Fado Camões, o trabalho está mais centrado na escrita, na literatura, é muito mais… É um disco que junta os fados tradicionais com a lírica de Camões. Obviamente que o cuidado vai ser exactamente o mesmo. A “régua e o esquadro” da Tela Negra vai manter-se, com um belíssimo desenho de luz. Vai haver todo esse cuidado estético, com o qual tenho sempre muita preocupação, também porque trabalhei no teatro e tenho muito essa visão. Acho que, visualmente, um concerto também tem de ter esse cuidado. No fundo, eu tento trabalhar sempre com algo que me emociona e este disco emociona-me pelas poesias maravilhosas do nosso Luís de Camões, que são inconfundíveis. Juntei-as ao fado tradicional, tive a ajuda, também, da querida Amélia Muge, que sempre me incentivou e me fez questionar em muitas vezes. Tentámos programar este disco de uma forma muito coerente, tanto nos temas do Camões como na estrutura dos fados. Isto foi, no fundo, uma pesquisa intensa para chegar a este resultado.
É muito natural, penso eu, começar um percurso — e não é que tenhas começado exactamente aí, mas refiro-me a esta nova fase da carreira em que assinas como Lina — e passar-se de Amália para Camões, afinal de contas dois gigantes símbolos da nossa cultura. Mas de certeza que houve um momento, depois de teres recolhido todos os aplausos — e foram muitos, nacionais e internacionais — para esse projecto que fizeste com o Raül Refree, em que tiveste de decidir: “Qual vai ser o meu passo seguinte?” Como é que se chegou a Camões depois de se ter passado por Amália?
Surgiu por acaso, ainda durante os concertos com o Raül. Enquanto lia a biografia de Amália Rodrigues, apercebi-me de que, em várias frases do livro, dizia-se que o poeta preferido da Amália era Luís de Camões. Ela própria dizia, numa entrevista ao Diário de Notícias: “Camões é o maior fadista que existe, e um poeta não tem de estar numa gaveta ou numa prateleira.” Daí ter tido a curiosidade de pesquisar mais sobre os poemas do Camões. Inicialmente, a ideia passou só pelos sonetos. Quando falei com a Amélia, ela disse-me: “A lírica de Camões não são só os sonetos.” Tem a redondilha menor, a redondilha maior, montes, imensos poemas que se enquadram perfeitamente na estrutura do fado tradicional. Foi essa pesquisa intensa a dar-me essa vontade de fazer este disco e a ser persistente, a não desistir. Porque houve momentos em que foi bastante difícil. Eu lembro-me de ter feito a primeira música, o primeiro fado, e de ter… Ao folhear a obra do Camões, à medida que ia lendo cada poema… O meu conhecimento dos fados tradicionais permite-me cantarolar e perceber se a musicalidade de cada verso se enquadra em cada fado tradicional. Também tive imenso cuidado a escolher os temas do Camões — o desencontro, a mudança, as questões do mundo, a dor e o afastamento. Com todos esses temas que são tão próximos do fado, fazia todo o sentido eu tentar que os fados tradicionais encaixassem na lírica de Camões. Há dois poemas na “O Que Temo E O Que Desejo”, que foi gravada com o Rodrigo Cuevas, dos quais um foi escrito em português e a parte que o Rodrigo Cuevas canta em galaico-português. Foi a Amélia Muge que os juntou, adaptou estes dois fados de modo a que coubessem nas sextilhas do fado triplicado. Depois, toda esta importância que a lírica de Camões tem, o facto de juntar a Península Ibérica, de nos remeter a como éramos, de facto, irmãos, e de que não existia a questão das fronteiras que existem agora — quer dizer, já existiam, mas eram outras questões. No fundo, juntar estas duas línguas num mesmo poema, para mim fazia todo o sentido. O primeiro fado que gravámos em estúdio foi o “Desamor”, e foi algo que o produtor, o Justin Adams… Ele é inglês e veio ao meu encontro, ou eu fui ao encontro dele [risos]. Foi o primeiro fado que gravámos, sem nunca termos tocado ou estado juntos. A química… Ele nunca tinha ouvido fado e a química foi instantânea. Às vezes não é preciso saber muito de onde é que vem a música, quais são as suas raízes. Se nos emociona, é porque faz sentido.
Ele nunca tinha trabalhado com fado, mas tem uma enorme relação com a musica magrebina.
Exactamente.
Dir-se-ia que está ligado a uma fonte qualquer, remota e arcana, à qual, se calhar, o fado também deve muito. Eu trouxe aqui um livro do grande biógrafo da Amália, o Vitor Pavão dos Santos, em que ele explora a ligação da diva aos diferentes poetas. Obviamente, há um capítulo sobre o Camões. Essa conversa da Amália com o Diário Notícias, que mencionavas, aparece aqui muito citada. Porque na época houve todo um debate… Isto não foi uma coisa tão natural quanto isso, quando a Amália teve esta decisão de tomar na sua voz esse grande poeta...
Eu até te posso contar uma curiosidade. A Amália cantou Camões pela primeira vez para a RTP, em 1961, e quando o jornalista lhe perguntou de quem é que eram os versos, a resposta dela foi: “Estavam numa gaveta, num livro.” Portanto, a Amália não quis dizer de quem eram os versos.
Não foi uma coisa muito bem vista. Perguntam-lhe, a dada altura, o que ela acha que o Camões pensaria. Ela responde qualquer coisa como: “Eu não sei. O Camões é que devia, talvez, achar mal que eu tenha tido este arrojo. Cantei os versos porque gostei deles. Os versos que os poetas escrevem são para ser cantados e conhecidos. Os poetas pertencem ao povo. Eu sou do povo.” Há até um debate público, em que se vão auscultar diferentes intelectuais para avaliarem essa ousadia da Amália. Uma das respostas mais interessantes foi do Alexandre O’Neill. Perguntaram-lhe: “O que é que acha deste gesto da Amália, de decidir atirar-se à poesia camoneana?” Ele tem uma resposta que eu acho absolutamente incrível: “Os poetas não são para sobreviver em pedra. Nem as fadistas em navalhas de ponta e mola.”
É verdade [risos].
Estas palavras carregam um peso especial, não é? Eu imagino que pese um bocadinho nos ombros na hora do microfone estar diante de ti, de olhos fechados a pensar que estás sozinha no mundo com aquelas palavras. O que é que te ia passando pela alma e pela cabeça durante as sessões de gravação do disco?
Eu tentei adaptá-los à minha vivência. Tentei adaptar cada um deles e encontrar a musicalidade nos versos, que também é importante. Mas, por exemplo, o “Desamor” é algo que me diz bastante. Camões dizia: “Segundo o amor que tiverdes, tereis o entendimento dos meus versos.” Isto já diz tudo, não é? Eu não preciso de pensar como o Camões pensou. Eu não preciso de cantar aquilo que Camões escreveu. Eu preciso de cantar aquilo que eu interpreto daqueles versos. E cada um interpreta à sua maneira. Eu gravei músicas e letras que me tocassem. E todas elas me tocam profundamente.
Percebe-se bem pelo desempenho. Não posso deixar de te perguntar uma coisa. Tu já mencionaste aqui duas ou três vezes o “fado tradicional”. No entanto, escutando-se este Fado Camões, percebe-se que a tua abordagem é tudo menos tradicional. Por exemplo, o disco termina com uma gravação do ruído do trânsito na rua, que tu fizeste com o teu telemóvel. E, na maneira como se pega nesse fado tradicional e se lhe dão vestes que são diferentes daquelas a que as pessoas estão habituadas, leio nisso a mesma ousadia que levou a Maria Teresa de Noronha a descrever estes fados da Amália como: “Ela canta como o Picasso pinta.” Eu acho que ela não pensou nessa frase como um elogio, mas para mim é um elogio [risos].
Agora é um elogio [risos]. Os fados da Amália do Alain Oulman também não eram fado e agora são os grandes fados da Amália.
Precisamente. Não é uma coisa… Digamos assim: tu não estás a trocar as voltas aos modelos tradicionais só porque sim. Estás a olhar para o futuro, é isso? Estás a querer transportar este fado para um outro tempo, mais à frente?
Eu não penso muito nisso. O que eu sinto quando entra um órgão ou um som que, se calhar, nos faz sair daquilo a que estamos habituados a ouvir no fado tradicional… Se eliminar todos esses sons e cantar a capella, não deixa de ser fado por isso. No fundo é o que eu faço. Tiro os instrumentos todos, canto a capella, gravo a minha voz, e depois tento perceber que tipo de instrumentos, que tipo de ambientes… É que nem é dos instrumentos, porque eu não penso na música pelos instrumentos que se podem tocar. Eu penso na música como um ambiente, penso em: “O que é que poderá fazer elevar ainda mais esta música? Que tipo de instrumentação é que a pode tornar mais impressionante?” Eu adoro músicas, por exemplo, cantadas em catedrais. Torna a coisa muito mais espiritual. É isso que eu procuro, música que me emocione, me arrepie a pele e que não seja só aquela coisa de “a tradição tem de ser assim.” Porque não tem de ser assim. Para mim, não tem.
Uma última pergunta em torno dos espectáculos: o que se vai poder escutar no teu repertório é uma boa parte do alinhamento do novo álbum, mas vais recuar também?
Para já, estamos centrados em fazer… Este disco tem um conceito. Se eu for cantar músicas dos disco anterior, perde-se o conceito. O conceito são os fados tradicionais com a lírica de Camões. Se no meio do concerto começar a cantar uma música doutro autor deixa de fazer sentido. Este disco tem um conceito do início ao fim. Obviamente que depois de todo o disco cantado, veremos se podemos introduzir alguma surpresa…