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Fotografia: José Frade/EGEAC
Publicado a: 02/10/2020

De queixo no chão.

Lina_Raül Refree no CCB: Amália vive na sombra e na luz deste espectáculo perfeito

Fotografia: José Frade/EGEAC
Publicado a: 02/10/2020

O concerto que Lina_Raül Refree ontem assinaram no Grande Auditório do Centro Cultural de Belém é uma magistral lição na arte ultra-delicada de equilibrar emoção, rigor técnico, imaginação cénica, som e silêncio, sombra e brilho. Naquele palco, como decerto noutros que a dupla tem vindo a pisar internacionalmente com crescente e plenamente justificada aclamação, viveu-se um momento de assombro, único, de tão perfeito.

Tal como nas artes plásticas houve artistas, como Piet Mondrian, que depuraram uma visão sobre a natureza e a luz transformando-a em abstractas representações cromáticas, também é possível pensar na abordagem do catalão Raül Refree ao fado como uma depuração extrema e exploratória desta canção, uma visão singularmente distanciada e, por isso mesmo, liberta de dogmas culturalmente impostos. Com dois pianos, o acústico de cauda e o eléctrico Rhodes, e uma panóplia de efeitos, Refree criou, sobretudo, um ambiente, um espaço aural, que a voz de Lina habitou de forma muito própria. O uso da reverberação e a exploração espacializada das texturas harmónicas conseguidas através, por exemplo, da percussão das cordas do piano acústico, transformaram o Grande Auditório do CCB numa catedral, conferindo à música uma profunda dimensão espiritual. Essa orquestração de frequências, de efeitos, no som em que todos mergulhámos, foi assinada por Arnau Hernandez.

Decisivo para o efeito final é também a ocupação do espaço cénico por parte dos dois artistas, numa subtil encenação “coreografada” originalmente por António Pires, um mestre na gestão de corpos no espaço e das emoções no tempo. Depois há a luz trabalhada pelos mestres da Tela Negra, fantasmagórica, diáfana, um espectáculo dentro do espectáculo, na forma como se conjugam silhuetas e sombras, como se iluminam os rostos dos artistas, parecendo que se procurou inspiração nos teatros de sombras chinesas ou no teatro japonês, tal o rigor dos recortes oferecidos aos dois corpos presentes. E, logo no arranque, com aquele “Medo” que consegue tocar-nos no mais fundo da alma, o que pareciam hologramas, transformando Lina e Raul numa espécie de figuras monásticas, foram um autêntico deleite para os olhos.

Além de “Medo”, escutou-se “Gaivota”, “Santa Luzia”, “Maldição”, “Quando Eu Era Pequenina” — e por aqui a tensão já era tão tamanha que o público, por um lado sem espaço para se pronunciar até aí, já que as peças foram surgindo encadeadas, sem pausas, e, por outro, estando de respiração cortada pelo  arrebatamento, irrompeu em efusivos e espontâneos aplausos, tanto acto de libertação catártica de emoções quanto gesto de justa premiação da performance dos artistas. “Fado Menor”, “Foi Deus”, “Destino”, um extático “Barco Negro”, “Cuidei Que Tinha Morrido” e, a fechar, “Avé Maria Fadista”, completaram o alinhamento.

É lícito dizer que esta é a melhor homenagem possível para Amália, que foi sempre uma arrojada modernista, uma artista de corpo e alma inteiros que nunca recusou o risco, a inovação, a invenção. E é isso que Lina e Raül nos oferecem: uma ultra imaginativa, arrojada e criativa reinvenção da eterna arte de Amália, com um reportório de ampla substância espiritual. E Lina é, claro, a chave: a sua voz não teme ser frágil, a sua garganta não esconde as emoções e tenho sérias dúvidas que um par de lágrimas não lhe tenham escorrido rosto abaixo ontem. É que ainda que invisíveis para nós, foi certamente possível escutá-las na sua voz, naquele magnífico “Cuidei Que Tinha Morrido”, por exemplo. Lina é uma daquelas artistas que canta com todo o corpo. E com o rosto. A sua entrega é total e incondicional, serve a canção, faz jus à arte.

No total, da soma da superior qualidade técnica do som, da luz e do desenho cénico com a imaculada interpretação daqueles dois artistas de um reportório de excelência resulta aquele que é, certamente, um dos melhores espectáculos musicais já recebidos nos nossos palcos. Não é exagero, é constatação…

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