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Fotografia: Marta Bento
Publicado a: 11/03/2024

Polifonias envoltas em lã.

LIÇO na CURA: a caminho de “reaver o fio à meada”

Fotografia: Marta Bento
Publicado a: 11/03/2024

São um colectivo vocal e dão pelo nome de LIÇO — conjunto dos fios que conduzem a urdidura num tear. LIÇO como nome escolhido para o quinteto composto pelas vozes de Beatriz Lerer Castelo, Diana Gil, Mariana Anacleto, Teresa Costa e Vera Morais. Estão por estes dias em residência criativa na CURA — o espaço da Música Portuguesa a Gostar Dela Própria, em Serpins. A acção do tempo sobre a matéria, neste caso a matéria criativa vocal, nascida da vontade em retomar as polifonias do cancioneiro português na dimensão da distância, quer no tempo, quer até no espaço. LIÇO surgiu em Amsterdão para cantar em torno dos ofícios do ciclo da lã: cramear, cardar, fiar, dobar e tecer. Cinco passos a cinco vozes. Todas são vozes das cidades de Porto, Lisboa e até Amsterdão, mas a habitar uma ruralidade artesã vocal. O espaço de criação para um saber fazer. Mariana trouxe a lã até às vozes e estas encantaram-na. A lã cantada, entre rimas e no ritmo das batidas, quer pela cadência dos instrumentos que lhe são próprios, as cardas, o fuso, o tear, quer nos requeridos adufes. Esta apresentação é um ensaio partilhado, um espreitar consentido para dentro da criação. Dia 15 de Março apresentam-se em acção performativa vocal num “a reaver o fio à meada” no Fisga, no Porto.

A CURA, nesta persistente chuvosa tarde, assume-se como lugar de abrigo, para ver e ouvir de perto, entre o conforto lanudo, estas vozes. Vera Morais que se assoma aqui à dimensão vocal da tradição, das polifonias populares. (Ou)vimo-la em revelações bem recentes de música contemporânea, quer no Ensemble Mutante #1, ou na composição do trio vocal que acompanha a música de Mané Fernandes, quer ainda em duo com Hristo Goleminov. Em todas as facetas é a sua voz somente a revelar-se como instrumento multifacetado, caleidoscópica, portadora de várias vozes numa só. Morais quer, neste presente, vocalizar um passado para melhor definir um futuro vocal, quer enquanto instrumentista, quer como compositora para ensembles de voz. É disso exemplo em EUPNEA com “mirror error“, música para trio de vozes e duas flautas — juntou à sua voz as de Līva Dumpe e Sarah van Eijk e as flautas de Teresa Costa e Ketija Ringa-Karahona. Teresa é também voz e flautas em LIÇO, ligando de igual forma um passado e um futuro neste presente vocal criativo. LIÇO conta com Beatriz Lerer Castelo, na voz e ocarina, ela que é flautista nos EPs Cheguei Tarde a Ontem e em Se Dançar é Só Depois, de Ana Lua Caiano, e ainda a revelar-se como videógrafa nos grupos femininos B’rbicacho e EUPNEA. Diana Gil é designer gráfica, implicada nesse ofício no livro-disco D’Aqui – A Canção Portuguesa Sem Palavras, na valorização da música de tradição oral.

Chamemos-lhe dramaturgia vocal ao que fazem, de como o apresentam, por ser mais concreto que a dita performance que anunciam a meio da escadaria a toque de flauta pastoril, convidando a subir os degraus que levam ao sótão da CURA. Lá fora a chuva fustiga e faz correr com mais água o rio Ceira por baixo da ponte secular resvés à Casa Cortez onde tudo tem lugar. O ofício da lã cantado custa menos a levar, é mais um belo exemplo da música de trabalho na leveza do espírito na função da prática. “Doba doba dobadoira / não me enguices a meada / que o novelo é pequeno / cabe numa mão fechada” começam por rimar, cantando, enquanto se ocupam duas delas duma meada, outra carda e outra a tecer. Há lã num estendal, em alguidares, entre mãos, pelo chão e há mesmo quem se junte para ouvir e se atreva a ir buscar à cena um fiapo e se ponha a fiar. É música para os nossos ouvidos e os delas, claro está, num sonho tornado real, como cantiga adiante se rima à meada num “tudo dormia / e eu acordada”. São modas de embalar, mas que cumprem a dupla missão, a de elevar a estados de alma superiores quem as escuta com a função de dar o embalo do ritmo do trabalhar a lã. As cardas a revelarem o som na medida do concreto, como música, a marcar o tempo, um pentear ajustado nas mãos da musicalidade de Vera Morais, para a imemorial oralidade em mirandês cantada na “Canção dos Cardadores”. Corpos de flautas e ocarina a vozear, de Teresa Costa e Beatriz Lerer, a levar a cantiga no tapete voador da imaginação. “Cardai, cardicas, cardai / La lhana pa los cobertores / Que las pulgas estã prenhadas / Bã a parir cardadores“, cantam como ouviram cantar desde quem recolheu e teimou em não deixar perder. Mas que tratam de a revelar nos nossos dias, que isto de contar um conto interessa mais por lhe ver acrescentar um ponto. Trazer música com nova música, como numa viva memória, tocada e dinâmica. Em contraponto ao que é literalmente intocável, que fica a despropósito como que em (con)tradição. E prosseguem num refrão em mantra “Tirioni, tioni, tioni / Tirioni, tioni, tiono”, que lhe sucede um esclarecedor sentido jogral com “No lhugar de Dúes Eigreijas / Hay uã piedra burmeilha / Onde se sentã los moços / A peinare la guedeilha“. Soltam a sua bravura criativa na evocação de sons pastoris de chamamentos vocais das reses, a linguagem sonora da fala dos animais em voz humana, trejeitos e vocalizações que conduzem, chamam e avisam o gado lanar, já que estamos entre lãs. Vestem-lhe a pele, literalmente, transmudando a pastora, com lã de ovelha pelas costas, no próprio animal. Esta lã veio do lugar, criada nos pastos do Ceira, ali bem perto. Neste canto a vozes de mulheres faz surgir “Arrula, Arrula” em uníssono de cinco vozes que serviu de propósito à recolha 4034 para o arquivo da Música Portuguesa a Gostar Dela Própria, às mãos de Tiago Pereira (imagem) e Cristina Enes Garcia (som). Este canto cantado em cramol, como polifonia vocal, é um canto funcional nas vessadas — passagens do arado para a sementeira do centeio. Assumindo-se este canto de trabalho, com um dos exemplos mais significativos para Michel Giacometti, que haveria de referir como de “… uma força dinâmica susceptível de provocar uma tensão em que o espírito pode atingir quase a catarse.”

Prometem nas próximas apresentações trazer mais repertório — estão a crescer, em residência. Contudo, dadas a conhecer já fizeram faúlha cintilante no coro de vozes femininas onde constam nome como o de umas, entre outras: Cramol, Sopa de Pedra (que Rui Eduardo Paes nos deu conta do disco editado pela Lovers & Lollypops), dumas Fio à Meada, ou ainda das Cantadeiras do Campo do Gerês com Lavoisier de que recenseámos o registo aqui mesmo. O canto polifónico feminino entre nós permanece como um legado são, a viver e a reinventar-se na função dos dias de hoje. Vida longa para LIÇO.


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