LP / Digital

Sopa de Pedra

Do Claro Ao Breu

Lovers & Lollypops / 2022

Texto de Rui Eduardo Paes

Publicado a: 07/12/2022

pub

O coro de mulheres Sopa de Pedra não quis propriamente gravar um disco com desempenhos vocais que tivessem premissas exploratórias ou experimentais. Dificilmente poderia assim ser, pois este Do Claro Ao Breu tem como fundamento a tradição, inclusive aquela que está a perder-se e que se perderá mais ainda quando nos deixarem as velhinhas que nas aldeias ainda a fazem soar.

É como se estivessem contrapostas, sempre, a claridade do dia e o negrume da noite, como modos de percepção. Para além disso, há muito no disco que nos surpreende e que distingue o projecto de outros colectivos com igual missão.

São vários os exemplos. Um é a composição por contrastes, dividindo o grupo em duas linhas harmónicas e melódicas independentes, mas que funcionam impecavelmente em conjunto. Outro é o que se canta, adaptações de três poemas de Eugénio de Andrade, “Verão Sobre o Corpo”, “Vento” e “A Uma Fonte”, na primeira faixa, “Claro – I Verão, II Corpo, III Fonte”, mais uma letra original de Daniela Duarte, nas quatro partes de “Breu”. Outro é processual, como a introdução um field recording (trovoada) em “Breu – II Trovão”, imitações de animais em “Breu – IV Bichos”, ou registos invertidos das vozes em “Breu – VI Queimada”.

É a escuridão que está mais representada, ocupando quatro peças de um álbum que reúne cinco, se bem que com contrastes, numa referenciação a antiquíssimas superstições e lendas, muitas delas certamente que remontando à implantação do cristianismo em Portugal, em forma de rezas, ensalmos e benzeduras, com muito de paganismo em tais manifestações. 

O cerne do que aqui está foi criado para um vídeo-dança de José Artur Campos, “Meia de Leite”, mas depressa Benedita Vasquez, Inês Campos, Inês Loubet, Inês Rosa Melo, Maria Vasquez, Mariana Gil, Rita Campos Costa, Rita Sá, Sara Yasmine e Teresa Campos quiseram aprofundar a fórmula, pesquisando a memória do que sobreviveu de um universo marcadamente feminino e necessariamente rural, com temáticas como as estações, os ciclos e a ligação à terra, tendo em conta os tempos de cultivo e colheita. 

Nada há neste esforço de etnomusicológico. O que o coro Sopa de Pedra pretendeu foi salvar as raízes da música portuguesa em campo novo, recuperando o passado em algo de que necessitamos mais do que nunca nesta feia contemporaneidade: reconciliarmo-nos com a natureza e, por arrasto, com a nossa identidade. Em suma, este é um LP (saiu em vinil, sim) incontornável. O breu que nos é dado ouvir não reforça a nossa depressão profunda como povo e como seres humanos. Redime-nos, e só isso bastaria para uma validação per se. Mas há mais, muito mais, que nos obriga a escutar com atenção esta obra.


pub

Últimos da categoria: Críticas

RBTV

Últimos artigos