LP / Digital

Polifonias Singulares Vol. I

Edição de autor / 2023

Texto de Ricardo Vicente Paredes

Publicado a: 28/11/2023

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“(…) estão muito longe do lugar-comum, são mesmo o contrário de lugar-comum, na sua invulgaridade, nas surpresas que oferecem (…) à nossa apetência de autenticidade”. Assim começa a mensagem, aqui transcrita a partir das palavras de Fernando Lopes Graça a propósito do cancioneiro minhoto na Antologia da Música Regional Portuguesa. Transcrição vertida no verso da capa interna, protectora do disco em vinil que reune as vozes das Cantadeiras do Campo do Gerês e as de Lavoisier.

Corria o ano vinte-vinte, no voltar a tudo o que até então esperava, quando o (re)começo teve lugar. A convite da Associação Cultural Rural Vivo, Patrícia Relvas e Roberto Afonso, duo de músicos que respondem por Lavoisier, sobem ao lugar das montanhas do Minho para uma residência no Campo do Gerês. A premissa foi a do ensino-aprendizagem na escola da oralidade, isso fê-los andar de braço dado com as Cantadeiras do lugar. São Cantadeiras porque cantam (e muito) e em maioria são vozes de mulher na arte: Ana Fonseca, Ana Pires, Carmelita Pires, Conceição Pires Ribeiro, Dores Carvalhal, Evelyne Mussons, Eduarda Silva, Joana Barroso e as vozes masculinas de Isaque Dias, João Barroso e Miguel Silva. Do primeiro encontro ficou-lhes a água-na-boca na necessidade de gravar, como referem nas notas que ajudam a contar o então vivido.

Gravar e editar, como dupla missão e urgência: para um perpetuar do efémero, para testemunhar a existência, um dar a conhecer. O que parece uma razão só, pode ser distinto na acção. E eis-nos aqui chegados, ao presente. Os micro-cosmos sonoros são diversos em tamanhos, que derivam no espaço ao ponto de nos cruzarmos com o que vem de longínquos lugares e tempos no nosso quotidiano com o que nos é dado a ouvir num qualquer registo. A urgência em gravar. Nesses mesmos encontros, tantas vezes gratificantes, ouvimos o distante, no tempo ou no espaço, com maior espanto e encanto que o que está próximo, do lado mais perto das nossas vidas. A sempre ingranta presença da ânsia de fuga (aparente) ao lugar-comum, pela redenção ao exotismo do longíquo. Servirá isto para o que serve, mas tem lugar, acontece. Há também os acasos dos dias, a fazerem das suas, anda tudo às voltas, os encontros no universo sonoro acontece porque sim. Conhecem-se mais os “Mistérios das Vozes Búlgaras” porque Watts-Russel (editor da 4AD) difundiu o quão pode com as duas colectâneas que editou para o mundo depois de ter ficado encantado ao ouvi-las. A urgência de editar. E tantos mais exemplos se seguem na missão de contariar o esqueciemento e dar a conhecer. E eis-nos chegados ao exostismo do lado de cá, anos sessenta, século passado, aos priemiros registos de um tal Giacometti (não o helvético escultor do cão esguio), que chegou da Córsega a Portugal para ficar a ouvir e gravar até ao fim. Alguém vindo de fora do lugar, este, fundamental para ajudar a revelar o que o lugar contém e a erosão dos tempos teima em fazer perder. Recolhas e gravações, edição e partilha: Antologia da Música Regional Portuguesa (AMRP), cinco volumes de música em vinil em capas forradas a serapilheira, como sacos de batatas, produtos da terra. São quase inalcançáveis, mas existem para ensinar a não esquecer, para se voltar ao exotismo aqui entre nós, sempre que a vontade mandar mais. 

A capa do volume das Polifonias Singulares, das Cantadeiras e dos Lavoisier, segue-lhe o propósito de missão, sem peias nem enganos. A capa do disco rende homenagem ao volume “Minho”, no decalque do grafismo, sóbria e contemporânea colagem estética, até no detalhe do pequeno dístico (agora inserido do lado direito) e a negro, pois o vermelho fica para as edições de Lopes Graça e Giacometti, que lhes acentua mais a chama autoral.

Lado A: 4 polifonias à capela com “Segadinhas”, “São João da Ponte”, “Moda das Malhadas” e “Fui Escrever”. Lado B: as “mesmas” 4 modas, mas agora na razão “química lavoisiana”, sem nada perder e em tudo transformando. Trata-se pois, mais que um cantar com as Cantadeiras, de um cantar desde as Cantadeiras do Campo do Gerês, perpetuando o seu cantar, acrescentando, trazendo aos nossos dias essa ancestralidade do modo sem ocultar a convivência das partes neste generoso presente. Da mesma forma que se podem ouvir, em disco, sem impôr uma sucessão ao tempo, permitindo anacronismos, lado B e depois lado A. As modas são 4 mas as canções em modo apresentam-se em duplicado, registadas em cada um dos lados, dois lados do mesmo disco, duas faces da música Cantadeiras:Lavoisier. A urgência de gravar e editar. 

José Fortes, incontornável mestre na importância do saber fazer, esteve em Campo para as gravações e os Lavoisier na concepção e edição do registo. Ilídio Marques trouxe a imagem dos 3 em acção, em Campo, no granito, estrada fora, lá no alto do lugar, numa bela adição estética em fotografia de múltipla exposição. E nisto tão pouco se contou da música que o disco contém, ouça-se (por)tanto, no tanto que tem para não esquecer e a revelar.


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