Há uma semana, os Olivais, em Lisboa, foi o local de encontro com L-ALI para uma primeira audição de Raramente Satisfeito, e o vinil foi o formato escolhido para ouvirmos o EP que lista nomes como Holly Hood, Here’s Johnny, Mirai, Joah e Lunn nos créditos.
Depois de ter deitado achas na fogueira que é o rap português ao lado de VULTO e de ter integrado o elenco da Think Music, Hélder Sousa lança o seu primeiro projecto pela Superbad, continuando a afirmar alto e bom som que não há forma de fechá-lo numa caixa — na verdade, ele até já demonstrou ter uma capacidade muito particular de criar mais umas quantas de cada vez que solta a língua. O resultado dessa actividade neste momento é o reflexo daquilo para que o título aponta: flows e métricas de autor e instrumentais a gritarem “Linha da Azambuja” são o combustível para a escrita avançada de um dos nossos rappers mais experimentais (no sentido de quem está sempre à procura daquilo que ainda não foi feito). “10 no jogo/ Tipo Zizou/ Até convence quem pensa que já viu tudo”, garante-nos em “Ocupado”.
Depois desse primeiro encontro no quartel-general da Superbad (e o autor d’O Dread Que Matou Golias também por lá estava a orientar a sessão), trocámos algumas palavras com o artista de Alfama, um criativo inconformado que anda à procura de impregnar a palavra “simples” na sua expressão musical — o que não podem esperar é que ele não faça isso à sua maneira.
Só para situarmos este EP: quando é que percebeste que estas faixas iam formar um projecto? Durou mais ou menos quanto tempo a sua concepção?
Não tenho por hábito sentar-me e começar a trabalhar num projecto. De fazer músicas só para aquele projecto. Eu faço músicas e depois vejo onde é que elas encaixam, onde é que fazem mais sentido. E quando começo a formar ali um bolo… Imagina, três músicas fazem sentido juntas, eu começo a pensar no conceito daquilo e tento fazer as outras malhas à volta disso para arranjar a pedra basilar do projecto. Mas não te sei dizer ao certo, dado que o verso da “Cartuxa” foi feito mal entrei na Superbad e o “Plenitude” foi feito em 2019. Entretanto foram feitas muitas mais malhas, que ficaram pelo caminho.
Eu percebi que tinha um projecto depois de fazer a “Ciclo”, isto em Novembro ou Dezembro, se não me engano. Depois de fazer a “Ciclo” fechámos logo a “PersPicasso” ou a “O-“, não me lembro qual das duas foi. Foi aí que eu percebi que já tinha qualquer coisa, que a “Plenitude” ia encaixar ali. Depois foi fechar a “Ocupado” e perceber “ok, tenho aqui qualquer coisa”. Passei as malhas a limpo… Diria que percebi em Dezembro que tinha o projecto. Contando com a “Plenitude” e com a “Cartuxa”, este projecto demorou três anos. Mas não foram, lá está, como eu disse, três anos a fazer este projecto. Durante esses três anos fiz uma data de malhas. Umas acabaram aqui, outras acabaram no lixo, outras vão acabar noutros projectos.
Fala-me sobre o título, Raramente Satisfeito. De certeza que tem a ver com o teu espírito criativo, mas também serve para ditar o tom para o que vem a seguir a isto, de certa forma?
O título veio espelhar um bocado o processo destes sete anos a fazer música, de estar Raramente Satisfeito. Esse é, provavelmente, o motivo que me faz voltar sempre lá. Tanto a nível pessoal como artístico, o ser humano nunca é conformado, está sempre inconformado com as coisas. Provavelmente este projecto é um bocado uma “birra” sobre isso e roda um bocado à volta disso. Raramente Satisfeito também justifica o processo, porque para estas seis músicas estarem aqui surgiram vinte e tal — e algumas ficaram pelo caminho, desde músicas com o Lunn, músicas como Kidonov, etc. Muitas músicas ficaram pelo caminho para estas estarem aqui. Raramente Satisfeito foi o mote que eu encontrei e que fazia mais sentido para justificar este projecto e, sinceramente, para justificar esta carreira.
Contaste-me uma história que envolvia Natal, casa do Holly Hood e partir costelas. Como é que isso influenciou a gravação das vozes para o EP?
Basicamente, eu tinha o EP já todo idealizado. Duas delas já estavam com as vozes gravadas como deve ser, a “Plenitude” e o “Cartuxa”. As quatro que eu tinha com o Lunn… ainda só tínhamos as demos gravadas no meu telemóvel, gravações sem qualidade. Eu tinha de as passar a limpo. Entrou o Natal, fui jantar a casa do Holly e, casualmente, parti duas costelas. Fui obrigado a parar durante um mês, um mês e meio. Literalmente parado. Não me mexia. Tinha de estar quieto e não me podia levantar. Nessa altura, por acaso, ainda fui criando sem gravar coisas. Mas fui tocando. Como não podia sair da cama, agarrei-me ainda mais ao telemóvel a nível de produção, que é uma coisa que já tinha começado a fazer. Como não me podia levantar, agarrei-me mais ao telemóvel. Quando voltei ao estúdio, para aí em Janeiro, ainda com algumas dores, tentei gravar, passar as malhas a limpo, e não tinha resistência nenhuma. Não tinha “caixa”. Mandava uma rima e ficava sem ar, literalmente. Comecei a ficar com alguma paranóia, a pensar: “perdi a resistência toda. Não vou conseguir correr, não vou conseguir nadar, não vou conseguir rimar…” Nem falar. Eu cansava-me a falar e tinha… Não sei. Tinha umas respirações descompassadas. Foi um bocado estranho naquela altura. Demorei um tempinho e fui gravando assim que vi uma melhoria ou outra. Não tinha a mesma resistência mas já dava para mandar, pelo menos, três barras seguidas. Um gajo tentava. Até que fui melhorando e, lá para finais de Janeiro ou inícios de Fevereiro, comecei a ficar melhor. Ainda tinha dores, mas já conseguia trabalhar. Então fechei o EP assim. A resistência foi voltando gradualmente. Para situar: isto foi entre o Natal de 2019 e Fevereiro de 2020.
Falavas-me também de como começaste a olhar para a tua própria escrita de uma maneira diferente, de reflectires sobre o facto de sentires que andavas com a atitude de quem estava a inventar a roda e que não era por aí que querias continuar a ir. Qual é que foi o momento em que te apercebeste disso e de que maneira é que o aplicaste na escrita?
Eu quando digo que comecei a olhar para a minha escrita de maneira diferente… Eu tentei simplificá-la. Eu antes estava demasiado preocupado em criar uma cena que ainda não tinha sido feita. Única, super original, frita, whatever. Só que essa intenção de criar uma coisa que ainda não foi feita continua cá. Só comecei a olhar para a música de uma maneira diferente. A intenção também mudou. Eu agora não quero complicar tanto. Eu quero inventar algo de novo mas não tem de ser o pólo oposto do que se está a fazer. Pode conter coisas do que se passa mas é importante não estar contido nisso. Não sei se faz sentido. Ou seja, o que eu estou a fazer agora pode ter referências ou influências do que se anda a passar agora, mas não está contido aí. E eu antes não queria sequer ter referências nem estar contido. Se fosse preciso, eu até dizia que era a última bolacha do pacote porque eu é que sabia fazer isto e pronto. Agora as coisas não são bem assim. Consigo olhar para as coisas de maneira diferente. Consigo olhar para a música e perceber que música é música. Se a tua intenção for complicar, tudo bem. Mas se a tua intenção for simplificar, não é pior do que um gajo que está a fazer equações do oitavo grau e chega a uma resposta que ninguém chega. São intenções diferentes: eu tento cruzar as duas e, de alguma maneira, criar um meio termo. Também no sentido em que não quero repetir trabalho e sei que por aqui ainda não fui.
És alguém que já teve oportunidade de trabalhar com diferentes colectivos que marcam o hip hop português moderno. Para ti, qual é a principal diferença do trabalho que tens feito com o Holly Hood e Here’s Johnny em relação aos outros?
Cada trabalho é um trabalho. Cada produtor tem a sua maneira de trabalhar e a nossa química funciona de maneira diferente. São todos diferentes. Desde o VULTO. e o Pesca ao Razat, Lunn, Here’s Johnny, Holly e benji… Cada um trabalha à sua maneira e os resultados são diferentes. Eu gosto disso. Se calhar sinto que quando tenho o Johnny e o Holly a trabalhar [ao meu lado] tenho de ir para aquela cena mais stanky, gangster, agressiva [risos]. São coisas que se calhar não vou explorar com o VULTO. porque sei que ele me quer dar outras coisas. Sei que se for para o Pesca posso puxar um grime ou um house, se for preciso, porque sei o que consigo ir buscar dali. Acho que é por isso que eu trabalho com várias pessoas. Não quero estar sempre a vestir a mesma camisola, lá está. Então tento procurar malhas diferentes, literalmente, e pessoas diferentes para obter resultados diferentes. Mas acabo sempre por voltar.
Eu quando gosto de um produtor acabo sempre trabalhar com ele mais do que uma vez, porque acredito no espírito de banda, na cena de estar sempre a batalhar até encontrar qualquer coisa. Isso é fixe. Mas a principal diferença entre trabalhar com o Here’s Johnny e com o Holly Hood é essa. Não que seja limitada à cena agressiva/stanky, mas quando trabalho com eles é por aí que eu quero ir, porque sei que é isso que também quero puxar dali. Já para não falar da mistura e masterização que o Johnny dá às coias. O que aquele kit de unhas faz a qualquer música… Independentemente dele ter ou não produzido o beat, ele traz sempre qualquer coisa à música.
Já agora, falando especificamente sobre o instrumental do “Cartuxa”: como é que acabaste a rimar num beat que estava originalmente pensado para o Sangue Ruim?
Eu entrei para a Superbad e surgiu a oportunidade de entrar no Sangue Ruim, a segunda parte do álbum do Holly. Eu pus lá o verso no meu segundo mês de Superbad. Foi a verdadeira captação, como se eu fosse aos treinos do Benfica dar os primeiros toques no estúdio. A cena surgiu, fiz o verso, o gajo curtiu, a malha ficou lá a marinar… Passado um ano, ele disse que se calhar a malha não se justificava no álbum dele, que já tinha o feat. na cabeça, que entretanto já está cá fora, o “Some“. Eu disse “pá, se calhar vou aproveitar este beat, porque este beat está do caraças. O Johnny e tu esticaram-se nisto. Vou pôr um refrão aqui e vou usar”. E ele, “claro que sim”. Não há grande história por trás disso. É um feat. que eu espero que ainda aconteça. Era para acontecer neste beat, mas se não aconteceu neste beat será noutro qualquer. Acabei eu por aproveitar esse grande “jardel” que eles os dois produziram.
É o teu primeiro registo editado em vinil. É um sonho concretizado, certo?
Ya. Sempre tive isso na cabeça. Era um dos objectivos. Quando fiz este projecto não pensei logo em fazer um vinil do mesmo. Mas quando surgiu essa ideia achei que fazia sentido. Acho que o vinil faz parte desta cultura e de muitas outras. Especificamente no hip hop, o vinil é muito importante para uma das vertentes, o DJing, o scratch… Achei que era giro fazer parte disso e ter o meu bebé em vinil.
E como é que o Maior Major acabou a fazer o artwork? Deste-lhe indicações específicas?
Sim. Mandei um esboço muito podre da minha ideia para a capa, do Raramente Satisfeito. O “Satis” estava riscado. Expliquei que a punch era essa e que queria isso escrito várias vezes. Ou que podia ser uma hipótese. Ter isso escrito várias vezes, tipo tentativa/erro. Pedi-lhe para ele dar o toque dele. Ele mandou-me e à segunda tentativa eu disse, “mano, é isto”. A segunda já estava no ponto.
Tens créditos de produção em três faixas. De que forma é que começar a produzir começou a informar a tua escrita? Sentiste isso de alguma forma?
Não sei se foi a produção que me fez ver isso. Foi o facto de ter continuado a ouvir música e ter clicado para aí há três/quatro anos. A cena do “não, man, isto faz sentido é com momentos. Pensa em cada momento da música com esse momento da música”. E isso sim acho que teve alguma influência na minha escrita. Foi o que pesou mais em termos de tentar dar uns 180° na maneira como fazia. Continuas a perceber que sou eu a fazer as coisas, a pegada ainda está lá, mas antes era só entornar informação. Agora tens partes em que isso acontece, outras em que levas com uma coisa mais calma, mais melódica também, com mais espaço. Isso acho que é a principal diferença entre as coisas que eu estou a fazer agora, ou de há três anos para cá, e as primeiras coisas que eu fazia. Eu sempre tive na cabeça que não queria repetir trabalho e isso nota-se nos meus projectos. Mas acho que foi na LISTA DE REPRODUÇÃO que tive o clique de tentar trazer mais dinâmica à música e explorar mais, tentar mais coisas.
Em 2021 faz sete anos que saiu o Surrealismo XPTO, o que, entre outras coisas, significa que já não andas cá há dois dias. Eu tenho a percepção que existe uma geração de ouvintes e criadores que olha para ti como um dos rappers com a escrita mais avançada a aparecer na última década, mas não sei, na verdade, se alguma vez recebeste um props público de algum gatekeeper do hip hop tuga. Alguma vez recebeste um elogio de alguém de quem não estivesses mesmo à espera?
Ao longo destes anos já me cruzei com algumas pessoas. A única coisa que eu me lembro — e vai ser um bocado suspeito puxar assim a brasa à minha sardinha — foi quando o “Cobras e Ratazanas” saiu. Lembro-me de ter dado um grande props ao Holly. “Obrigado por isto. Voltaste mesmo em grande. Mesmo à pai. É isso mesmo”. E o gajo responde-me, “mano, eu já senti as tuas cenas. Já ouvi o ‘Chipa-me o Encéfalo’, O Conto e o caraças… Curti bué dessa malha”. E eu fiquei mesmo, “o quê, man? Este gajo ouve as minhas malhas?” Foi a primeira vez que, de alguma maneira, alguém para quem eu olhava para cima — de Show No Love, de Kara Davis… — me deu esse aval. Do tipo “I see you“. Isso foi fixe.
Sempre tive a impressão que eras alguém que andava a ouvir as coisas mais frescas — e vou-te confessar que foi através de ti que descobri o “Lágrimas na Cara” do Rafaell Dior. O que é que anda aí a rodar em loop nos teus ouvidos?
É um bocado genérico aquilo que eu vou dizer, mas ouço um bocado de tudo. Desde Oliver Malcolm, Kamaal Williams, Clairmont The Second, Standing On The Corner, Mansur Brown, Django Reinhardt… Não sei. É tanta coisa. Consumo mesmo “alguma” música diariamente. Falando em Portugal, Rafaell Dior, João Não, Lucy Val, o meu menino xtinto. O EU.CLIDES, o Tóy Tóy T-Rex também se tem esticado, Pedro e o Lodo, zé menos, Kaps, COLÓNIA CALÚNIA, Herlander.