Lembro-me perfeitamente da primeira vez que ouvi Kendrick Lamar. Eram tempos diferentes; estava suficientemente online para ir estando a par das novidades, mas os serviços de streaming ainda não eram parte integrante da minha vida para que pudesse ouvir muitos dos novos nomes e novos projectos que iam saindo. E a verdade é que o início da década passada foi bastante fértil no aparecimento de novas estrelas. Foi por esta altura que começaram a ganhar força artistas como J. Cole, Drake, Mac Miller e A$AP Rocky entre outros que, tendo lançado trabalhos marcantes na época, não conseguiram atingir o mesmo patamar em termos de números e reconhecimento daquele que era o nome que mais se destacava: Kendrick Lamar. As opiniões sobre aquele que era na altura o seu mais recente álbum, good kid, m.A.A.d city, eram unânimes, estabelecendo-o como um verdadeiro digno do título de clássico, e havia um buzz genuíno à sua volta.
Num qualquer dia do verão de 2013, cedi ao hype. Arranjei o álbum e liguei a um amigo, porque ouvir música é sempre melhor acompanhado. Abastecemo-nos do que comer e do que beber, fomos para um spot bem perto da minha casa que nos dava a Amadora como vista e, cheios de expectativa, carregámos no play. Durante os 68 minutos que se seguiram ouvimos um álbum que iria marcar a reta final da nossa adolescência e servir como pano de fundo para muitas memórias e histórias vividas em conjunto. Naquele momento, ainda não o sabíamos. Por isso, a única questão que ia na cabeça de ambos, ali mais ou menos pela altura em que acabámos de ouvir a “Money Trees”, era: “Mas quem é este mano?”
Kendrick Lamar Duckworth — nome dado em homenagem ao cantor Eddie Kendricks — nasceu no dia 17 de junho de 1987, em Compton, na Califórnia. Os seus pais, nativos de Chicago, abandonaram a Windy City em 1984 para que se pudessem afastar da violência do Southside e constituir família. A vida em Los Angeles, porém, não era muito diferente; os anos 90, os da infância de Kendrick, foram violentos para cidade que viveu, por exemplo, os L.A. Riots em 1992 e onde a violência entre gangues era uma constante. Neste meio, cresceu o jovem rapper. Descrito como uma criança calma, observadora e madura para a idade, sempre foi bom aluno e uma gaguez notória fê-lo ganhar interesse pela escrita (mais do que pela oralidade).
Na adolescência, o rap começou a tornar-se um caminho mais óbvio e fez com que os sonhos de enveredar pelo ensino superior ficassem na prateleira. Entre psicologia ou astronomia, as rimas acabaram por ser as escolhidas. Nelas, K.Dot relatava a realidade da sua cidade, mas faltava-lhe, ainda, alguma originalidade. As suas influências — principalmente a de Lil Wayne — eram muito visíveis no início do seu percurso, tendo até chegado a lançar uma mixtape (a C4) em homenagem ao álbum Tha Carter III. Por esta altura, terá sentido que o sucesso só chegaria se a sua música e mensagem fossem genuínas e, nesse sentido, tomou a decisão de deixar para trás o nome K.Dot e passou a assinar em nome próprio, como Kendrick Lamar, lançando um EP homónimo em 2009, dando-se a conhecer, agora de uma forma mais pura, ao público em geral pelo seu verdadeiro nome.
Seguiram-se aqueles que são dois dos projetos mais importantes da sua carreira — a mixtape Overly Dedicated e o álbum Section.80, este último a sua estreia no formato. Apesar de não terem atingido os números dos seus próximos discos nem terem furado barreiras no mainstream, foram trabalhos que firmaram a sua identidade e, acima de tudo, lhe abriram portas. Foi por esta altura, enquanto acompanhava o colega e amigo Jay Rock em digressão, que a mixtape Overly Dedicated chegou aos ouvidos do lendário Dr. Dre que, impressionado, lhe estendeu um convite para participar nas sessões do infame Detox e o assinou pela a sua Aftermath Entertainment. Seria já com o selo desta editora que o mundo conheceria o seu primeiro LP comercial, good kid, m.A.A.d city, lançado em outubro de 2012. Editado um ano antes, Section.80 seria o seu último trabalho sem uma major e serviria, também, como confirmação do seu talento, identidade e da sua voz. No disco, temos um Kendrick polido, com songwriting e barras de qualidade, deixando já indicações do fenómeno que estava para vir.
good kid m.A.A.d city é um clássico mais do que certificado e talvez o melhor álbum da década passada. Um disco conceptual, com uma produção que agarra em elementos distintivos da sonoridade da West Coast e os moderniza, com faixas orelhudas que fizeram as suas rondas pelas rádios enquanto mantêm uma mensagem e um propósito, participações icónicas de lendas como o MC Eiht ou Pharrell Williams, o verso do Jay Rock em “Money Trees”… De uma ponta a outra, conta-nos uma história, dá-nos personagens e, acima de tudo, transporta-nos para um dia que talvez tenha sido um dia normal para um Kendrick adolescente a crescer em Compton. O público aderiu, o trabalho foi um sucesso e Kendrick Lamar era o nova coqueluche do panorama rap mundial.
O momento continuaria com o seu verso em “Control”, faixa que acabou por ficar fora do álbum Hall of Fame, que Big Sean rubricou em 2013. Nela, Kendrick Lamar mostra que veio para competir e ser melhor que todos os seus pares, num momento que ainda é discutido uma década depois e que deu um verdadeiro abanão à cultura hip hop na altura. Há quem teorize — de forma pouco descabida, diga-se — que este seria o ground zero para o seu beef com o Drake. O seu verso na cypher do BET, outro dos momentos altos do ano de 2013, deixa mais alguns indícios disso mesmo.
O entusiasmo para o seu próximo projeto era enorme e não seria fácil corresponder às expectativas. Lembro-me dos burburinhos e teorias sobre o álbum que se seguiria. Em 2015, chegou finalmente e penso ser justo na suposição de que ninguém poderia prever a música que se iria eternizar em To Pimp a Butterfly. Depois de nos dar um disco sobre a sua cidade de Compton, Kendrick Lamar foi mais fundo e trouxe-nos uma obra em que nos fala sobre a sua herança: África e a comunidade afro-americana. Se GKMC nos deu a sua voz e a sua verdade, TPAB era, pelo menos a nível sonoro, muito mais sobre uma experiência coletiva e tornou-se a voz de muito mais gente. “Alright” acabou por se tornar o maior sucesso de mais um LP aclamado pela crítica pela forma como fundiu jazz, soul, funk e, claro, hip hop, com mensagens fortes e reflexões importantes sobre a experiência de vida das peles negras nos Estados Unidos da América. A perspetiva trazida por este álbum é melhor descrita citando o próprio Kendrick numa faixa de outro álbum, a “Ab-Soul’s Outro” do Section.80: “I’m not on the outside looking in, I’m not on the inside looking out, I’m in the dead fucking center, looking around.” Até o lançamento de um álbum com músicas incompletas e descartadas de TPAB — untitled unmastered. — foi bem recebido pelo público.
Seguiu-se o lançamento de DAMN., dois anos depois, um disco que lhe trouxe hits, números e traduziu a sua música para sucessos nas tabelas de vendas da Billboard. Por esta altura, Kendrick Lamar parecia intocável. Quatro registos de longa-duração lançados, todos aclamados pela crítica e pelo público, sucesso comercial, digressões com salas esgotadas e, mesmo com tanto sucesso mainstream, este mantinha a imagem de um “rapper dos rappers”, uma voz importante na cultura hip hop e na sociedade em geral — quase uma espécie de salvador. E depois… o silêncio. Os Estados Unidos da América viviam o primeiro governo de Donald Trump, o mundo atravessou uma pandemia com consequências económicas e sociais devastadoras e casos como o de George Floyd mostravam que a brutalidade da ação policial ainda era um tema demasiado recorrente na sociedade americana. O povo saiu à rua e manifestou-se utilizando algumas das suas músicas como hino, mas não havia sinal de Kendrick Lamar. Algumas vozes, como a da rapper Noname, começaram a questionar o estatuto quase messiânico que lhe era atribuído. Os ouvintes ansiavam por música nova. Pairava no ar a sensação de que o mundo estava a mover-se e, talvez, Kendrick não o estivesse a fazer junto.
Foram precisos cinco anos para voltarmos a ter mais música — ou mais Kendrick no geral, aliás. Mr. Morale & The Big Steppers é um dos álbuns mais divisivos da carreira do rapper. Por um lado, é um dos discos mais maduros e vulneráveis do seu catálogo, centrado à volta de uma sessão de terapia, em que o rapper deixa expostos traumas e falhanços na tentativa de encontrar o caminho para se aceitar a si próprio — é uma viagem pelo âmago de Kendrick Lamar (o homem) e o seu reflexo artístico. Por outro lado, a densidade do LP é muitas vezes apontada como um fator que lhe retira facilidade de audição. Algumas escolhas de participações, como Kodak Black, também são visadas pelos mais críticos do projeto, dado o historial de violência contra as mulheres que Kodak apresenta. Divisivo ou não, é um disco importante pela perspetiva que nos traz sobre a alma por detrás da música, abrindo, ainda que de esguelha, a porta para o interior da casa e da mente de Kendrick Lamar, alguém que estava no topo do mundo e da carreira, mas que procura ainda definir o que isso significa.
Por muito que este artigo pareça quase biográfico, é importante para que possamos perceber que existia um Kendrick Lamar antes do beef com o Drake. Não podemos negar a importância e magnitude do momento, mas o pretendido não é mais um texto a destacar a batalha. Pelo contrário, aqui pretende-se que fique clara a felicidade de Portugal (finalmente) ser paragem de uma digressão em nome próprio de um dos maiores nomes da história do rap mundial. E isto continuaria a ser verdade mesmo sem a existência da um tal single intitulado “Not Like Us”. Como fã assumido desde o primeiro parágrafo, vejo o GNX e toda esta digressão como uma celebração de uma carreira quase imaculada a nível artístico e a oportunidade de ver um dos grandes visionários da nossa cultura a atuar ao vivo.
Na primeira vez que o ouvi, fi-lo sem saber quem ele era. De lá para cá, consumi entrevistas, artigos, e todos os conteúdos possíveis onde o seu nome figurasse, mas nunca nada me revelou tanto sobre o Kendrick como a sua música. Sinto que a Grand National Tour é um momento importante para qualquer fã, os de longa data e os mais recentes. Para os que chegaram há menos tempo, será uma oportunidade de descobrirem hits mais antigos e contactarem com um dos catálogos mais imaculados do mundo do rap. Para mim, pessoalmente, é uma chance de ver o concretizar da sua visão. É o primeiro álbum e a primeira tour verdadeiramente em nome próprio — sem Aftermarh, Interscope ou TDE. Só a visão do artista e do seu braço direito, Dave Free. Vi a “Money Trees” — provavelmente a música da minha vida — ser tocada pela primeira vez (pelo YouTube) ao vivo numa Best Buy com o Jay Rock a fazer de hypeman. Já a pude ouvir in loco duas vezes desde então em dois festivais diferentes, ambos esgotados e sempre rodeados de amigos. Agora vou poder ouvi-lá num estádio. Não tenhamos a ingenuidade de não perceber que existe uma grande máquina por detrás do artista, que o promove e o ajudou a chegar até aqui; mas percebamos que isso não é incompatível com uma subida meritória até ao estrelato, desde um miúdo gago a descobrir poesia numa escola primária em Compton, passando por um adulto a tentar singrar, a dormir em sofás e a dar as backs ao amigo Jay Rock em concertos minúsculos até à estrela consagrada que é hoje. É isso que vamos celebrar já este domingo, 27 de Julho. Vemo-nos no Estádio do Restelo.