LP / CD / Cassete / Digital

Kendrick Lamar

GNX

pgLang / 2024

Texto de Gonçalo Oliveira

Publicado a: 30/12/2024

pub

É, muito provavelmente, um caso único na indústria musical. Kendrick Lamar tornou-se numa das figuras do ano — se não mesmo “a figura” do ano — após ter feito das plataformas de streaming um autêntico campo de batalha, soltando várias diss tracks com a mira colocada sobre a cabeça de Drake. Independentemente dos conteúdos líricos contidos nas faixas avulsas assinadas pelo nativo de Compton nos primeiros meses do ano — foram ditas várias verdades, mas também se entrou muito nos campos da suposição —, é sabido que estas cumpriram a sua missão: entretiveram os fãs, sublinharam que o seu jogo de caneta é mais afiado do que o do colega, mostraram que é capaz de domar qualquer beat sem sair do contexto — do drumless de The Alchemist em “meet the grahams” ao trap digno de um Makaveli em “euphoria” — e fizeram a sua cotação subir em flecha em todos os sentidos possíveis. Ao dia de hoje, o número de ouvintes mensais de Kendrick no Spotify ultrapassam os de Drake por 5 milhões (um caso raro, se não único, ao longo da carreira de ambos). Mas há mais: o rapper californiano tem já o emblemático halftime show do Super Bowl LIX reservado em seu nome (será o primeiro MC de sempre a fazê-lo a solo) e já arrecadou uma série de prémios por parte da BET, estando agora na corrida para os próximos Grammys, onde compete em 7 categorias distintas. E não nos podemos esquecer que é desta troca de galhardetes que nasce “Not Like Us”, muito provavelmente o grande hino para a cultura hip hop em 2024 e um single que além de alem de abrir novas feridas ao seu oponente, serve também de grito de guerra que une toda a West Coast norte-americana e volta a catapultar o g-funk bem lá para o alto.

É certo que já outros o tinham tentado jogadas semelhantes contra o astro canadiano. Pusha T, por exemplo, fez cheque-mate ao revelar ao mundo que Drake andava a esconder o facto de ter um filho. Mas no tabuleiro de xadrez de K.Dot, as peças movem-se de maneira diferente: o objectivo não passa por terminar a partida num espaço de tempo o mais curto possível, mas sim por manter o seu adversário encurralado por um período indeterminado, levando-o ao desnorte e provocando jogadas erradas e, por vezes, até mesmo embaraçosas. O facto de Aubrey Graham ter respondido ao rival por tantas ocasiões só prova o prurido que este lhe estava a causar, e até teve de recorrer a Intaligência Artificial para trazer versos de 2Pac e Snoop Dogg ao seu “Taylor Made Freestyle”, um acto que soou a claro desespero. Mais recentemente, Drake até abriu um processo contra a Universal Music Group, acusando a editora de falsificar o alcance de “Not Like Us” para beneficiar Kendrick, em mais um claro sinal da “comichão” que a performance do colega lhe causou. Será, provavelmente, impossível que alguém consiga derrubar por completo um gigante da indústria como é o autor de canções como “One Dance” e “God’s Plan”, mas só o facto de o conseguir amedrontar a este ponto é, por si só, um claro sinal de vitória.

Posto isto, Kendrick Lamar não precisava de mais nada para provar que a sua onda foi uma das maiores que pudemos surfar ao longo de 2024. Ainda assim, quis coroar o seu trajecto deste ano com um álbum surpresa e o anúncio de uma grande digressão pelos Estados Unidos da América e Canadá, a Grand National Tour, onde divide o cartaz com uma outra super-estrela, a amiga e colaboradora frequente SZA. GNX é o sexto LP assinado pelo rapper de Compton e o primeiro que edita exclusivamente com o seu selo pgLang, depois de vários anos a trabalhar com o auxílio da Top Dawg Entertainment. O seu título é emprestado de um emblemático modelo da Buick Regal, um dos mais veloses automóveis feitos na sua altura, produzido em 1987, que, segundo K.Dot revelou numa entrevista à Complex em 2012, foi o carro com que o seu pai o trouxe da maternidade no dia em que nasceu. A mensagem não podia ser mais directa: GNX é o disco que traz o artista californiano às suas origens e a todo o gás, com a missão de voltar a elevar o característico som da West Coast, repleto de groove, sintetizadores e drums que parecem saídos de algumas das mais clássicas caixas de rítmos.

A abrir o longa-duração, “wacced out murals” é o tema que nos oferece a continuação directa da narrativa iniciada no início deste ano com a troca de versos com Drake. O título é uma referência a um mural em Compton pintado em sua homenagem que foi vandalizado na sequência do beef e coloca Kendrick ao microfone sem quaisquer filtros, abordando tudo aquilo que sentiu nos últimos meses, desde a congratulação que recebeu de Nas pelo placement no intervalo do Super Bowl — em contrapartida, Lil Wayne ficou chateado por não ter sido ele o escolhido — ao facto de Snoop Dogg ter partilhado o já por aqui mencionado “Taylor Made Freestyle”, uma “facada” que K.Dot tenta desvalorizar como sendo consequência do THC que circula no sistema do lendário MC de Long Beach. Acima de tudo, o artista procura relativizar as más energias (ou mesmo a falta de energia em geral) daqueles que considera serem os seus pares, ao mesmo tempo que aponta, logo no começo da faixa, que é essa falta de empatia e companheirismo que tem feito o seu povo emigrar para a Europa — a especulação imobiliária agradece, a classe média e baixa portuguesa nem tanto assim.

Logo a seguir, um dos maiores bops de todo o disco. “squabble up” já tinha metido muito boa gente a dar replay aos primeiros 20 segundos do videoclipe de “Not Like Us”, não fossem o baixo saltitante e a lírica afiada de Kendrick uma das mais belas demonstrações deste ano de hip hop pensado para os clubes. Para deleite dos que se deixaram viciar por essa pujante introdução, a música completa está contida em GNX e estende a dança para lá dos dois minutos de duração, bem como nos entrega mais uma série de rimas igualmente deliciosas àquelas que abrem o seu primeiro verso — “Woke up lookin’ for the broccoli / High-key, keep a horn on me, that Kamasi”. Como uma aula de body combat, o rapper funde o lado lúdico da boa música de dança com combinações de socos e pontapés, mostrando aos que o tentam importunar de que está demasiado ocupado a polir a sua coroa e que, se esticarem demasiado a corda, tem trunfos suficientes no seu arsenal para dar resposta.

“hey now”, “tv off”, “peekaboo” e “gnx” são mais quatro odes ao característico som do hip hop californiano e têm a particularidade de, em três deles, Kendrick receber alguns talentos emergentes locais — nestes casos Dody6, Lefty Gunplay, AzChike, Hitta J3, YoungThreat e Peysoh —, dando a ideia de que está atento àqueles que estão a fazer por criar as suas próprias waves, ao mesmo tempo que reforça a sua street cred e recusa a ideia de precisar de grandes features para aumentas as vendas do seu disco — muito ao contrário do que, por exemplo, Drake faz recorrentemente, usando o protagonismo de outros para seu próprio proveito, algo que levou o nativo de Compton a chamar-lhe de “colonizer” em “Not Like Us”. Em “tv off”, Kendrick consegue ainda um par de momentos que se tornaram virais por toda a Internet: primeiro quando grita o nome de Mustard, um dos principais arquitectos para a sonoridade de GNX, depois do beat switch da faixa — não se admirem se o DJ e produtor de Los Angeles fizer disto uma tag para os seus próximos beats, à semelhança do que, por cá, Madkutz fez com NGA —; depois o “Shit gets crazy, scary, spooky, hilarious” proferido por Lefty Gunplay, que certamente já terão escutado por aí a servir de banda sonora a algum reels ou TikTok.

No decorrer da tracklist, encontramos ainda alguns momentos de maior reflexão, como são os casos de “man at the garden” e “heart pt. 6”. No primeiro, o rapper fala-nos da estabilidade e tranquilidade que alcançou na sua vida pessoal, ao mesmo tempo que vai repetindo o mantra “I deserve it all” sobre uma batida calma e profunda que nos traz umas certas reminiscências de “Rich Spirit” do seu anterior Mr. Morale & The Big Steppers (2022). Já a segunda canção é mais uma entrada na sua confessional série The Heart e a primeira que decide incluir no alinhameto de um álbum de originais, fintando assim a jogada de Drake, que tinha “reservado” o título “The Heart Part 6” com uma das suas diss tracks. Em “heart pt. 6”, Kendrick abre o livro para nos falar da sua aventura no game ao lado dos camaradas Ab-Soul (presta-lhe mesmo uma vénia ao admitir “His words legendary, wishin’ I could rhyme like him”), Jay Rock e ScHoolboy Q, que juntos formaram o quarteto Black Hippy, e restante equipa que forma o esquadrão da Top Dawg Entertainment, a editora que alicerçou o seu sucesso na indústria. É um conjunto de versos recheados de pérolas para aqueles que querem conhecer mais a fundo a história do liricista de Compton, onde aborda os motivos do final do promissor super-grupo, conta como recebeu ajudas de todo o lado em início de carreira e relembra estratégias para lançar projectos que nunca chegaram a sair.

Sua habitual colaboradora e futura colega de estrada durante o segundo trimestre de 2025, SZA regista em GNX uma dupla participação, contribuindo com a sua voz para “luther” — um tema solar que nos fala de um mundo esperançoso em que as flores conseguem nascer até do cimento — e para “gloria”. Nesta segunda faixa, que é também a última e uma das mais bonitas do disco, Kendrick recupera um conceito imortalizado por Common em “I Used to Love H.E.R.”: os versos são-nos colocados de tal forma que parece que os dois artistas falam profundamente sobre um grande amor de carne e osso, até que a revelação final (“Ain’t no bitch like my bitch ‘cause that bitch been my pen”) nos obriga a voltar ao início da música para reenquadrar todas as frases, obtendo assim a história do romance que fez com que o MC e a sua caneta mudassem para sempre o hip hop.

Em suma, GNX é um LP que pensa local para ressoar a um nível global. K.Dot pega no legado das muitas lendas da cena West Coast — desde 2Pac, Snoop Dogg, Dr. Dre e Eazy-E — e transporta o bounce californiano para um cenário musical mais moderno, inspirando-se em nomes oriundos de uma nova escola — como o malogrado Drakeo The Ruler ou o próprio Mustard. Está recheado de traços g-funk, mas dá também uma perninha a outras zonas do espectro sonoro, do boom bap ao R&B. Contém bangers do mesmo calibre daqueles que encontrámos em DAMN. (2017), mas consegue também abraçar momentos de maior exploração e densidade como os que compõem o ADN de Mr. Morale & The Big Steppers. E entende-se que o seu autor tenha optado por não misturar as águas e deixado o viral “Not Like Us” de fora do alinhamento, mas experimentem criar uma playlist com o álbum e injectem-lhe a faixa entre “squabble up” e “luther”. Encaixa que nem uma luva e só reforça a experiência de desfrutar o renovado som do Oeste norte-americano em mais uma obra tecida à medida dos clássicos por parte de um dos maiores artistas que o hip hop viu nascer.


pub

Últimos da categoria: Críticas

ØKSE

ØKSE

Texto: Ricardo Vicente Paredes & Sofia Rajado

15.Abr.2025

RBTV

Últimos artigos