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Fotografia: Paulo Pinho
Publicado a: 28/07/2025

Um terramoto dos bons em Lisboa.

Kendrick Lamar e SZA no Estádio do Restelo: as almas gémeas também existem na música

Fotografia: Paulo Pinho
Publicado a: 28/07/2025

27 de Julho de 2025 ficará para sempre marcado na história das culturas hip hop e R&B em Portugal. Numa rara e ousada proposta de co-headline entre dois dos maiores artistas musicais à escala planetária, o Estádio do Restelo, em Lisboa, serviu de palco para uma das datas da enormíssima Grand National Tour, que está a levar Kendrick Lamar e SZA numa volta ao mundo com um espectáculo de contornos pouco convencionais, em que as duas estrelas dividem o protagonismo da forma mais harmoniosa possível, sem egos em confronto e com inúmeros momentos em que abraçam a arte um do outro.

Como infelizmente acontece tantas vezes no nosso país sempre que produções desta magnitude nos escolhem como destino, a confusão reina à entrada. Para quem, como nós, chegou com mais de meia hora de antecedência ao recinto, o mais certo é que tenha apanhado um susto quando, às 19h, a música se começou a fazer ouvir nos speakers. Felizmente, ainda era “apenas” o warm-up levado a cabo por DJ Mustard que escutávamos enquanto nos víamos imersos num mar de gente completamente estagnado por largos minutos, à espera de escoar para as diferentes entradas do recinto. Claramente que a organização não estava a conseguir dar vazão a todas aquelas pessoas e, para piorar, a falta de placas informativas relativamente às portas destinadas a cada bilhete fazia com que a maior parte dos visitantes se limitasse a seguir a massa adepta mais volumosa, para depois chegar ao final do seu custoso trajecto, concluir que estava a dirigir-se ao local errado e ver-se obrigado a reiniciar a marcha noutra direcção. O set de meia hora de Mustard arrancou e findou com pontualidade britânica, mas o espectáculo principal apenas arrancou às 20h, 30 minutos depois da hora marcada, como forma de dar mais tempo para que todos ocupassem os seus lugares no Estádio do Restelo. Ainda assim, há relatos de quem não conseguiu ver os primeiros minutos da performance de Kendrick e SZA.



[Sinergia perfeita]

Poucos artistas que se façam juntos à estrada se podem gabar de ter uma relação tão íntima, tanto dentro como fora da música. Quando SZA se juntou à Top Dawg Entertainment para editar Z, em 2014, já o rapper de Compton era visto como a nova big thing do hip hop, à boleia do seu grandioso good kid, m.A.A.d city, que em 2012 serviu de porta de entrada ao seu catálogo para o grosso dos ouvintes, que não tinham chegado a conseguir atestar todo o seu potencial em Overly Dedicated (2010) ou Section.80 (2011). A cantora foi, por isso, uma espécie de caçula de Kendrick, mas vista desde o início pelo mais velho com respeito. Logo em Z, os dois artistas colaboraram em “Babylon”, e depois disso foi raro o ano em que não nos brindaram com uma qualquer nova parceria.

Essa amizade e respeito mútuo foram notórios ao final do dia de ontem no Estádio do Restelo. O espectáculo da Grand National Tour está montado de modo a aproveitar essa sinergia entre ambos, com as transições entre os artistas a fluir com a maior das naturalidades. Kendrick arranca o show sozinho no palco, depois dá a vez a SZA e voltam a trocar por várias ocasiões ao longo de nove actos, havendo momentos em que estão ambos presentes em cena para nos entregar algumas das suas inúmeras colaborações. Há alturas em que passam a vez um ao outro à vista de toda a gente, outras em que a transição é feita de forma mais conceptual, seja com um vídeo introdutório, um trecho de uma música ou com a adaptação dos cenários, como aconteceu logo na passagem do primeiro para o segundo acto — Kendrick deu-nos as boas-vindas junto do emblemático modelo GNX da Buick Regal que dá título ao seu mais recente LP, que ao trocar para a vez de SZA ganhou uma certa vegetação, como se tivesse sido consumido pela natureza, indo mais ao encontro da estética visual da cantautora de St. Louis, Missouri.



[Dois catálogos ímpares num só espectáculo]

O alinhamento escolhido para esta Grand National Tour é um verdadeiro luxo que atravessa praticamente todas as fases da carreira de cada um dos seus intervenientes. Se há alturas em que damos por nós a cometer a loucura de pagar o bilhete para um espectáculo apenas influenciados por dois ou três singles de grande impacto, aqui todo o dinheiro é bem dado pelo peso do repertório em jogo.

Kendrick Lamar vai a todos os álbuns que editou desde que se tornou num nome mainstream para sacar malhas como “King Kuta”, Money Trees”, “Bitch, Don’t Kill My Vibe”, “DNA”, ou “tv off”, não deixando de lado singles como “euphoria” e “Not Like Us” nem algumas participações que amealhou em canções de Baby Keem (“family ties”) ou Future & Metro Boomin (“Like That”). Com um catálogo tão vasto e rico em qualidade, seria sempre dificílimo ter o público adormecido em alguma fase da performance. Antes pelo contrário: pareceu um climax contínuo, com praticamente toda a audiência a acompanhá-lo nas letras dos temas. Mesmo assim, houve um momento que se sobressaiu a todos os outros: “Not Like Us” foi cantado em uníssono por todos os presentes já na recta final do concerto, com direito a várias quebras no som de modo a conseguirmos ouvir o coro do público na sua totalidade a entoar os versos mais cruciais. Não terá sido o beef com Drake aquele que definiu a sua carreira, porque Lamar já era gigante antes disso, mas fica bem claro que, feitas as contas, foi realmente ele quem saiu a ganhar do sarilho que o próprio provocou. Haverá alguma diss track na história da música a causar tamanho impacto, ao ponto de se tornar num single que definiu por completo o ano (2024) em que saiu? Se existem xeque-mates na música, este foi claramente um deles.

De SZA, não tivemos menos do que aquilo que foi apresentado pelo seu colega. Contando com menos registos discográficos cá fora, é justo afirmar que o seu nome se cimentou com muito mais facilidade do que o de Lamar. Aliás, foi precisamente após a estrela californiana lançar “Not Like Us” que o seu hype voltou a conseguir ultrapassar o da autora de trabalhos como Ctrl (2017) e SOS (2022), pois houve ali uma data de anos pelo meio em que SZA estava a fabricar muitos mais números nos medidores do streaming comparativamente ao rapper. No repertório, apesar da consistência ao nível da vulnerabilidade da sua lírica, talvez apenas peque por se deixar aproximar demasiado de uma pop musicalmente mais comum. Mas feitas as contas, ninguém pode dizer que saiu mal servido com um cardápio que engloba canções como “Snooze”, “Kill Bill”, “Love Galore” ou “Broken Clocks”, como também as suas participações em “Rich Baby Daddy” (de Drake) e “Kiss Me More” (de Doja Cat).

Mas aquilo que torna esta Grand National Tour num evento tão único é o facto de que não só podemos escutar os temas a solo de cada artista, como também temos direito às icónicas parcerias que Kendrick e SZA tão bem têm esculpido: “Doves in the Wind”, “All The Stars”, “LOVE.”, “luther” e “gloria” foram os frutos dessa relação musical que pudemos colher ao vivo em Lisboa.

Em suma, esta é uma digressão que dá para todos os gostos. Basta apreciarem apenas de um dos artistas no cartaz para saírem do evento satisfeitos, tendo ainda direito a todo um outro cancioneiro de luxo por parte do outro nome a encabeçar o cartaz. Talvez seja por isso que vimos tantos casais a viver aquela experiência juntos, em que, normalmente, o homem vibrava com as malhas de Kendrick e a mulher cantava a plenos pulmões as letras de SZA. E para os que já admiram ambas as carreiras, este foi o bingo perfeito que dificilmente têm a possibilidade de voltar a repetir.



[Os olhos também comem]

Das reacções a quente que vamos lendo por aí, há quem se manifeste face a uma certa discrepância na apresentação de cada um dos artistas, dando uma espécie de “vitória de moral” a SZA pela sua estética e performance mais vibrantes. Não se deixem enganar. Aqui não há vencedores nem vencidos, e quem aponta o dedo ao estilo mais minimal adoptado por Kendrick certamente que não sabia para o que ia. Basta ver a forma como comunica visualmente o rapper para perceber isso e não é à toa que este seu registo lhe tem valido aplausos em peças videográficas tão minimais quanto conceptuais, muito feitas de coreografias e cenas visualemente catchy, como se se tratassem de um conjunto de fotografias em movimento. Kendrick foi igual a si mesmo nesta passagem por Lisboa, assumindo quase sempre a postura deadpan que o tem caracterizado e recorrendo a poucos elementos físicos em cima do palco — o já mencionado carro, umas escadas com cor de betão ou alguns bailarinos que transitavam entre movimentos robóticos e outros mais selvagens. Na pele assentava-lhe uma t-shirt com um estampado que parecia ser uma carta de rei de paus, umas jeans largas, um cinto com o simbolo do naipe de espadas cravado na fivela e ainda um enigmático colar de diamantes com um grande pendente em forma de X, que já tem levado as comunidades online a criar teorias quanto ao seu significado.

Por mais que ambas as obras se cruzem, o universo musical de SZA é completamente oposto ao de Lamar. Visualmente, a sua parte do espectáculo também segue uma rota distinta à do colega, muito mais rica em cores e adereços. A sua indumentária sofreu várias mutações ao logo do concerto, passando por um de um fato maillot com cores psicadélicas ou pelo cosplay de insectos (como um louva-a-deus ou uma borboleta), aludindo ao imaginário da reedição deluxe do seu mais recente projecto. A pisar o palco consigo, pudemos ver também muitos bailarinos, mas diferenciou-se de Kendrick ao recorrer a um cenário que fazia lembrar uma selva, com grandes rochedos vestidos de folhas verdes ou um veículo em forma de formiga que cavalgou durante alguns minutos.

Transversal a todos os momentos do show, foram-nos sendo mostrados breves trechos em vídeo do que parecia ser um encenado interrogatório a cada um dos artistas, com direito ainda a uma pequena película no final onde Kendrick e SZA se encontravam à conversa numa bomba de gasolina. Nas prestações individuais, as projecções de SZA eram obviamente mais exuberantes, invocando mais cores e todo aquele imaginário dos insectos associado a SOS Deluxe: LANA (2025). Do lado de Lamar, o minimalismo mantinha-se, usando muitas vezes imagens que eram mais simbólicas do que propriamente para entreter — um apanágio na carreira do californiano —, como membros de gangues tatuados ou vislumbres das ruas de Compton e Los Angeles.



[Final apoteótico]

Lembram-se quando, em 2016, Lisboa deixou Kendrick Lamar emocionado quando o som cessou e toda a gente cantou em seu nome? A versão 2.0 desse momento aconteceu na noite de ontem. Numa primeira fase, a meio da actuação, o MC dirigiu-se à frente do palco totalmente em silêncio para apreciar o quadro humano e teve como resposta uma enorme legião de fãs a entoar o seu nome. Depois de nos olhar nos olhos, acenou positivamente com a cabeça, como que a reconhecer que a coroa lhe assenta bem, e seguiu viagem pelo restante alinhamento com o ar “trancado” de sempre.

O comportamento do público, no entanto, teve réplicas ainda mais fortes na fase final. Depois da gigante “Not Like Us” ter metido toda a gente em sentido, o maior dos aplausos fez-se escutar no Estádio do Restelo, com o rapper a recuar para os bastidores, simulando a despedida para, depois, voltar juntamente com SZA para um merecido encore. Os dois começaram por cantar “luther” e, no final, trocaram algumas impressões um com o outro, aqui já com Kendrick fora da “personagem” e visivelmente feliz com mais um palco conquistado. O público devolveu aos artistas muitos cânticos com o nome de cada um à vez. Colocando de lado as individualidades e recuperando a imbatível melodia de “Seven Nation Army” dos The White Stripes, o maior dos coros que alguma vez escutámos projectava no ar um “esta merda é que é boa” várias vezes consecutivas. Com os dois artistas sem perceber a língua, o microfone foi passado a uma das pessoas na fila da frente que fez questão de lhes fazer a tradução. Entre sorrisos, Kendrick não resistiu: “Can you sing ‘this shit is good’ one more time?” E lá voltámos nós a presentear duas das maiores estrelas musicais da galáxia com um merecido agradecimento, enquanto os protagonistas dançavam ao som das nossas vozes. Antes de se retirarem definitivamente, interpretaram “gloria” e, enquanto cantavam em direcção ao GNX para seguir viagem, foram apanhando alguns objectos da plateia — dos vinis às t-shirts —, que devolveram com autógrafos. Foi, muito provavelmente, uma noite de dimensões nunca antes vistas na história da música ao vivo em Portugal.


 
 
 
 
 
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