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Publicado a: 02/06/2018

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[TEXTO] Rui Miguel Abreu

Quando os deuses com pés de barro como os humanos vêem a sua grandiosidade estilhaçada no altar dos media, muitas vezes condenando-se a si mesmos com gestos e ideias tornadas públicas, torna-se difícil apreciar o que os elevou em primeiro lugar: que feitos políticos, científicos, desportivos ou artísticos podem sobreviver quando a decência, a humanidade, a moral e a ética são dispensadas, ignoradas, colocadas de lado como se não fizessem falta a quem seguramente caminha uns centímetros acima do chão?

A História tem sido pródiga em relativismos: consagram-se conquistas menorizando as vítimas dessas conquistas, glorificam-se descobertas esquecendo quem foi atropelado nesses “avanços”, erguem-se monumentos aos vencedores das guerras ignorando as baixas de ambos os lados das barricadas. O “Tempo” parece ser o grande filtro permanentemente aplicado nesta “instagramização” da memória: “naquele tempo era assim”, “é preciso entender como eram aqueles tempos”. Mas a verdade é que nós já não estamos nesses tempos, vivemos neste e deveria ser com olhos deste tempo que todas as Histórias deveriam ser pensadas. Ou repensadas. Que Descobrimos nós, afinal de contas?

E como vamos agora lidar com as obras de quem provou ser não um deus, não uma qualquer entidade superior, mas um mero humano carregado de falhas, de imperfeições, tão capaz de abjectos gestos como qualquer vilão não disfarçado pelo manto da celebridade? Será necessário reescrever a História? Apagar filmes? Queimar discos e livros? Destruir pinturas, estilhaçar estátuas? Quais de nós seriam capazes, afinal de contas, de passar pelo buraco da agulha, de sobreviver incólumes até a um simples, mas honestamente inquisidor olhar no espelho?

Muitas destas perguntas assaltaram-me durante aqueles 23 minutos que demorei a ouvir, pela primeira vez, ye, o sucessor de The Life of Pablo. À luz do declarado e reiterado apoio a Trump, à luz das fotos com o “MAGA cap”, à luz das declarações sobre a escravatura no programa de Charlamagne Tha God, mas também à luz do colapso mental e emocional que o levou ao hospital e a um prolongado silêncio no Twitter, como se deverá afinal ouvir ye, o novo álbum de Kanye West? Não será o simples gesto de carregar no play na primeira faixa que surge no Spotify o equivalente de um pouco saudável voyeurismo?

Devo confessar que não tenho respostas para tantas perguntas, que não destruí The College Droput, Late Registration ou qualquer um dos restantes discos de que se faz a discografia de Yeezy e que fantasiei com aquele final de tarde em Wyoming, em Jackson Hole, imaginando-me naquele celeiro a olhar, certamente embasbacado, para Kanye, para Kim, para Chris Rock e para todas as outras pessoas levadas até ali em jactos privados para testemunharem, juntamente com o resto do mundo convidado a aquecer-se no falso calor daquela fogueira que crepitava em streaming, o estado presente do auto-proclamado génio de Kanye.

Primeiro a capa: uma foto de iPhone tirada pelo próprio Kanye na tarde do lançamento do disco, retratando as idílicas montanhas que emolduram o seu rancho, cobertas de uma neve eterna e recortadas pela luz do entardecer. Depois, em cima, não o título, mas uma primeira declaração: “I hate being / Bi-Polar / Its awesome”, espécie de haiku auto-depreciativo (e com erros…) que serve como primeira chapada antes da voz filtrada que marca o arranque de “I Thought About Killing You” nos puxar para dentro de ye.

Talvez por levantar tantas questões, muitas mais das que já por aqui foram enumeradas, ye parece mais longo do que os seus 23 minutos. DAYTONA, o álbum de Pusha-T que há dias inaugurou este pico de actividade da G.O.O.D. Music que deverá ainda trazer discos de Ye com Kid Cudi e de Nas – tudo produções do senhor West – também é bastante curto, quedando-se em pouco mais de 20 minutos, o que parece, uma vez mais, fruto de uma tentativa de reinventar a roda: em Yeezus, Kanye dispensou o clássico artwork, lançando o CD sem qualquer capa ou insert; em Pablo, o patrão da G.O.O.D. Music dispensou o próprio objecto e até o compromisso de apresentar uma obra fechada ao público, com o disco a ser notoriamente corrigido, aumentado e afinado ao longo de semanas, perante o atento olhar do mundo. E agora, contrariamente a quem pensava que a playlist poderia ser o novo álbum (como Drake enunciou em More Life), Kanye contrapõe a escala do tradicional EP como o gesto artístico de fôlego certo para estes rápidos tempos da idade do Twitter.

Depois há as palavras, a verdadeira chave de ye: em Pablo, no famoso interlúdio “I Love Kanye”, o rapper ironizava sobre a incapacidade do mundo de lidar com a sua figura e terminava a sua rápida missiva com a frase “And I love you like Kanye loves Kanye”. Esses dias parecem agora estar longe, quando o novo “álbum” abre com a confissão da contemplação do suicídio: “The most beautiful thoughts are always besides the darkest / Today I seriously thought about killing you / I contemplated, premeditated murder”. Kanye, claro, está ele mesmo a olhar-se ao espelho e a falar com a imagem aí reflectida.

As confissões prolongam-se com “Yikes”, segundo tema do alinhamento, em que Kanye admite “sometimes I scare myself” antes de concluir que a sua suposta bipolaridade é, afinal de contas, um superpoder: “ain’t no disability”! Em “All Mine” Kanye, marido de Kim Kardashian, lida com as tentações “mundanas”, refere que mesmo que tivesse a Naomi Campbell ao seu lado poderia ainda apetecer-lhe “uma Stormy Daniels”. “I love your titties ‘cause they prove / I can focus on two things at once” admite ele depois, sinal claro de que um dos seus demónios é ainda a maneira como lida com as mulheres, sobretudo agora que é pai de uma menina que, explica ele no tema que encerra ye, “Violent Crimes”, é uma fortíssima dose de karma: “now I see women as somethin’ to nurture”…

As mostras de humanidade, dos tais pés de barro, continuam em “Wouldn’t Leave” que soa como um agradecimento à sua mulher, que “não foi capaz de ir embora”, nem quando ele fez todos aqueles disparates: “I said “slavery a choice”, they said “How, ye?” / Just imagine if they caught me on a wild day” concluindo a canção com um sentido “for every down female that stuck with they dude / Through the best times, through the worst times / This for you”. Segue-se “No Mistakes”, tema em que parece juntar-se ao seu companheiro Pusha T nos ataques a Drake – “Too rich to fight you / Calm down you light skin”, mas que também serve para retratar os momentos difíceis que se seguiram ao colapso de 2016: “I got dirt on my name” e “I had debts on my books”, admite Kanye.

Finalmente temos a extraordinária “Ghost Town”, talvez o tema central de ye: “I’ve been trying to make you love me / But everything I try just takes you further from me”, explica Kanye através da voz de Kid Cudi. Como explica Alex Petridis nas páginas do Guardian, tudo neste tema parece estar à beira do colapso, a produção, a interpretação, a mistura… e essa é talvez a imagem definitiva de ye: este é um retrato de um homem à beira do abismo, a deitar contas à vida, a pensar no que fez de errado e no que o poderá salvar.

Ok, e musicalmente?

Se Kanye nos ensinou a todos algo ao longo dos seus oito álbuns é que a sua arte é inseparável da sua vida e portanto é importante perceber que no novo trabalho Ye está a lidar com questões complicadas que terão a vantagem de o humanizar, de nos obrigar a olhar com outros olhos para as fotos em que surge, louro, ao lado de Trump no lobby da Trump Tower. E a música que escolheu para isso é um reflexo de todos esses tumultos, de todas as sombras que o envolveram e parecem ainda envolver. Não há aqui um “single” óbvio, não há por aqui um “Ultralight Beam”, um “Famous”, um “Real Friends”. Diabos, não há sequer um “30 Hours” e reparem que está-se apenas a comparar ye com Pablo… Dois discos relativamente próximos no tempo, mas afastados galáxias em termos de luz, de humor, de sonoridade.

Produzido por Kanye com ajudas constantes de Mike Dean e pontuais de Che Pope, Francis and the Lights ou Benny Blanco, ye inclui participações de Jeremih, Ty Dolla Sign, Kid Cudi e Charlie Wilson, 070 Shake, Valee, PARTYNEXTDOOR e até John Legend. E tudo isso soa a uma espécie de demonstração de apoio ao homem, ao ser humano carregado de defeitos que não teme expor-se num disco de fragilidades evidentes que até por isso mesmo poderão revelar-se forças ocultas. Diz Kanye que a bipolaridade não é uma doença é um superpoder. Talvez seja. E esse poder manifesta-se na capacidade que Kanye tem de desenhar instrumentais que são desconcertantes, experimentais na forma como quebram regras – de musicalidade, de técnica, de equilíbrio sonoro até, como se os sons que por vezes parecem cair não se sabe bem de onde afectando o que já é um ténue equilíbrio fossem reflexos dos impulsos absurdos que às vezes garantem tweets daqueles que nos fazem questionar se os discos de Kanye devem mesmo permanecer na prateleira. E “Ghost Town” é o tema em que todas essas qualidades /defeitos se concentram: vozes desafinadas, processadas até ao limite, guitarras e órgãos em colisão, efeitos que parecem deslocados: a música parece mesmo ter sido tocada por pacientes de uma instituição psiquiátrica numa qualquer aula de terapia musical.

Porque ouvimos música, afinal? Ouvimos música para ocupar o tempo, para viajar, para adormecer, para dançar, para amar, para correr, para comer, para esquecer e para lembrar. Ouvimos música para nos acalmar ou para nos inquietar. Música para nos deixar em paz ou para nos preparar para a guerra. Ouvimos música, na verdade, para tudo e para nada. Ouvimos música para tentarmos perceber quem somos. Podemos também ouvir música para tentar perceber quem é que está do lado de lá, do outro lado do microfone. É que o microfone somos nós, o microfone é os nossos ouvidos. E quando canta ao microfone, o artista está, na verdade, a falar-nos aos ouvidos. Kanye quer que o escutemos, quer que o entendamos. Não é fácil. Mas também não é suposto, pois não?…

 


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