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Publicado a: 28/03/2017

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[TEXTO] Francisco Noronha

Com Views, o seu último álbum saído ainda no ano passado (!), Drake havia cristalizado, como então escrevemos, o seu som e a sua identidade, definitivo descolar do hip hop mais convencional (se é que alguma vez o artista de Toronto foi “convencional” em coisa alguma) e abraçar, mais do que o R&B e a pop há muito predominantes nos seus trabalhos, da música assumidamente de dança, directamente apontada à pista. Uma amálgama estilística hoje muito em voga mas de que, em bom rigor, ele é o grande artífice desde So Far Gone, lançado em 2009 pela O.V.O, editora por si criada e que, no entretanto, se vai tornando num império com mais e mais artistas (nunca banais, oiça-se Roy Woods, por exemplo) no seu filão. Aliás, Drake é, depois de Timbaland e dos The Neptunes, um dos grandes responsáveis pela circunstância de o hip hop se ter transformado em matéria definitivamente pop, música de massas comerciável (não necessariamente comercial), simultaneamente elevando, e muito, os padrões de qualidade da própria pop – pensar na pop que se fazia há uns 10 anos atrás e na de agora é raciocínio que permite extrair, felizmente, diferenças abismais. Tudo isto enquanto, no plano artístico, foi também abrindo uma auto-estrada para todo um novo modo de fazer rap: emocional, intimista, sensitivo, e onde o canto já não é nem adorno para preencher refrões, nem momento para as mulheres também participarem. Não, o canto (masculino) passa a ser protagonista tão ou mais importante do que o rap propriamente dito, momento em que o hip hop passa a gerar verdadeiras “canções”. Drake ficará sempre na história como um dos – senão “o” – grande impulsionador de todo um novo (e infindável) R&B produzido nos dias de hoje, no qual o “R” deixa de ser “rythm” para ser “rap” – Rap and Blues? Trap and Blues? Pode ser, talvez.

Não demorou muito, pois, para que artistas pop “tradicionais” (i.e., fora do espectro hip hop a que Drake originalmente pertence) passassem a incluir – quando não a centrar – nos seus processos de composição produtores e songwriters do universo hip-hop, assim se consumando aquele que é, até à data, o grande acontecimento-transformação da música do século XXI: a omnipresença do hip hop e seus derivados (sobretudo o trap e o grime, aqueles que, pelo menos hoje, estão mais na berra) em quase tudo o que se faz, desde Lady Gaga aos Arctic Monkeys, de Miley Cyrus ou Rihanna aos Tame Impala. Aliás, o facto de Drake recentemente se ter indignado pelo facto de “Hotline Bling” ter sido premiada nos Grammys na categoria de melhor canção rap e não na categoria pop é sintomático desta “hip-hopização” da pop actual (e mil vezes isto à “reggaetonização” de que a mesma padeceu há uns anos atrás) e, mais do que isso, da ambição descomplexada de artistas originalmente ligados ao hip hop em abraçarem públicos generalistas. A bem dizer, Drake, na sua determinação e, até, arrogância (e é sempre preciso um bocadinho dela quando se rompe com estereótipos ou convenções), foi fundamental na legitimação desse gesto artístico corajoso dentro de um género tradicionalmente purista e de nicho como o hip hop (como o punk ou o fado, por exemplo).

 



O seu novo álbum, convém antes de mais esclarecer, não é, na verdade, um “álbum”, antes uma compilação de faixas soltas (“A Playlist By October Firm” é o sub-título oficial do disco) que traduz fielmente os tempos de velocidade, quantidade e imediatismo em que vivemos, os mesmos, aliás, que Drake tão bem radiografa nas suas letras. Aliás, alguém que, hoje, lendo alguma das suas letras mais intimistas, diga que não as “compreende”, é alguém que não sabe ou entende os próprios tempos em que vive (o que não é necessariamente mau, diga-se), tal o modo como Drake se constitui num sismógrafo das relações amorosas nos tempos que correm e da proeminência da Internet e das redes sociais nas mesmas (encontro “comunicacional” que “Hotline Bling” já selava). Nos tempos, portanto, em que a tecnologia (smartphones e afins) já não exerce apenas funções de “sedução” enquanto produto-instrumento do capitalismo, mas quando ela mesma, tecnologia, é instrumento de sedução entre pessoas, veículo de transmissão e estimulação emocional e, claro, sexual (“nudes”, “sextapes”, “leaks”, etc.).

A primeira apreciação negativa a fazer é a de que não há, aqui, qualquer unidade ou coerência mais ou menos conceptual, o “conceito de álbum” (se é que ainda é possível escrever estas palavras seguidas sem colocar uma flor na campa a seguir) cedendo ao despejamento aleatório de 21 (!) faixas. É a vontade de Drizzy em simplesmente mostrar o que anda a fazer – e também o que não anda a fazer, pois, pelo meio da encomenda, há canções onde o canadiano nem sequer entra, antes chamando Skepta (“Skepta Interlude”) e Sampha (“4422”) para as cantar. “First thing they say is, ‘I know you need a break’ / Hell naw, I feel great, ready now, why wait?”, ouve-se-lhe em “Sacrifices”: o homem não se cansa, ele tem “more life” para dar e vender. O que interessa a Drake, mente altamente criativa em permanente working mode, é dar conta das suas últimas presenças no estúdio, as emoções que o atravessam, as histórias ou episódios que lhe aconteceram no mês passado, da mesmíssima forma, afinal, que, actualmente, os utilizadores das redes sociais actualizam o seu estado no Facebook (o que comem, o que compram, como se “sentem” ou, até, como se sentam, tudo é possível…), contam as suas stories no Instagram ou fazem snapchats do gato que acabaram de ver, tão querido, na rua.

Para quem, à data do lançamento, escutou Views, a dúvida com que ficou foi esta: e depois disto, por onde é que Drake irá? Interrogação que tinha subjacente uma certa ideia de “fim de caminho”, da tal cristalização (que não saturação, ainda assim) da sua música, a qual se via numa espécie de beco sem saída, tanto temática (fama, sucesso, relações amorosas, fake friends) como sonicamente. Ora, a este respeito, o primeiro aspecto a sublinhar é o de que o novo trabalho de Drake responde e não responde a esta dúvida – o que, no caso, até é positivo, na medida em que, confundindo o ouvinte mais conhecedor, não lhe deixa outra hipótese senão deixar-se seduzir novamente (quase ao nível da hipnose…) pela musicalidade sacarina, tantas vezes irresistível da sua receita (a maior novidade talvez ainda seja o facto de Boi-1da e Noah “40” Shebib terem uma presença bem menos intensa na parte instrumental do que em discos anteriores).

Se Views já não era um álbum “de hip-hop”, este muito menos o é, investindo ainda mais nas batidas dançantes, ora afectas ao disco e ao house (a viciante e charmosíssima “Passion Fruit”) – inclusivamente o “tribal house” (“Get It Together”) que ficara enterrado (e bem) algures nos inícios dos anos 2000 –, ora filiadas em sabores quentes e tropicais caribenhos (ecos do dancehall jamaicano em “Blem” e “Fake Love”) ou africanos (“Madiba Riddim”). Aliás, a veia pop de Drake está de tal forma apurada que são os momentos de rap – melhor dizendo, de trap – mais convencional aqueles que puxam indisfarçavelmente o disco para baixo, espécie de pausas temporárias no que de bom está a ser escutado e às quais damos o desconto pela vontade de voltar ao que interessa: o belo dueto com Kanye West em “Glow” (beat do insuspeito Noah “40” Shebib), a soberba recriação da “If You Had My Love” de Jennifer Lopez em “Teenage Fever” (e, claro, piscadela de olho provocadora ao ouvinte mais cor-de-rosa) ou “Sacrifices”, onde Drake consegue fazer o que Mac Miller fez com Ty Dolla $ign em “Cinderella”: pôr gente como Young Thug ou 2 Chainz a soar bem (ao que muito ajuda o piano sacado por T-Minus).

 



Eppur si muove – apesar da inegável existência de uma “fórmula Drake”, apesar de tudo parecer relativamente idêntico, há neste álbum (como já havia, talvez mais pronunciadamente ainda, em Views) um movimento qualquer de deslocação, uma tendência para aqui ou para ali que impede a estagnação, que abre sempre, mesmo que timidamente, a porta a algo mais (a um género, a uma geografia, ou, simplesmente, a uma qualquer atmosfera nova…). Um sussurro que, de mansinho, já nos está a transportar, no escuro e muito subtilmente, para um sítio ainda desconhecido – Views, por exemplo, e como à data apontámos, fechava a sugerir um balanceamento para o R&B de finais dos anos 90 que agora não se concretizou (mas, curiosamente, “Do Not Disturb” encerra More Life nessa mesma toada insinuada por “Summers Over Interlude” e “Fire & Desire”). A obra de Drake, neste momento, funciona um pouco como o planeta Terra: embora pareça parada, está, na verdade, num lento, profundo – porque as transformações não se vêem a olho nu, só se (pres)sentem – e permanente movimento, embora possuindo sempre, também como a Terra, uma centralidade referencial (o hip hop, o R&B). Se essa trajectória se concretizará numa translação e, consequentemente, num retorno ao ponto de partida (o que seria o definitivo atestado do esgotamento criativo de Drizzy) ou se prosseguirá livre e indefinidamente no cosmos, eis o que fica (novamente) por saber. The question remains – e, também por isso, a classificação que agora atribuímos replica a que demos a Views.

 


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