[TEXTO] Francisco Noronha
Lembro-me de ainda estar na faculdade, algures entre 2008 ou 2009, e um amigo que lá fiz – através, precisamente, do gosto comum por hip-hop, então aí partilhado no hi5 (!) – me tentar pôr a ouvir Drake. Pôr, ainda pôs, convencer-me é que já não. Para alguém como eu, formado na estética – e na ética – do rap dos anos 90, sobretudo nova-iorquino (De La Soul, Gangstarr, Digable Planets, Eric B. & Rakim, A Tribe Called Quest e por aí fora), e sobretudo para alguém purista como todos somos nos nossos 20 anos, Drake simplesmente não funcionava: não era poético (mas também não era raw), não era jazzy, cool, muito menos social consciousness (“mensagem”? qual mensagem?). Olhando para trás, posso hoje dizer, com o devido distanciamento, que, à época, era simplesmente “impossível” eu poder ficar cativado com Drake.
Suponho que, à data, o Daniel (o meu amigo) me andasse a dar a ouvir a So Far Gone (mixtape, 2009), sendo que, mesmo depois da minha rejeição inicial, continuou a tentar meter-me o bichinho com o Thank Me Later (2010) e o Take Care (2011), ainda que sem sucesso. Hoje, porém, vira-casacas me confesso, tenho todos os discos originais de Drake, algo a que me lancei pouco depois de escutar o Nothing Was The Same (2013). Tal como aconteceu com outro crítico cá da casa, o Gonçalo Oliveira, a partir desse momento, também comigo nada voltou, de facto, a ser como antes, quer na minha vida pessoal (o álbum foi e continua a ser a banda-sonora de um período emocional importante por que passei), quer, claro, na minha relação com a música de Drake, de quem passei a ser um apreciador e fã (quase) incondicional. Aliás, no plano emocional, é estranha a forma como, remetendo-me esse disco para um período difícil, a sua audição hoje em dia, embora tenha o seu quê de doloroso, é-me sempre irresistível (ainda há dias, no carro, senti este dilema), o que diz bem da atmosfera hipnótica que percorre todo o álbum e faz dele um narcótico profundamente viciante. Portanto, Daniel, tardiamente mas aqui fica: obrigado por teres sido teimoso.
Claro que não foi por iluminação divina que passei a apreciar Drake, mas sim, como referi, pela escuta atenta que prestei a Nothing Was The Same, obra-prima do hip-hop do século XXI e a partir da qual passei a compreender todo o trabalho de Drake que estava para trás (quer em termos sonoros, quer em termos líricos), bem como a sua personalidade enquanto artista. Ao contrário do que acontece tradicionalmente com muitos “novos convertidos” (na música, na política ou noutra área qualquer), não tenho, contudo, a pretensão de pensar que agora é que estou “certo” e que os que mantêm a aversão ao rapper de Toronto estão “errados”. Longe de mim! Ainda assim, não deixa de me suscitar interesse o facto de, por cada vez que Drizzy lança um novo trabalho, uma turba de maledicentes vir a terreiro insultar e denegrir a sua imagem: porque “não é” um rapper ou “não faz” rap, porque é pop (imagine-se a perfídia…!), porque – sim, ainda há quem ponha as coisas nestes termos nos dias de hoje – não é da hood, ao que Drake respondeu, descomplexadamente, em “Wu-Tang Forever” (título e sample de “It’s Yourz”, mesmo para picar os puristas): “I find peace knowing that it’s harder in the streets / I know, luckily I didn’t have to grow there / I would only go there cause there’s niggas that I know there”. Enfim, porque – pasme-se –, pecado dos pecados, o homem canta (!). Aliás, a este último respeito, e a confirmar-se que o diss de “Sweet” (“Singing all around me man, la la la / You ain’t muthafucking Frank Sinatra”) era mesmo para Drake, o comentário de Common revela-se particularmente infeliz, porquanto só evidencia uma visão complexada e anacrónica do hip-hop, algo surpreendente para alguém com a história e a craveira do rapper de Chicago (só mesmo a raiva associada a uma ferida de amor mal cicatrizada pode explicar tamanha infelicidade… Serena Williams, anyone?). De resto, quanto à questão do “cantar” no hip-hop (invariavelmente abordada nas entrevistas que o canadiano concede), não só Drake influenciou – se não mesmo criou – toda uma escola de rappers-cantores (os nomes são numerosos e vão desde Kid Cudi ou Big Sean até Chance The Rapper, e só mesmo para ficarmos por aqui), como há muito que deixou clara a sua visão artística, de que é exemplar esta entrevista à Vibe: “I’m always going to have records to drive to. That’s my shit. I’m never going to make some album full of bars with no melody, don’t even wait for that” [1].
Obviamente que não temos todos que prezar o mesmo tipo de coisas (aborrecido seria se assim fosse) ou evoluir obrigatoriamente nos gostos e apreciações que temos de determinados artistas, mas a grande maioria dos censores de serviços a que acima me referi são-no por uma militantemente exígua visão – views, justamente – do que é a música, um artista, enfim, o acto criador e livre que ele decide empreender. Digamo-lo claramente (como Drake sempre disse): ele não é nem pretende ser “apenas” um rapper, fazer rap, “cuspir barras”. Além do seu talento nato e multifacetado, além de ser dono de uma versátil voz que lhe permite fazer o que bem entende com as melodias, Drake é alguém com uma visão caleidoscópica, megalómana (com todos os inconvenientes associados, claro, do show off ao egocentrismo exacerbado) e, sim, pop – não exclusivamente no sentido categorial do termo (“música pop”), mas no de querer chegar e tocar o máximo número de pessoas emocionalmente. Como também disse à Vibe, “People fucking love to sing, that’s what I never forget” [2]. Daí que pedir a Drake que “cuspa barras” num beat com loop sobre loop e um scratch no refrão seja como pedir a um dono de um Ferrari que só o conduza no máximo a 100 kms/hora – é possível, mas what’s the point? Não será desaproveitar um poucochinho o potencial da cavalaria? Aliás, a história da hostilidade em relação ao cantar no rap é uma história mal cantada, como deu conta Kim Osorio na The Source: “Melody and sing-songy rap hooks date all the way back to rap’s early days. Songs like Grandmaster Flash’s “White Lines” and Kurtis Blow’s “Basketball” incorporated catchy melodic choruses to help move rap to the top of the charts. (…) Singing in rap, however, has historically been met with some criticism. (…) But a study of rap will show hit-making MCs getting their R&B on every chance they get. (…) More ofter than not, rappers are singing their rhymes, or all-around just singing” [3].
Por outro lado, a par dessa heresia de cantar abundantemente, veja-se como, à semelhança da revolução feminista que mulheres como Beyoncé ou Nicki Minaj empreenderam na pop e no hip-hop (assumindo que é absolutamente legítimo a um mulher dizer, por exemplo, que quer ir para a cama com quem que lhe apetecer, tanto como a um homem é, sem que isso fira a sua dignidade), Drake virou totalmente “upside down” – da mesma forma que virou o “six upside down, it’s a nine now” (“9”) – o estereótipo do rapper macho e durão ao interpretar letras nas quais surge frequentemente como o homem rejeitado, trocado, traído, enfim, o tipo na mó de baixo a quem não chega ter muito dinheiro para recuperar um amor definitivamente perdido – letras que, pela sua sensibilidade transversal, puxaram também o público feminino para si como poucos rappers o conseguiram fazer. Se isto não é revolucionário no hip-hop e na noção de masculinidade em geral, então não sei o que revolucionário quererá dizer. Drake, no seu desmesurado egocentrismo, é uma persona artística complexa e paradoxal, a um só tempo raw e lamechas, rude e sensível, gabarolas e poético. Como ele próprio o afirmou em Nothing Was The Same, ele é “the furthest thing from perfect”, devendo esta perfeição ser entendida não apenas do ponto de vista humano (ser boa ou má pessoa), mas também de um ponto de vista artístico, mediático, “comercial”. Isto é: ele não é nem quer ser a figura unidimensional (só raw, só sensível, só melancólico) que o público espera dele ou que o mercado quer que o público espere dele. Ele absorve todas essas dimensões, umas vezes estando mais próximo disto, outras mais daquilo (não somos todos assim?): “Somewhere between psychotic and iconic / Somewhere between I want it and I got it / Somewhere between I’m sober and I’m lifted / Somewhere between a mistress and commitment”… Por isso é que o tipo de comentários cronicamente violento que lhe é dirigido pura e simplesmente passa ao lado do alvo, pois Drake não está “nem aí”. Está a fazer a música que lhe apetece, como lhe apetece, tendo já feito, aliás, questão de o afirmar em alto e bom som em “Pound Cake / Paris Morton Music 2”: Like I didn’t study the game to the letter / And understand that I’m not doin’ it the same / Man, I’m doing it better / Like I didn’t make that clearer this year / Like I should feel, I don’t know, guilty for saying that“.
Neste seguimento, Views, não sendo o seu melhor álbum (bastante distante de Nothing Was The Same, na verdade), vem reiterar isto mesmo ao arrumar declaradamente o assunto logo à partida com esses três extraordinários bangers pop para bombar nos clubes e fazer crescer muitas paixonetas de verão: a africanizada “Too Good” (com a sua eterna amante Rihanna, quase quase a atingirem a excelência de “Work”), “Controlla” (melodia caribenha irresistível e viciante) e “One Dance” (com Wizkid & Kyla). E, claro, “Hotline Bling”, mas essa já conhecíamos. Para quem quiser continua a destilar ódio a Drake, pode ouvir estas três e ficar comodamente por aqui. Para quem quiser saber um pouco mais, gostará de ouvir, desde logo, esse “Keep The Family Close”, intro maravilhoso com o qual, no campo hip-hop, só “Ultralight Beam” de The Life of Pablo rivaliza no campeonato “faixas de abertura de discos” dos últimos tempos. O nome da canção diz tudo acerca daquilo que Drake canta e que já vem de faixas como “Look What You’ve Done” (para a mãe, o tio e a avó) ou “From Time” (lindíssima a descrição do momento passado com o pai): a importância da família na vida do indivíduo, no sentido da absoluta confiança e lealdade com que dela podemos contar, por oposição aos amigos e conhecidos que, uma vez muito próximos, se podem depois vir a revelar outras pessoas (nesta matéria, é rever a lição proferida pelos Mind da Gap na velhinha “Falsos Amigos”).
E ainda só falámos em quatro faixas, havendo mais dezasseis (!) para apreciar, naquela que tem sido outra das marcas de Drake: numa era em que é cada vez mais habitual o lançamento de edições pouco extensas (10, 11 faixas), sem dúvida também porque os artistas lançam cada vez mais trabalhos em menos tempos (EP’s, mixtapes, etc.), Drizzy gosta de trazer sempre um cardápio alargado, dessa forma proporcionando ao ouvinte, nem que seja só por essa longa duração, uma verdadeira viagem, que aqui se faz ao sabor das estações do ano, começando no Inverno, passando pelo Verão (que termina, literalmente, em “Summers Over Interlude”) e reaproximando-se novamente da época do frio (o booklet digital do álbum ilustra esse ciclo). Nesse percurso, vamos submergindo mais e mais no mundo sonoro atmosférico e inconfundível do grande compagnon de route de Drake na mesa de produção, a partir da qual os graves encantatórios e as gordíssimas linhas de baixo namoram os sintetizadores melífluos importados da synthpop dos anos 70. Falamos, claro, de Noah “40” Shebib (embora importe sublinhar que, nas mixtapes Room for Improvement e Comeback Season, seja Boi-1da que ocupa o lugar privilegiado na torre de comandos), que aqui produz ou co-produz pelo menos treze faixas, pese embora o álbum conte com uma multiplicidade de outros produtores, sem que isso constitua factor de desarmonia.
O reverso da moeda está, ainda assim, na sensação de fastio que não se deixa de sentir ao longo de vinte faixas em que Drake aborda praticamente os mesmos dois ou três temas (amores e relações frustradas, confiança e lealdade, sucesso e fama), sendo Views, neste sentido, um álbum algo “comodista”, que joga indisfarçavelmente pelo seguro. Aliás, Noah “40” Shebib tinha avisado, ainda antes de o álbum ser editado, que ele seria exactamente aquilo que os fans conheciam, esperava e queriam de Drake. E não enganou ninguém (especialmente depois de If You’re Reading This It’s Too Late, decepcionante mixtape onde o rapper se limita quase exclusivamente ao ego trippin mais gratuito): vinte faixas em que Drake não consegue sair da sua bolha e olhar para além do seu nariz (do seu ego), reparar no exterior, comentar todo um mundo que está para além dele (se bem que concordemos em absoluto com o Rui Miguel Abreu quando escreveu que “numa era de mártires, de agitação nas ruas, de inconformismo, haver alguém que se permite traduzir para canção os sentimentos negativos que o possam assaltar noite dentro, num quarto de hotel numa cidade estranha, longe da pessoa que dantes lhe ligava e agora não lhe liga nenhuma, é estranhamente reconfortante, desarmantemente humano e cruamente honesto”). Talvez por isso Drake tenha retirado, à última da hora, o “from the 6” do título, pois, na verdade, as perspectivas que oferece neste álbum são a partir de Toronto como podiam também ser de Madrid ou de qualquer quarto de hotel de um tipo atormentado por amores mal curados. Mas, pergunta legítima do leitor, isso – esta exacerbada endoscopia emocional – não era já assim nos seus trabalhos anteriores?
A resposta é afirmativa, mas a verdade é que, à época, o factor novidade era muito mais intenso, ao contrário do que acontece aqui, em que, não obstante tudo continuar a soar maravilhosamente bem (mesmo sublime em alguns momentos), sobressai uma indisfarçável sensação de “been there, done that” (de Drake e de nós enquanto ouvintes). De qualquer modo – e pergunto isto inclusivamente a mim próprio –, será que, no caso de ter sido Views a ser editado em 2013 e Nothing Was The Same o disco agora objecto de crítica, não se estaria aqui a dizer que este último é que era um álbum repetitivo e inferior em relação ao primeiro? A pergunta, retórica, não tem, obviamente, resposta, mas o que ela carrega não deixa de ser relevante no momento de fazer uma apreciação retrospectiva sobre o trabalho do homem de Toronto. Enfim, que Drake é o artista masculino do momento na forma como consegue trabalhar o hip-hop, o R&B e a pop numa mescla sofisticadíssima, globalmente irresistível, é coisa de que ninguém duvida. Resta saber como e se conseguirá – ou, até, se quererá… – variar e fazer evoluir a sua fórmula de sucesso (a sua “receita”) ou se, pelo contrário, se se afundará numa certa monotonia criativa em que, francamente, parece já ter um pé – se bem que algumas faixas do disco (“Weston Road Flows”, “Summer’s over interlude”, “Fire & Desire”) sugiram uma certa viragem para um R&B mais clássico e historicamente situado nos anos 90 (D’Angelo, Erykah Badu, Maxwell, por aí). É esperar para ver.
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Notas:
[1] John Kennedy, “Killing them softly” (entrevista com Drake), in Vibe, Vol. 22, Issue #1, Winter 2014, p. 61.
[2] Ibidem, p. 58.
[3] Kim Osorio, “The Best of Both Worlds” (entrevista com Drake), in The Source, #249, November 2011, pp. 57-58.