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Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 06/02/2020

Júlio César, Shaka Zulu e a ascensão do império de Zudizilla

Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 06/02/2020

Imaginemos o seguinte: numa mesa hipotética, de um passado que nunca aconteceu, sentam-se, frente a frente, Gaius Julius Caesar e Shaka kaSenzangakhona. O primeiro, político e líder militar, figura crítica para a criação de um dos mais importantes Impérios da civilização ocidental. Nasce em Roma, no seio de uma família que, embora nobre, não possuía títulos de relevo. Aos 16 anos perde o pai, torna-se o homem da casa e é, através de importantes alianças, que ascende ao cargo mais alto da República. A mesma que, após a morte de um Júlio César invicto, precipitaria a criação do Império Romano. O segundo, político e líder militar, nasce quase dois mil anos depois em KwaZulu-Natal, na África do Sul. Filho bastardo de Senzangakhona kaJama, chefe do pequeno clã Zulu, Shaka e a sua mãe Nandi acabariam banidos da aldeia natal e forçados a viver em exílio, encontrando refúgio junto dos Mtetwa. Anos depois, Shaka, agora Zulu, treinado na “nova casa”, viria a transformar os Zulus, uma etnia com expressão pouco significativa, num Império doze vezes maior, do qual foi fundador e primeiro rei.

“O meu nome, na verdade, é Júlio César. Em 2020 completo uma década de rap, trabalhando, produzindo e cantando”. A analogia torna-se auto-explicativa. Corta para 2019 e, no ponto mais alto do hype para o qual o hip hop tem vindo a caminhar, encontramos Zudizilla, MC brasileiro do Rio Grande do Sul, à sombra das visualizações, da indústria e da própria geografia brasileira. Natural de Pelotas, pequena cidade do interior do estado, o rapper chegou com Zulu Vol 1: De Onde Eu Possa Alcançar o Céu Sem Deixar o Chão no final do ano passado.  O trabalho é o seu segundo álbum de estúdio e marca o início de uma trilogia que Zudizilla entende como fundamental para o rap nacional e, aos ouvidos da crítica, importante para devolver uma ideia de maturidade ao género no país. Zulu, o primeiro volume, é um passeio pelos condicionamentos da própria existência a variadíssimos níveis. A vivência enquanto artista multidisciplinar, homem, negro, amante, filho de mãe solteira e de poucos recursos, numa região fortemente marcada pela colonização europeia. As limitações artísticas num país de dimensões continentais, perdido na função de fazer valer dezenas de epicentros culturais. A adaptação forçada a uma indústria de consumo imediato que, inevitavelmente, relega para segundo, terceiro ou quarto plano outras formas de expressão artística mais críticas ou de “maturação lenta”.  A analogia de um homem negro “digno do legado falido de César” poderia adensar-se ainda mais, sem precisarmos sequer, de lhe juntar referências óbvias a um rei dos monstros, como é Godzilla, numa história onde é o próprio sistema a dar vida a um argumento que não deixa de incluir as traições, os assassinatos e todos os plot twists que os livros contam. Foi sobre arte e a guerra, muitas vezes necessária para que continue a existir, que conversámos com Zudizilla.

Antes de mais, queria começar por te perguntar, para quem não te conhece, quem é Zudizilla e onde começa a tua história no rap? Eu conheci o rap através do graffiti. Nunca foi um objectivo meu me transformar em MC, porém, foi quando comecei a fazer graffiti que tive os meus primeiros contactos com a cultura hip hop. Eu me vi dentro daquele universo e, para mim, nunca foi muito difícil fazer rimas. É uma facilidade que tenho, talvez porque o meu pai, meus tios, tinham um grupo de samba, e tinha alguma coisa de improviso. Alguma coisa de encaixe de palavras. Quando eu me vi dentro desse lugar do hip hop e do graffiti rapidamente fui chegando perto do freestyle. Num primeiro momento, só fazia rimas de improviso e pintava. Isso durou uns dois anos até que eu conheci a galera do rap e gravei meu primeiro rap. Lembro que gravei na terça e, na sexta-feira, estava sendo convidado para participar do grupo Banca CNR, lá do Rio Grande do Sul. Era um grupo com uma grande bagagem, já. Tinham seus 10 anos de rap e, quando eu entrei, estavam numa fase de reformulação. Alguns tinham saído para cuidar da família, enfim. Vários motivos. O Guido CNR e o Davi CNR me fizeram o convite para participar e, a partir daí, começa a minha história dentro do rap. Já era um grupo surgido na grande mídia, bem consolidado no Rio Grande do Sul.  Era pessoal mais velho que tu?  Sim, a galera era bem mais velha que eu. Até hoje eu lido com o Guido, que foi o cara que me acolheu no grupo, como um pai. Eu realmente era bem moleque, mesmo.  Que idade tinhas? Devia ter uns 22, por aí. Já tinha meus planos e minha carreira já tinha dado alguns passos em direcção às artes plásticas. Já tinha feito algumas exposições enquanto grafiteiro, já tinha viajado para outros eventos fora da minha cidade, já tinha passado na prova para a universidade. Eu tinha em mente que, ou me tornaria pintor, ou faria graffiti para sempre, ou viveria do design. Então comecei a investir tudo o que eu tinha, que não era nada, mas meu tempo e capital individual, enquanto sujeito. Comecei a trabalhar para poder pagar um curso que me desse a possibilidade de entrar numa universidade. As escolas públicas nas quais eu estudei sempre foram… Não tão sucateadas como agora mas não dava para competir de igual com quem estava saindo de uma escola particular. E eu venho de uma realidade bem difícil. Sempre fui muito pobre. Classe D, podemos chamar assim. Filho de mãe solteira. Passei por todos os problemas que alguém que cresce nesse ambiente poderia passar, mas fui salvo pelo desenho e pela ludicidade. Como eu tive uma ausência muito grande do meu pai e fui criado por três mulheres, o imaginário foi muito útil e me salvou em vários momentos, sabe? Tinha que desenhar os meus brinquedos já que eu não tinha muitos. Tinha que imaginar brincadeiras já que eu era rodeado por mulheres que, às vezes, não entendiam as brincadeiras que eu queria fazer. Esse mundo de fantasia, lúdico, acabou me salvando em muitas das imersões que eu fiz. De passar pelo crime e por várias dificuldades que os bairros pobres do Brasil apresentam. A pintura me salvou, o graffiti também me abraçou e quando eu vi, já estava no rap. Tinha toda essa bagagem, discurso e narrativa que é presente dentro do rap mas já estava saindo dessa dinâmica que o Brasil apresenta para os menores e os moleques pretos. Eu já sabia que se eu não passasse numa faculdade, dificilmente teria outra chance que não fosse o crime. Passei a estudar, passei a ler, passei a investir na arte.

“O meu referencial enquanto MC parte de um rap que não era muito popular. Madlib, J Dilla, Mos Def. Justamente no momento em que o rap era dirty south. E eu queria fazer umas coisas mais esquisitas, umas coisas mais outsiders.”


Foste fazer Pintura ou Design? Fui fazer Design. Me formei e fiz mais um pouquinho de Artes Visuais mas não terminei. Eu me apaixonei muito por meu curso de Artes Visuais porque a minha questão com o Design é pura e simplesmente profissional. Queria ter um emprego mas não queria um emprego convencional. Queria continuar pintando para o resto da vida, desenhando, na verdade, e o curso que mais se aproximava disso era Design. Então parti para cursar Design mas como se fosse uma saída para não cair numa rotina comum. Eu sabia que não me encaixava. Já tinha tido outras experiências com outros trabalhos que sempre foram muito custosos para mim e a única coisa que para mim não era muito difícil era me dedicar a coisas que intelectualmente me levavam para outro patamar. Dentro do curso de Design, conheci a História da Arte e a Estética que me abriram a cabeça para uma outra realidade. Quando fui cursar Artes Visuais já estava com a intenção de leccionar. Já estava pensando em, talvez, terminar a minha vida como professor. E ainda penso isso, na verdade! (Risos) Quando o rap chegou na minha vida eu percebi que, dentro da estrutura do hip hop, faltava uma preocupação com o conceito, pelo menos aqui no Brasil. Não havia muito a preocupação com a estética, com a identidade visual e eu cheguei com essa bagagem. Já conhecia Basquiat, já lia Kerouac há muito tempo e vinha do rock and roll. Já escutava muitos discos conceptuais, com capas conceptuais, dinâmicas de identidade visual desde o primeiro acorde até à roupa de palco. E já tinha passado algumas noites na cadeia, vendido algumas drogas, passado por muita coisa… Na verdade, eu achava que ia morrer com 21 e depois achei que ia morrer com 27. [Risos} Então eu fazia tudo o que eu podia fazer!  Trazias contigo uma sede de viver e de aprender muito grande. Exactamente. Aos 22 anos eu já era muito velho para a minha idade. Então, chego no rap justamente com essa ideia. Entro para esse grupo que, claro, já tinha feito alguns shows e recebia por isso mas não tinha uma dinâmica de cachê. Fui tentar perceber o que é que fazia os grupos de rap da época receber cachê. Entender o que era identidade visual. O que era logótipo, grafia, foto, material mediático. Coisas que eu aprendia no Design e que fazia no estágio. Mas tinha um grande problema em trabalhar com clientes. Entender e fazer o que o cliente quer… Consegui pegar nesse meu estudo e trazer para dentro das letras, instrumentais, refrões, capas. O Guido foi genial porque me deu essa abertura para poder trabalhar e, na verdade, experimentar coisas, nesse período.  Como é que foi essa passagem? Não digo que tenha sido um choque mas, de repente, passas de uma profissão mais segura e potencialmente mais estruturada para algo mais liberal… “Ok, vou fazer rap.” Não foi assim do nada! [Risos] O Guido me falou que o rap nunca iria ocupar um espaço mais sólido na minha vida. Que a gente ia fazer umas músicas, fazer uns showzinhos e tal. Mas isso durou uns quatro anos até que a gente começou a emplacar alguns hits. Aí a dinâmica de show ficou maior, a responsabilidade ficou maior mas eu ainda estava trabalhando como freelancer. Só que quem faz ou vive o rap sabe que é um vírus. Cada vez você quer saber mais sobre ele, cada vez mais ele te mostra mais coisas e você nunca sabe tudo e sempre quer saber ou fazer mais e melhor. Isso começou a ser relativamente desgastante porque eu também continuava pintando. A primeira vez que eu fiz um compilado, um trabalho fechado e larguei para a Internet, em 2010, não queria mais fazer música porque estava desgostoso com algumas relações da música, mesmo. Mas peguei todas as coisas que eu tinha e fiz uma capa. O nome dessa mixtape é Elefante por causa da fábula Os Sete Cegos Sábios e o Elefante. Existem sete sábios que vivem numa montanha e um dia chega um elefante. Eles brigavam entre eles para saber quem é que conhecia toda a verdade e eram cegos porque a verdade não poderia depender de estímulos visuais. Quando avisaram que o elefante estava na aldeia, eles desceram da montanha e, cada um, tocava numa parte do animal. O que tocava na pata dizia que ele era como um tronco gigante. O que tocava no rabo dizia que ele era uma cobra. Até que o sétimo sábio pediu para uma criança desenhar o elefante no chão. Tocou e percebeu. “Eu não tenho a certeza do que é um elefante mas eu tenho a certeza de que não é nada disso que vocês estão falando”. E eu já tinha, em mim, essas várias partes. Escrevia poesia, pintava, fazia graffiti, desenhava. Chego nesse momento de ser uma forma plural dentro do rap. Até eu entender que seria só MC, demorou uns cinco anos e muita coisa aconteceu… A relação entre o crime e o rap na minha cidade ainda é bem próxima. Acabei perdendo muitos amigos nesse processo e muitos amigos foram presos. Passei um tempo em que tive que fazer alguns shows sozinho até que o DJ que acompanhava a gente falou, “mano, talvez tu precise também fazer um trabalho solo”. Foi aí que eu comecei a soltar algumas músicas. Todo esse lance estético que eu tinha e que eu utilizei a favor do meu grupo, em dado momento não estava mais fazendo sentido. O meu referencial enquanto MC parte de um rap que não era muito popular. Madlib, J Dilla, Mos Def. Justamente no momento em que o rap era dirty south. E eu queria fazer umas coisas mais esquisitas, umas coisas mais outsiders. Já tinhas lido muito, ouvido muito, estudado muito. Estavas também mais exigente criativamente. Sim, era muita coisa para, simplesmente, entregar para o mercado aquilo que o mercado exigia. Aí começo a pensar no meu primeiro disco, que eu chamei de mixtape, que era o álbum Luz (2013). Nesse momento eu ainda fazia o trabalho com esse grupo, com muito menos frequência, é óbvio. Pintava ainda directo mas muito menos. Já tinha abandonado a faculdade. Todo o esforço que eu tivesse como freelancer era destinado ao meu trabalho. Se eu pegava um cliente e esse cliente me pagava 700 reais, que era pouco mas já era um show, então tinha que trabalhar para fazer. Se eu não conseguisse fazer um show eu teria que pegar algum dinheiro que talvez fosse do show do mês anterior e investir em peças gráficas. Aí já desdobrava o rap para a minha relação com o vestuário. Dentro de todos esses universos, trabalhei num colectivo que teve a possibilidade de desfilar no primeiro evento de moda da minha cidade. E isso me deu outras percepções. Já que as pessoas gostam das frases que eu escrevo, porque não transcrever isso numa peça de vestuário? Que não tenha o meu nome mas que tenha a minha frase já que ela é tão significativa. E isso também já foi me dando uma outra possibilidade financeira para só pensar em rap. Em 2012 foi quando lancei o EP que me deu independência e em 2013 venho com esse álbum chamado Luz, já com o objectivo de me sustentar através dessa arte.

Isso leva-me a outra questão que tem a ver com o esforço financeiro, individual, o que seja, que é necessário para lançar um álbum ou viver do hip hop no Brasil, hoje em dia, principalmente em relação a outros mercados. Impostos sobre produtos, acesso aos meios, etc.  Por exemplo, eu moro em Pelotas e a cidade fica a três horas e meia de viagem da capital, Porto Alegre. Então, o rap da capital é completamente diferente do rap da minha cidade. Por causa dessa dificuldade em adquirir certos materiais a gente acabou criando o nosso próprio material. De 2000 para a frente, não era tão raro você ter home studio. O Fruity Loops já era popularizado e a gente já conseguia, mesmo que com muita dificuldade, produzir alguma coisa. Um colectivo onde entrei antes da Banca CNR, um grupo caseiro, era caseiro justamente por isso. Tudo era feito em casa. O Pok Sombra fazia os beats e a gente gravava. Ele passava o dia inteiro gravando mais de 20 MCs dentro de casa, fazendo mais de 100 beats, sampleando todos os discos que a família dele possuía. Então a gente vai criando essas dinâmicas. Ponto. Essa é a ferramenta artística que a gente tem pra trabalhar. Como transformar isso em dinheiro já parte muito mais de uma relação de preparo, mesmo. Quando se entende a arte e o artista, você passa a perceber que ele não pode fazer só música. Que ele precisa partir para outras dinâmicas ou a música dele precisa se desdobrar em mais coisas. A grande armadilha é o mercado. Porque o mercado mostra o tênis do MC, o boné, a marca que o MC está usando. E quantos MCs passam a entender que, para ser reconhecido enquanto músico, precisa se fantasiar como um MC? Você passa a gastar dinheiro para tentar ganhar dinheiro e isso raramente dá certo. Em cidades pequenas, claro, que é de onde parte o meu discurso. Eu saio de Pelotas para São Paulo sem passar por Porto Alegre. A minha música chega em Porto Alegre porque a cidade sentia a necessidade da música que eu e outras pessoas da minha cidade produziam. Por ser o grande pólo económico do Sul, ela absorve muito mais do que exporta. O rap de Porto Alegre até tinha algumas características mas eram muito semelhantes a outras localidades do Brasil. Essa dinâmica financeira acabou com muitos grupos de Porto Alegre porque sempre foi a mesma tónica. O artista que quiser sobreviver financeiramente precisa vir para o centro do país. É aqui que está a logística que permite ao artista, não mais sobreviver mas, viver da música. Aqui em São Paulo existem outras dinâmicas que não têm nada a ver com a arte e isso, para mim, foi um grande choque. Entender que o contacto vale muito mais do que a fórmula lírica. Que o networking vale muito mais do que a proposta. Eu estou em São Paulo há dois anos mas chegar aqui e entender que o aperto de mão frouxo é uma dinâmica de mercado artístico quase me fez voltar para casa. Para um artista se manter aqui, ou no Rio de Janeiro, ele precisa ter muito sangue frio. O lance mais doido é que não precisava ser assim porque o Brasil tem uma extensão continental. Porto Alegre deveria ser auto suficiente. O Rio, Salvador, Recife deveriam ser auto suficientes. Não estou falando em relação ao material artístico porque esses lugares criam arte. Mas não bebem da própria arte e o artista precisa sair, fazer todo o “caminho de Santiago”, e voltar para a sua cidade. No meu caso significa ficar longe da minha mãe, ficar longe da minha família, do que eu amo. Para ter o mínimo de reconhecimento desse mesmo lugar onde eu já estava.  Muitas vezes apenas para veres e seres visto… Exactamente. Aí eu tenho plena consciência que carrego o sonho de, no mínimo, três gerações de rap da minha cidade. Por mais que eu sinta a dor, por mais que eu chore, por mais que eu tenha problemas financeiros, não tenho a possibilidade voltar. Só tenho a possibilidade de dar certo. Eu sei que muitos artistas, por relações económicas, étnicas e até geográficas, nunca vão entender, saca? Essa disparidade cria um obstáculo muito grande entre quem quer fazer e quem realmente poder fazer arte aqui no Brasil. Acredito que outros lugares do mundo também tenham essa dificuldade. Só que é Brasil, né? Só por isso já cria um obstáculo muito grande para se sobreviver como artista, como padeiro, como uma pessoa que queria viver condignamente.

“Independentemente da época ser de trap, de single ou de música com dois minutos para esquecer depois, eu não podia deixar que isso ficasse na minha cabeça. Então abracei toda essa dinâmica de trabalho e disse, ‘Brasil, é isso aqui, mesmo’. Aceita quem quiser e quem não quiser pode continuar brincando com os brinquedos mas a parada, a sério, eu acredito que seja a partir disso.”


Em algum momento sentiste algum tipo de egoísmo por teres que deixar a tua cidade, as pessoas que amas, para conseguir viver da tua arte? Só não sinto essa relação de egoísmo porque eu não queria sair de lá. Eu não vim para São Paulo atrás de um sonho. Vim para não morrer com ele porque já não era mais saudável andar nas esquinas da cidade onde eu morava. Estava vendo os meus amigos serem presos ou morrerem. Comecei 2018 com notícias muito fortes. Passei a perceber que a minha cidade estava me expulsando, exactamente como um parto. Chegou o momento que já não era mais cabível eu, enquanto MC, estar lá. Monopolizando toda a dinâmica de artista e de mercado. Já estava com dois discos na rua, os dois já tinham me projectado para outros lugares, todos os meses eu tinha show e isso significava que, todo o mês, alguém da minha cidade não tinha show. É muito mais do que ser justamente por mim. Foi, também, um acto de coragem e para dar oportunidade para que outros MCs surgissem sem ser uma relação de competição. Até MCs do meu entorno, que nem sabem que eu sei disso, já estavam mandando áudios para outros MCs dizendo, “porra, só o Zudizilla que toca? Isso tá foda, sabe?” Meio que conspirando. Eu não lido com isso de uma forma negativa porque era realmente isso que estava acontecendo. Por mais que eu saiba que seja referente a tanto de trabalho, conceito e estética que eu tenho no meu trabalho, também estava tirando oportunidade de outras pessoas… Eu não sou o melhor MC da minha geração ou o cara mais falado dessa geração. Um amigo meu se matou o ano passado justamente por essa dinâmica cruel de mercado no Brasil e eu tinha um sonho de fazer o corre virar, estando lá em Pelotas. Para que mudasse essa dinâmica e o Brasil pudesse olhar para o interior sabendo que existe arte muito forte, original e genuína. Mas, de certa forma, isso também pode ter resultado ou vir a resultar num maior reconhecimento do rap que é feito por lá. Sim. Conheço várias pessoas que foram abrir o YouTube e começaram a pesquisar todas as pessoas que estão no meu entorno, repostando directo e que passaram a gostar do rap de lá. Então, existe mérito, também, em tudo isso que eu estou fazendo. Eu vi o documentário sobre o 2014 Forest Hills Drive do J. Cole e esse documentário, para mim também foi muito, como dizer… Uma espécie de “abre-olhos”? Exactamente. Ele me influenciou muito a perceber que eu preciso fazer alguma coisa pela minha cidade. Quando o vi a levar o Jay-Z para a cidade dele pensei, “mano, quero muito levar grandes shows para minha cidade, também”. E agora que grandes artistas conhecem o que eu faço, tenho a possibilidade de levar eles para lá. Na minha estética, da forma que eu acho que precisam ir, mesmo. Estou tendo uma possibilidade muito grande para além de carregar nas minhas costas o sonho de muita gente. Na verdade, sempre tive a sorte de trabalhar com produtores de fora do Brasil, desde o meu primeiro trabalho. Já trabalhei com norte-americanos no Luz, com um francês no Faça A Coisa Certa e, só agora neste último álbum, é que a produção é toda nacional. Amanhã, mesmo, está saindo o meu trabalho com o Madkutz! [A entrevista aconteceu um dia antes do lançamento da beat tape A Última Ceia, do produtor português] Pois é, já fiquei a saber. E és a única participação na beat tape do Madkutkz, não é? Sim! E eu nem sabia disso. Quando ele me falou eu até tive que fumar um cigarro porque fiquei nervoso. [Risos]  [Risos] Ficaste ansioso por isso?   Nossa. Demais! Eu achei que seria uma beat tape com vários outros MCs do entorno dele. Mas depois percebi que não e fiquei… “Nossa Senhora, meus Deus do Céu.” [Risos] Chegando agora a este Zulu, Vol. 1: fiquei muito contente quando o ouvi porque, pela primeira vez em muito tempo — e tive exactamente a mesma sensação com o 2014 Forest Hills Drive, já que falaste nele — senti que estava a ouvir um álbum como um todo. Uma peça única que ouves do início ao fim, como se fosse uma faixa só, sabes? Foi esse o teu objectivo? Foi propositado numa altura em que o mercado está mais focado nesta “gratificação imediata” trazida pelos singles? Foi esse o propósito, sim. Eu não sei fazer singles! Este ano vai ser o ano mais desafiador da minha carreira porque vou precisar fazer singles e participações justamente pelo maldito mercado. Porém, eu não sabia que estava fazendo um disco. Vim para São Paulo em 2016 porque a Red Bull, em três meses de lançamento do Faça A Coisa Certa, me notou lá no Sul e me pagou uma vivência artística de um mês, aqui. Então eu vim com um disco raw, completamente cru e mais hardcore. Bombo e caixa e sample do início ao fim. Porque quando eu fiz a mixtape, que eu chamo mixtape mas é um álbum chamado Luz, ele já tinha uma estética sonora muito parecida com o Zulu… Na verdade, vou-te contar um segredo. [Risos] Esse meu disco, eu chamo O Luz mas, na verdade, eu queria ter chamado Zulu, que é justamente O Luz de trás para frente. Só que eu sabia que eu não tinha propriedade artística ou intelectual para fazer um disco chamado Zulu com a carga que o disco Zulu deveria ter. Zulu foi o meu primeiro tag no graffiti. E ele não é um apelido ou uma nomenclatura que me foi agradável. Me chamavam Zulu porque eu tenho a pele muito escura e a galera achava que eu me aproximava de tribos africanas. E ser chamado Zulu, especialmente no Rio Grande do Sul, que é o lugar que tem a maior colonização europeia, com muitos portugueses, espanhóis, italianos e até alemães, é extremamente pejorativo. Foi quando deu a virada na minha cabeça de pintor para grafiteiro. “Não, mano. Eu vou usar esse nome a partir de agora e quando alguém me chamar de Zulu vai ser pra elogiar”. Só que quando fiz a mixtape eu não estava maduro. Quando fiz o Faça A Coisa Certa, imaginava que eu ia ter mecanismos e logística para fazer um grande álbum e, na verdade, isso não aconteceu porque estava em Pelotas. Então o que é que eu vou fazer? Vou fazer o álbum mais cru que existe. Foi aí que surgiu o Faça A Coisa Certa, com as dinâmicas do Spike Lee e toda essa relação. Quando eu volto para Pelotas, depois da residência artística em São Paulo, já vejo a minha cidade de forma completamente diferente. A forma de cantar, os instrumentais… Começo a experimentar várias coisas novas. Aí eu mandava para o [DJ] Nyack porque ele também tinha estado nessa vivência artística. A gente se tornou muito amigo. Eu, o Nyack e o Kamau. Cada música que eu gravava mandava para eles. E o Nyack, um dia, falou pra mim, “cara, isso pode ser um álbum. Isso pode ser uma narrativa. Pensa no que tu tá falando. Qual é a linha que liga todas essas músicas?” Porque cada música era completamente diferente uma da outra. Foi aí que eu comecei a pesquisar o conceito daquilo que eu estava construindo. Foi aí que eu percebi que já era um cara adulto e que eu já não tinha mais a possibilidade de tentar fazer alguma. Depois surgiu a ideia de fazer músicas que são destinadas à minha vivência enquanto ser humano mas sem entregar isso para o público. A numeração desse disco ela vai do 11 ao 33. Ao infinito, na verdade. Ela começa com 11, 13, 15, 18… Essa numeração significa que cada música eu deveria ter escutado com tal idade e isso teria me evitado passar por vários problemas que passei na minha vida. São vários conselhos que eu dou a mim mesmo. Só isso já me dá um conceito de um álbum inteiro. Daí eu comecei a perceber as dinâmicas sonoras, a estética. Comecei a juntar as peças para entregar esse projecto que tu entendeu e isso, para mim é muito gratificante, porque tu entender esse disco dessa forma é o sucesso que eu queria. Para que ele seja escutado do início ao fim e ser interpretado como uma peça única. E o mais doido é que são três discos. Então ainda tem mais coisas por vir.  Mal tivemos tempo para decifrar este álbum e já nos entregas outro? Assim, torna-se difícil. [Risos] O dois já está chegando daqui a pouco! Eu sei que muita gente ainda não conseguiu nem perceber o que está acontecendo. É muito prazeroso estar conversando contigo, é muito da hora conversar com uma pessoa que entendeu o que eu fiz com o disco porque, realmente, eu tive dois referenciais para fazer esse disco: To Pimp a Butterfly e 2014 Forest Hills Drive. São os dois melhores álbuns que eu tenho de referência, na história. Entendi a maturidade musical e a direcção desses dois álbuns. Em relação ao que se estava fazendo no Brasil, eu percebi que não podia ser covarde e não levar isso para a frente. Independentemente da época ser de trap, de single ou de música com dois minutos para esquecer depois, eu não podia deixar que isso ficasse na minha cabeça. Então abracei toda essa dinâmica de trabalho e disse, “Brasil, é isso aqui, mesmo”. Aceita quem quiser e quem não quiser pode continuar brincando com os brinquedos mas a parada, a sério, eu acredito que seja a partir disso. E eu também acho que não sou o único a enxergar isso. Existe uma cena inteira e poucos estão tendo repercussão. Xamã, Arit, Makalister… São pessoas que eu amo pela coragem que eles têm de desdobrar o rap em mais do que o mercado pede e, também, de levar o mercado ao limite. Fazer o mercado se auto-questionar, colapsar e dar o valor para coisas que realmente interessam.

“Errar é uma coisa que faz valer a minha passagem por aqui. Na verdade, quando eu ouvi esse disco, chorei algumas vezes. E não foi de emoção. Chorei porque eu percebi que, mais uma vez, eu estou fazendo um disco que eu amo mas que não vai me trazer porra nenhuma.”


Uma da coisas que percebo é que, em quase todas as faixas, directa ou indirectamente, mencionas o silêncio. A importância de estar em silêncio, calado, em introspecção ou observação. O que, no mundo em que vivemos hoje, é um grande desafio. Como vim de outras dinâmicas artísticas, quando paro para escrever eu tenho muito pouco de intuito. A música me perpassa. Eu sou um indivíduo e a minha música me representa enquanto indivíduo. Então, tudo o que está ali, significa que eu também dei esse passo enquanto pessoa. Quando eu vou olhar já foi, já aconteceu, já está na rua. Pensar que esse disco se torna uma antítese, nesse momento, do hype é algo muito doido porque nós estamos agora em 2020 e eu comecei a escrever esse disco em 2016. É um lag muito grande. Recayd Mob não estava acontecendo. A grande maioria do que está acontecendo não estava acontecendo na época. As pessoas podem imaginar que isso é uma contestação ao actual momento do rap mas, na verdade, é só a vontade de alguém que gosta muito de ouvir disco. Eu sou um MC que mais do que raps ou batidas de rap, eu gosto é de disco. Eu sou metaleiro! Eu disseco disco. Para mim não tem coisa melhor do que fazer um disco com medo, com toda a carga de ansiedade e botar ele na rua e saber o que a pessoa achou. Porque acho o single uma coisa… Sei lá, é muito necessário e a gente não pode esquecer que existe um mercado e que a música popular também é música. Mas eu sou do álbum. Eu gosto muito de disco e acho muito corajoso quando um artista faz um disco.  Pode dizer-se que é revolucionário até, em 2020, fazeres um álbum como quem escreve um livro. Claro que é! E é isso mesmo. É exactamente isso! E ninguém escreve um livro de um dia para o outro, não é? É preciso estudo. Sim. É preciso um tempo de maturação. Esquecer ele um pouco, lidar com ele de novo e ver que tem coisas que se pode limar. Ver que tem opressões que tu pode deitar fora. Gatilhos de relações. Você pode estar ofendendo outras pessoas e pode cortar. É preparar essa obra para mundo. Fazer um disco, para mim, é como pintar uma tela. Só que uma tela eu pinto mais rápido. Mas acho um privilégio e acabo admirando artistas que, para além da qualidade artística, têm coragem de fazer um disco e coragem de desdobrar um disco em outras coisas. A galera aqui no Brasil traz muita a dinâmica de fazer um disco com vários singles que já estão na rua. Pegar na música que está na rua, botar no disco e dizer que isso é um disco. Cara, eu não gosto disso. Eu não consigo entender isso. Para mim não é um disco, porra nenhuma! Eu gosto é de perceber que o artista sumiu e me trouxe uma coisa. E aquilo que ele me traz é completamente diferente do que ele já fez. Ainda é a narrativa dele, é um outro ele porque, obviamente, ele cresceu, ficou mais velho, teve filhos, entende? Para mim um artista que faz três álbuns iguais, no segundo eu já não consigo mais ouvir ele. Por mais que ele viva o hype, tenha as punchlines, o show seja doido e movimente milhões, é um cara chato, para mim. Um cara covarde. Eu gosto de artista que propõe e que provoca.  Uma das coisas que, este ano, me deixou muito surpresa e feliz, foi perceber a criação de projectos como O Clube do Livro da Noname, por exemplo. É surreal mas parece algo muito futurista. Voltar à base é futurista. Ouvi uma frase do actor Pedro Cardoso, aqui na TV Cultura, que reflecte muito isso. O entrevistador perguntou para ele: “Você é um cara que fez sucesso transformando em absurdo a vida comum. E agora que a vida é absurda, o que é que tu vai fazer?” E ele responde: “Vou falar de coisas comuns”. É exactamente esse o lance. Fazer um clube do livro, hoje em dia, é uma coisa muito absurda. E, na verdade, é uma coisa que é extremamente comum, rotineira, necessária para a saúde de uma sociedade mesmo. A gente acaba lidando com isso de uma forma muito… Como se isso beirasse o surrealismo. Porque, na verdade, a gente é que está inserida numa vivência, numa existência, que é completamente absurda. Isso, com certeza, se reflecte na música, no mercado. Eu, enquanto publicitário, entendo o quanto de mão do mercado tem nessa baixa de nível intelectual da música. Não acho que isso seja algum ruim e nem acho que isso seja algo bom. Só lido muito mal com o problema do apagamento das vertentes genuínas da arte.  Em termos de sonoridade, em relação aos beats e aos instrumentais que escolheste, há um certo cuidado em não deixar que o instrumental se sobreponha ao texto. Ele está sempre no centro.  Sim. Na verdade, eu flertei com o trap em 2011 e, aí, eu já tinha algumas músicas que não falavam de muita coisa com cunho social. Foi bom, foi um momento punk da minha vida em que eu lidava muito mais com a minha atitude. Os meus shows tinham roda punk e eram exactamente o que são agora, mas, quando fechava as portas da festa, eu ficava só, vendo o saldo. Descobria que alguém tinha sido roubado, alguém apanhou, alguém sangrou, alguém brigou, alguém matou alguém. Isso não me deixava feliz porque eu não acho que esse seja o lugar do MC. Eu acho que, pelo contrário, ele tem que lidar com toda aquela energia que está vindo do público e precisa fazer alguma coisa com aquilo, ao invés de só fazer pular. O texto precisa ser muito lúcido, claro e muito entendível. Não pode ser complicado. Eu não gosto de speed flow e eu gosto de embasamento teórico para cada rima. Para tudo. Mesmo que esse embasamento teórico parta do tio do bar da vila, ainda assim é um embasamento, entendeu? Ainda assim é uma forma empírica de trazer informação e conhecimento para dentro de uma música. E aí eu acredito muito no texto enquanto cerne do que eu faço. Gosto muito de instrumental e o Zulu, Vol. 1, e na real toda a minha tónica enquanto artista, parte de instrumentais que não atrapalhem o texto e refrões que destaquem o instrumental. Sempre trabalho nessa dinâmica. Antes de fazer a música penso na melodia que possa se encaixar naquela música e naquele instrumental para que o instrumental brilhe e a voz brilhe junto, mas nenhum dos dois pode atrapalhar o texto. É como se você tivesse entregando um presente e esse presente tem uma caixa e essa caixa vem embalada com um papel de presente muito bonito. Eu entrego e me preocupo muito em como vai chegar nas pessoas. Não quero me tornar um MC chato. Preciso ser directo especialmente porque faço álbuns, então eles não podem ser maçadores. Há vários exemplos de MCs que eu adoro, amo, mas não consigo escutar porque são chatos para caralho! O instrumental é chato, a entoação de voz é chata, o refrão é mais chato ainda, mas o texto é muito maneiro. Resolver essa problemática, para mim, é a tónica da minha vida e o que me move. Texto/refrão/instrumental. Acho que consegui trazer muito do que vejo dessa relação e dividi ele em três partes. Este primeiro álbum é um disco “normal”. O que eu entendo como um disco normal. Eu olhando para a cena e dizendo, “falta isso aqui que eu estou fazendo”, ao invés de estar cobrando o que outras pessoas fazem. Outras pessoas vão fazer o que elas sabem e está ok. Se tu acha que está ruim, que falta texto e que falta isso, faz um disco! Ao invés de ficar enchendo saco das pessoas na Internet, fazendo vídeos na Internet, fazendo músicas direccionadas para as pessoas na Internet… Vai fazer o bagulho! Deixa de ser chato.  O segundo volume vai ser um álbum visual e vai ter seis faixas, acredito. Um disco onde estou entregando para o mercado o material que eu acho que teria que estar no mercado, que também vai soar conceptual mas que é mais curto e vai ser mais fácil de entender. O terceiro momento será onde pego nos meus instrumentais, porque também produzo há muito tempo, na minha forma de ver a música e trazê-la para o mundo. Aí parto para uma relação de MC/produtor que, directo, muda a minha cabeça. Não sei se é perceptível mas eu sou um grande fã de Black Milk. Ele muda muito e eu passei a perceber que esse arrojo dele vem de rimar nos seus próprios instrumentais, nas suas dinâmicas de tempo, entende? No terceiro eu já venho com essa propriedade.  Como foi em relação às escolhas de produtores para te ajudar a montar o Zulu Vol., 1? Porque trabalhaste com muita gente diferente.  Se eu te falar que os instrumentais desse álbum… Já os tinhas há décadas? [Risos] Já os tinha há muito tempo! Nem os próprios beatmakers gostavam desses beats. Sempre me diziam, “da hora, vou te mandar outros beats porque eu ’tou com umas paradas mais actuais”. “Beleza mano, mas não quero nada actual. Eu quero isso aqui!” É exactamente isso aqui que traduz toda a atmosfera do que eu quero fazer. Há uma relação de música atemporal porque, como recebi estes beats há muito tempo, há muito tempo que eu olhava para os instrumentais e pensava, “cara, eu vou rimar nesse beat só que eu ainda não sou esse MC que vai rimar nesse beat. Eu preciso me tornar esse MC e, para me tornar esse MC, eu preciso me tornar essa pessoa que vai rimar nesses beats. Mas não dá o beat pra ninguém, guarda a sessão porque eu vou usar ele. Em cinco anos, em sete anos, eu não sei. Mas eu vou”. Sou assim. Recebo o instrumental, vejo potencial nele mas, às vezes, eu não estou preparado para fazer. Preciso melhorar, melhorar o texto, a minha dinâmica, o meu eu enquanto indivíduo. E isso faz com que muitos beatmakers achem que eu nunca mais vou rimar nos instrumentais deles! E quando vêem está no disco. Interessante, isso. Olhas para os beats como uma meta que tens que alcançar. Exactamente. E, às vezes, a galera me manda os instrumentais meio que “não é o melhor instrumental da minha vida”. São todos meus amigos então me mandam isso. “Estou fazendo isso aqui”, falo. “Mas, mano, isso só tem um loop de piano, um bombo e uma caixa”. “Está perfeito para eu colocar o meu texto, pode mandar!” Isso aconteceu na primeira faixa do álbum [Intro 11]. É um instrumental que o Canela produziu. Ele tinha comprado um teclado MIDI novo, com uns kits que ele amava e ele fez aquele beat como teste do equipamento que ele estava usando, e eu falei “essa faixa vai ser minha!”. “Mano, isso aqui não é uma faixa, isso aqui é um teste!” (Risos) E é a faixa onze do meu disco. Abri um disco com um instrumental que ele estava só experimentado num brinquedo novo. A faixa “Não Sei Se Me Ouvem”, também. É um instrumental que o cara me mandou. Pedi a coisa mais esquisita que ele estava produzindo. E aí ele me mandou aquele instrumental que tem caixa trocando para tudo o que é lado e eu disse que queria gravar naquele instrumental. “Mano, é impossível porque eu só tenho MP3” Beleza. Vai o MP3 para o meu disco. Ele não acreditou mas foi. “Sintonize”, também. Tem muita música nesse disco que eu nem consigo definir o que é. Não sei se é trap, se é boom bap. São experimentações que eu estou fazendo para chegar no lugar em que eu quero chegar. Mas sou muito fã de errar. Acho que o processo de erro engrandece muito mais do que ter um objectivo determinado. Errar é uma coisa que faz valer a minha passagem por aqui. Na verdade, quando eu ouvi esse disco, chorei algumas vezes. E não foi de emoção. Chorei porque eu percebi que, mais uma vez, eu estou fazendo um disco que eu amo mas que não vai me trazer porra nenhuma. É um disco que várias pessoas vão adorar mas é um disco que… Vários MCs aqui no Brasil ficam me olhando, tentando entender, porque é que eu estou em tal lugar, se eu não tenho um milhão de views Achas que olham para ti como um alien? Total. Total. “Porque é que ele está aqui? Se ele não faz parte do nosso clubinho. Da galera do hype. Ele não é desse clube”. Só que todos os MCs do clube do hype gostam do disco. Sem excepção nenhuma. Todos chegam e cumprimentam. Eu ouvi, de MC de grande projecção aqui no Brasil, que esse é o disco que faltava. E que ele, a partir de ter escutado esse disco, vai fazer disco também! Porque já tinha desistido de fazer álbum. “Porra, se eu que influenciei ele, gostei do disco dele, esse disco só pode estar bom”. Então acabo num lugar que também inspira o sonho de muita gente que pensa em fazer o trabalho dessa forma. É duro, é tortuoso, teve muita dor, muito sangue derramado, muita lágrima. Mas eu estou no lugar onde eu queria estar. Sempre me imaginei sendo o incómodo perto de artistas que sabem que estão fazendo um trabalho ruim mas que continuam fazendo esse trabalho ruim porque é isso que o mercado precisa. É isso que se faz agora. Então eu sempre quis ser essa pulguinha na orelha desses artistas. E consegui. Porém, eu também preciso ter pretensões maiores enquanto artista e é por isso que eu digo que esse ano vai ser o mais difícil da minha vida. Porque deixei o mercado entrar na minha casa. O mercado entrou na minha casa, ele vai sentar no meu sofá, tomar do meu café e a gente vai ser amigo. Eu preciso ser amigo do mercado porque eu preciso me manter a mim e à minha música vivos. Para isso eu preciso pagar as minhas contas, tirar a minha mãe da quebrada. Eu ainda tenho esses pequenos objectivos que vão para além de salvar o mundo. Além de uma busca conceptual, artística e estética, eu quero que o mercado entenda que isso aqui tem um valor muito grande, saca? Isso aqui é algo que tem um peso muito grande. E me encontro nesse momento no mundo.

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