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Fotografia: João Pedro Moreira
Publicado a: 15/10/2021

Novas vontades.

Jéssica Pina: “Quero que as pessoas façam essa distinção entre a Jéssica trompetista e a Jéssica artista”

Fotografia: João Pedro Moreira
Publicado a: 15/10/2021

O trompete não é um instrumento comum nos dias de hoje, principalmente quando se trata de mulheres que dão que falar no mundo da música, mas há que sublinhar o percurso de uma jovem artista portuguesa em particular. Das deambulações jazz, Jéssica Pina salta, em Vento Novo, para as sonoridades ecléticas do r&b, depois de ter passado pelos palcos mundiais ao lado de Madonna.

Lançado em 2019, Essência foi o seu álbum de estreia e uma homenagem à escola das notas azuis, marcos de uma jornada vincada pela perseverança e pelo rigor. Mas tal como ainda a estamos a descobrir enquanto artista, Jéssica também está nesse processo de descoberta — e aqui volta a dar cartas mostrando novas melodias. 

No EP, o segundo trabalho de estúdio que agora apresenta — e que vai levar até ao Lux Frágil, em Lisboa, a 11 de Novembro –, Jéssica alia o trompete ao canto numa viagem pelas influências naturais da escola funky à actualidade de Jorja Smith. O EP conta com quatro faixas que relatam a sua nova frequência, sendo que o single de estreia tem assinatura de Rita Vian na letra e GroovvBeats na produção.

Depois de umas primeiras palavras trocadas acerca do assunto, o Rimas e Batidas decidiu aferir melhor sobre o que levou a natural de Alcácer do Sal a dar este salto para novas aragens. 



Como é que foi fazer a tour com a Madonna? Segundo nos disseste há algum tempo, foi a partir daí que percebeste que o canto era um elemento também natural da tua musicalidade.

Sim, não foi propriamente ali que eu descobri que eu gostava de cantar ou que era algo que também de certa forma era natural. Mas foi na tour que eu acabei por perder um pouco algum medo ou algum receio, aquele medo de arriscar, aquele medo de fazer coisas novas ou de “e se eu faço uma coisa e não sou assim tão boa naquilo”. Sair da zona de conforto, basicamente foi isso. A tour fez-me conhecer coisas que eu pensava que nem era capaz de fazer ou situações com que lidei e que nem sabia que seria capaz de, se calhar, estar numa situação daquelas. E isso fez me um pouco também abrir a minha mentalidade para arriscar um bocadinho mais e para não ter medo de sair da zona de conforto mesmo que que erre, mas a tentar mais por aí.

Conta-nos um exemplo de uma dessas situações que te tenha posto realmente à prova.

Na tour, todos os dias era uma prova diferente. Desde sabermos lidar com as horas de ensaio seguidas sempre com as mesmas pessoas, às vezes numa sala fechada, num estúdio fechado, o dia inteiro. Saber lidar com “ok, a Madonna agora está ali” e ela no minuto quer ver uma coisa específica. Imagina, ela chega e “olha, agora só gostava de ver X, X, X pessoa a fazer uma determinada coisa” – aquela pressão de “ok, agora vou ter que fazer uma coisa e ela está ali, a apreciar, a ver” e muitos olhos virados para nós. A pressão de estar em cima do palco, já para não falar disso. O medo de “não posso errar, não posso errar, não posso errar, não posso errar” todos os dias. Fizemos quase 80 shows e nesses 80 shows tínhamos que dar o nosso melhor, independentemente de estarmos num dia bom ou num dia mau por ter acontecido alguma coisa. Por exemplo, durante a tour, já no final, eu queimei o pé. Tive um acidente com chá, uma coisa super banal, mas foi uma queimadura grave e foi três dias antes do nosso primeiro show em Paris. Eu queimei o pé, tive que ir ao hospital, tive que fazer todo um tratamento e de repente estava coxa e tinha que fazer o show de saltos altos, com umas botas, e tinha que fazer, aquilo tinha que acontecer e ali eu consegui perceber um bocadinho também o lado dela. Ela também estava lesionada no final da tour, foi público que estava lesionada e eu acabei por perceber um bocado o que é que ela sentia de estar a fazer um concerto daqueles, um show daqueles, do princípio ao fim, com dores. Que foi o que eu senti nessa nessa altura em que queimei o pé. Mas pensei, “se ela está conseguir fazer isso, eu também vou ter de conseguir” e pronto. Foram todas estas pequenas coisas que aconteceram que, de facto, me fizeram perceber que somos muito mais do que aquilo que às vezes pensamos e temos de arriscar e temos de perder o medo para conseguir passar à frente e dar passos maiores.

Então, fazer um EP em que juntas canto e trompete sempre foi um objectivo teu, mas neste momento sentes que era o passo que faltava dar?

Não, confesso que nunca foi um objectivo meu, porque eu nunca pensei que iria ter essa vertente. Ou seja, gosto de cantar, até canto bem mas eu gosto de tocar trompete, o que eu fiz desde sempre foi tocar trompete, então não era uma coisa que eu pensava que ia fazer. Até que pensei que isto era uma coisa boa para mim, porque gosto, é para o meu projecto e estou a complementá-lo. E, então, foi uma coisa que eu percebi, “ok, vou fazer isto, vou tentar”, porque de certa forma vai mesmo dar um up no meu projeto. Não foi uma coisa que tinha como objectivo há muito tempo, mas foi uma coisa mesmo que eu decidi arriscar agora.

Numa conversa anterior, falaste-nos do teu perfeccionismo. Como é que tu achas que o teu perfeccionismo ajudou ou dificultou o trabalho na produção deste EP? De que modo é que se sente esse impacto?

Quando eu falo no perfeccionismo, lá está, entra a parte do medo, associada a esse perfeccionismo. Aquela coisa de quando for fazer, eu não quero fazer mais ou menos. Eu quero fazer o melhor que consigo. Só que também para perder este medo de arriscar, tive que pôr um bocadinho de lado essa coisa de perfeccionismo. Continua a ser um desafio, e continua a ser um bocado, às vezes, sufocante. Mas tenho de perder esse lado e o perfeccionismo tem de ficar, de facto, de parte e entender que as coisas não são perfeitas, as coisas não saem sempre bem e aceitar isso o melhor possível. Quando as coisas correm bem ou quando as pessoas me elogiam e dizem que correu super bem, eu não ligo muito, não dou muito valor. Mas se há coisas que correm mal, uma coisa que aconteceu uma vez em cinco, em dez ou em vinte vezes, eu já fiquei super focada naquele problema e é isso que eu também estou a tentar lidar agora — com o facto de aceitar as coisas quando não correm bem ou aceitar que não é perfeito e pronto. Então, eu também acabo por perceber um bocadinho que o perfeccionismo tem de ficar de lado. Mas continua presente porque quando eu faço, gosto de fazer o melhor que posso mas é tentar um bocadinho recuar nessa perfeccionismo, nessa noção de que tudo tem que ser perfeito. Não tem.

Então, nesta noção de posição de uma mulher na música, sentes que este dar o melhor que se puder, o medo de falhar, é uma coisa que tem mais importância numa mulher artista do que num homem? Achas que é mais fácil ser apontada uma falha a uma mulher do que a um homem na música?

Se calhar não por ser mais fácil de apontar o erro. Mas se calhar, ao primeiro ou segundo erro vai valorizar mais aquele erro, do que se calhar tudo o resto de bom. “Ok, fiz tudo isto bom, mas errei ali”. Não quero estar a dizer que com um homem não seria assim. Pelo facto de ser mulher, o que eu sempre senti foi que tinha que me esforçar mais. Sentia que tinha que me esforçar mais do que um homem no mesmo papel do que eu para provar às pessoas de que era capaz de fazer seja o que for. Neste caso, por exemplo, ter de provar que consigo tocar uma música com uma banda ou de repente chamarem-me para fazer um projeto novo e eu chego lá e sinto que tenho de provar que consigo fazer aquilo, ao contrário de um homem que, se calhar, já seria um dado adquirido que ele conseguiria fazer mais e mais por aí.

Mas depois também há o factor de quando és convidada para um projecto, as pessoas já sabem o teu nível. Sentes que isso mete uma certa pressão ou vês isso como um reconhecimento do teu trabalho e do teu esforço e da tua carreira?

Quando eu fui crescendo no mundo da música e quando fui começando a ser conhecida cada vez mais por pessoas no mundo da música, sem dúvida que comecei a sentir que a fasquia começou a subir. Claro que a pressão já é, “ok há uma expectativa, não posso falhar” e, com o tempo, eu comecei cada vez mais a sentir isso. Tanto que, ao longo do tempo, os meus nervos em cima do palco começaram a aumentar em vez de começarem a diminuir. Ao início eu ia super descontraída, “vou fazer o melhor que posso”. Ninguém sabe se é bom, se não é, vou fazer o melhor que eu posso. Depois começar a entrar essa parte da expectativa e de que tenho que fazer pelo menos por aqui e não posso estar mais abaixo do que as pessoas esperam. Mas também é uma coisa que estou a aprender a lidar, de que não é igual todos os dias, não vão ser todos os dias bons. Vai haver dias menos bons. E o mais importante é o sentir que eu fiz de tudo para que fosse bom. Se não correr bem e eu sentir que não me esforcei, vou ficar mal e vou culpar tudo. Mas se eu sentir que fiz tudo o que estava ao meu alcance para que isto corresse bem e não correu, tudo bem. Vai correr na próxima, é um bocado por aí. Mas, sim, a expectativa das pessoas é uma coisa que me deixa nervosa mas que também é sentido como um reconhecimento. É uma mistura das duas coisas, sem dúvida.

E quando surgiu esta oportunidade de actuar com Madonna, não tiveste dúvidas em aceitar e lançaste-te de cabeça ou ainda pensaste dois segundos?

Pensei e não foi dois segundos, foi mais. Por incrível que pareça, eu hoje se calhar digo isto e fico: “porque é que eu fiz isto?” Mas na altura, eu fiquei com muito medo. Não de fazer a tour e não conseguir corresponder às expectativas dela ou da equipa dela, mas o meu medo era sair daqui e largar tudo o que eu tinha conquistado até agora. Todo o esforço que eu tinha feito para entrar no mercado da música. Todo o esforço que eu tinha feito para trabalhar e para viver disto. Basicamente tinha acabado de lançar o meu primeiro álbum. E estava tudo a acontecer ao mesmo tempo e de repente pensei, “mas se eu vou embora durante um ano, tudo o que eu conquistei até agora vai pelo cano abaixo e vou ter que voltar tudo do zero”. Mas depois contei também com o apoio de toda a gente que me dizia, “vai, vai, vai e ninguém vai esquecer ninguém, vai. Vai ser uma coisa boa para ti, uma experiência que te pode levar para outro nível e que vais levar para sempre’” E a partir daí fui. Já não olhei mais para trás. Mas foi difícil, confesso. Porque tive de largar tudo quase de uma semana para outra. Eu soube pouco antes que ia acontecer. Fui fazer a audição e pensei, “não vai acontecer, vou seguir a minha vida normal” e, de repente, acontece. Dali a uma semana tinha que sair daqui, tinha que desmarcar tudo o que já tinha feito. Foi difícil.



E quem é a Jéssica depois desta tour, depois desta experiência toda, depois deste desafio de largar tudo e ir com praticamente sem expectativas, mas sabendo que seria um passo na tua carreira? E como é que regressaste? Quais é que são as diferenças dentro de ti?

Eu acho que continuo a ser a mesma pessoa com os mesmos objectivos, só que sinto que o que mudou foi de facto a mentalidade e a forma como eu olho para os desafios, como eu olho para as outras pessoas, sem ter constantemente aquela pressão de que eu tenho corresponder às expectativas, que tenho que ser a pessoa que é aquela que aquelas pessoas estão à espera que eu seja. E isso acaba por me limitar e foi o que ela mais me ensinou, a ser eu própria o máximo possível, a não esconder aquilo que eu sinto, não esconder aquilo que eu penso, não fazer aquilo que os outros querem que eu faça. Mas acho que continuo a ser a mesma pessoa e, quando cheguei, aqui, sinceramente, até aos dias de hoje, continuo quase como que a não acreditar que isso aconteceu, ou então não sei bem o que aconteceu. Foi uma tour com a Madonna, acabou, tudo certo. Tanto que, às vezes, as pessoas falam comigo e perguntam-me, “como é que é possível, tu fizeste isso!” E ficam assim deslumbradas e eu fico, “ok, sim, fiz’” Mas vou pensar agora em mim, no meu projeto. Tanto que cheguei e comecei logo a pensar em fazer músicas originais para lançar este EP. E foi mais foi mais por aí. Não, não fiquei propriamente super mega deslumbrada com o que aconteceu.

E agora, neste novo trabalho, nesta nova fase, tu deixas um bocadinho esta característica muito importante do jazz e do improviso. Como é que foi para ti mudares um pouco a sonoridade para algo diferente, que já inclui também o canto, a melodia, que é tua, mas como é que foi esta evolução musical para ti?

Então, o improviso acaba por estar sempre presente. Tudo o que é, por exemplo, a parte de trompete tem partes que são frases feitas, que também surgiram no improviso. Mas há as partes de solo no meio que são imprevisíveis e que se calhar até foram o primeiro take que saiu e que ficou. O improviso está sempre presente, no entanto, o que eu acho que mudou mais, de facto, foi a sonoridade. Já que implica um bocadinho mais de sons acústicos, instrumentos e agora acabo por fazer uma sonoridade um bocadinho mais electrónica. Tem instrumentos, de facto, acústicos, mas tem muito a sonoridade eletrónica e o canto associado e depois o trompete que também não é uma coisa que eu ouço muito por exemplo no r&b. Um trompete assim com uma melodia ou com uma importância, como neste caso, tem. Não é só o instrumento que está a fazer um solo, não é a música complementar mas acaba quase por ter ali um papel equilibrado com a voz, tão importante como a voz em que o objectivo também é que aquele som do trompete, aquelas frases acabem por fazer parte da música e não apenas um solo de improviso.

Então, era esse também o meu objetivo, conseguir nivelar as duas coisas: o trompete e a voz. Terem uma importância mais ou menos equilibrada e a sonoridade algo mais eletrónico. O beat ser uma coisa mais programada em vez de ser instrumentos acústicos mas depois ao vivo vou fazer com instrumentos acústicos, que também vai ter uma certa graça, porque às vezes temos que nos conter para tocar ao vivo. Vai ser diferente, vai ter um arranjo, uma coisa melhor até do que eu queria já fazer nas gravações. Acabo por misturar e continua a influência do jazz. mas com um bocadinho mais R&B ou eletrónica misturada.

É interessante porque a essência do jazz é a constante mutação da música e tu fazes isso. Esse teu lado acaba por incorporar uma nova faceta ou é uma evolução, são duas Jéssicas ou é uma Jessica mais à frente, que quer experimentar mais coisas?

Acho que são fases diferentes, nem é a mesma Jéssica e eu continuo a olhar  para o meu outro álbum e a gostar daquilo que oiço, mas é uma fase diferente. É uma fase diferente da minha vida que, neste caso, vai ser reflectida neste EP, com influências diferentes. Na verdade, quando eu fiz o meu primeiro álbum, eu já gostava muito e já me identificava muito com o r&b, a música mais americana e africana. Só que eu sentia que também tinha de dar um pouco porque jazz mais clássico é uma ferramenta super importante, uma ferramenta mesmo incrível, que eu vou ter sempre também para evoluir. Eu senti, e na altura estava a estudar jazz, que aquilo era o que fazia sentido no momento. Mas já estava com a minha cabeça a pensar no próximo. Acho que são fases diferentes, não é uma evolução de mim própria, porque também se voltasse ao jazz “clássico” podia continuar a evoluir, não é? Mas é uma fase diferente.

Neste novo trabalho, o single de estreia do EP conta com a letra da Rita Vian.

Exactamente, fiz o “Tempo Novo” com ela.

E como é que foi trabalhar com ela?

Então, quando eu comecei a trabalhar neste EP, tinha dúvidas se eu ia escrever em português ou em inglês ou nas duas línguas. Tanto que ”Tempo Novo” nem foi a primeira música que eu fiz, a primeira até acho que foi em inglês. E depois queria arriscar também cantar em português. No entanto, eu tenho a noção que em português é muito mais difícil de escrever. Então, eu tinha a música, tinha a melodia toda na minha cabeça mas não estava a conseguir encaixar uma letra porque a melodia também não era propriamente fácil para encaixar uma letra e muito menos em português. Sinto que em português é muito mais difícil de descrever e aplaudo todos os escritores portugueses, porque eu acho que é mesmo muito mais difícil escrever em português e que soe bem, que soe com conteúdo, para não ser super vazio. Então, a Rita ajudou-me nesse aspecto. Eu mandei a melodia e ela em três tempos escreveu uma música com uma letra que depois acabou por encaixar super bem naquilo que é, de facto, este EP, que é um evento novo, que é algo novo. Aquilo que eu sou nesta nova fase, o Vento Novo, uma coisa diferente, uma artista nova neste mercado de cantar, mais assumidamente com voz nova, uma sonoridade também diferente. Então. a letra acaba por encaixar super bem. Ela descreveu super bem aquilo que é este novo EP.

Podemos dizer que este EP acaba por ser um purgar de várias emoções sentidas ao longo deste último ano?

Sim, sim, são sem dúvida.

E no que toca aos próximos passos, por onde é que queres ir e onde queres chegar?

Eu gosto de pensar passo a passo. Gosto de pensar devagar para não criar muitas expectativas e depois não acontecer. Sou assim um pouco pés na terra, às vezes até demais. Mas o que quero agora é singrar no mundo da música enquanto artista individual, quero fazer as pessoas distinguir a Jéssica trompetista da Jéssica artista. Não é que sendo trompetista não seja artista na mesma, mas é diferenciar esse papel de Jéssica que acompanha outros artistas para a Jéssica artista em nome próprio. Quero pisar, e, felizmente, já pisei, palcos com o meu projeto pessoal. Quero continuar a fazer com que isso aconteça cada vez mais e quero que as pessoas façam essa distinção entre trompetista e artista.


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