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Ilustração: Rita Magdala
Publicado a: 30/03/2021

Falámos com Jéssica Pina, Susana Santos Silva, Sara Serpa, Beatriz Nunes e Inês Homem Cunha sobre as vicissitudes de se ser mulher no mundo do jazz.

As mulheres do jazz e as notas infinitas pela igualdade

Ilustração: Rita Magdala
Publicado a: 30/03/2021

“Um homem negro idoso está montado num grande tambor cilíndrico. Usando os dedos e a ponta da mão, ele golpeia repetidamente a cabeça do tambor — que tem cerca de 30 centímetros de diâmetro e provavelmente é feita de pele de animal — evocando uma pulsação latejante com golpes rápidos e afiados. Um segundo baterista, segurando o seu instrumento entre os joelhos, junta-se a ele, tocando com o mesmo ataque staccato. Um terceiro homem negro, sentado no chão, dedilha um instrumento de cordas, cujo corpo é aproximadamente feito de uma cabaça. Outra cabaça foi transformada em tambor e uma mulher bate nela com duas baquetas curtas. Uma voz, depois outras vozes se juntam. Uma dança de aparentes contradições acompanham esse dar e receber musical, um hieróglifo em movimento que aparece, por um lado, informal e espontâneo, mas, ao olhar mais de perto, ritualizado e preciso. É uma dança de proporções gigantescas. Uma multidão densa de corpos escuros se forma em grupos circulares — talvez 500 ou 600 indivíduos movendo-se no ritmo das pulsações da música, alguns balançando suavemente, outros batendo os pés agressivamente. Várias mulheres do grupo começaram a cantar. ”

Um homem, um segundo homem, um terceiro homem, e, ah!, uma mulher. Parece uma anedota, mas não é. É assim que começa a história do jazz segundo Ted Gioia. Numa cena que o historiador descreve como “o século XIX em Nova Orleães”, sobressai a instauração de uma desigualdade latejante e perpétua de um género que sofreu mais mutações que qualquer outro. Definir o jazz é como definir uma variável biológica dependente de mutações genéticas e manifestada em organismos complexos — se a música não é para ser explicada e talvez sentida, o jazz é, então, a representação deste imaginário cliché. Na sua essência, sendo o jazz, e para simplificar ao extremo, a soma inevitável da melancolia do blues e da vibrante harmonia do ragtime, é, sobretudo, o resultado da (des)harmonia da expressão individual — em que a participação feminina tem sido largamente ignorada ao longo da sua narrativa histórica. Inevitavelmente surge a questão: no descompasso entre o normativo e o excepcional ou no improviso do mérito e da criatividade?

Em 1996, Billy Taylor sugeriu a criação de um festival feminino de jazz, uma forma de homenagear uma das mais influentes artistas jazz de todos os tempos — artista enquanto termo sem género associado –, e eis que apareceu a pergunta: “haverá mulheres suficientes para actuar no evento?”. Desde então, o Mary Lou Williams Jazz Festival junta anualmente as clássicas e as emergentes mulheres do mundo do jazz, e tem por objetivo celebrar a criatividade e a pegada feminina no género. Ainda que essa presença nunca tenha sido estranha — não esquecendo que a descrição de Gioia concede à mulher um papel de instrumentista desde a sua fundação — a sua credibilidade, o seu reconhecimento e a sua representatividade são, ao longo do tempo, questionáveis. Para Beatriz Nunes, cantora e autora do estudo O Impacto do género na aprendizagem de improviso jazz, “a ausência de modelos femininos no jazz contribui para uma menor identificação de potenciais alunas, com um impacto significativamente negativo sobre a sua motivação para escolher esta opção académica” o que resulta num problema “complexo e circular”. Além disso, a escolha do instrumento, ainda que pareça uma trivialidade, é também um factor embaraçante para a presença feminina, fortemente relacionada com representações sociais pré-estabelecidas, uma vez que a distinção dos instrumentos é feita entre feminino e masculino. “Crenças sobre os papéis de género na produção artística poderão estar ligados a uma aprendizagem social e a uma replicação daquilo que têm sido as narrativas históricas da arte”, realça. Embora esta vinculação se encontre na arte no geral, para Beatriz Nunes as narrativas históricas da música “têm promovido estereotipias sobre os papéis de género, e particularmente favorecido um em detrimento do outro”. Se percorrermos a história do jazz, os nomes femininos existem, sim, nomeadamente reconhecidos em instrumentos dos quais se esperava uma sensibilidade pré-estabelecida. “As normas sociais que regulavam a ideia sobre o feminino conduziam as mulheres a participar enquanto cantoras, pianistas e professoras” e de acordo com essa ideia podem sublinhar-se os nomes de Ella Fitzgerald, Nina Simone e tantas mais que contaram histórias sobre tudo e nada, mas cuja função foi maioritariamente vista como secundária — quase que de entertainers só — e não como líderes e cabeças pensantes destas bandas de tamanhos por vezes orquestrais. Beatriz Nunes explica ainda que “esta esterotipização da participação feminina também tem a ver com a objectificação da mulher, do corpo da mulher, do papel da mulher como entertainer, que acaba por relegar a participação feminina para um tipo de performance que não é aquele que é historicamente mais valorizado: a questão da improvisação, que é central”, para além de que existe a ideia pré-concebida de que a voz não é considerada um instrumento, levando os próprios artistas a crerem que são domínios distintos, a “ideia de que há uma ligação do canto ao corpo, como uma coisa da natureza, que é intuitiva e depois, há o domínio do instrumento, que é algo mais tecnológico… o domínio sobre a natureza … mas esta ligação da voz a um aspecto quase de intuição na sua prática leva a uma percepção errada de que é uma pratica com menos valor”.

Durante muitos anos, a imagem feminina na história do jazz foi definida como um elemento decorativo e acessório do empoderamento masculino, tal como acrescenta Nunes: “a presença das mulheres nesta narrativa histórica serve sobretudo um propósito de representação e valorização das características de masculinidade e heterossexualidade dos músicos de jazz”. Na perspectiva da trompetista Susana Santos Silva trata-se de uma “questão de números e não de credibilidade”. Surgem, uma vez mais, as razões sociais, já que “é muito necessário que a sociedade evolua e se liberte das velhas tradições patriarcais. A minha realidade nos últimos anos mudou consideravelmente, mas, em Portugal, infelizmente, o número de mulheres no jazz é ínfimo e parece não estar a mudar. E depois, claro está, há as entertainers, e isso é outra coisa, embora igualmente válida”.

Mas à margem da regra está a exceção. A instrumentalização feminina no jazz é uma constante que remonta aos primórdios do jazz, nomeadamente durante a Segunda Guerra Mundial. Quando os maridos trocaram os palcos pela trincheira, foi a vez da mulher assumir o esforço de guerra não só no meio laboral como no meio musical, surgindo bandas completas de mulheres, do piano ao trompete, passando pelo saxofone e o contrabaixo. Contudo, o seu reconhecimento enquanto artistas tem sido uma luta igualmente constante e difícil de quebrar. 



Todos os anos saem inúmeras listas e listinhas que dizem quem foram os melhores do ano, de mil e uma maneiras diferentes: álbuns de estúdio, artistas (nacionais e internacionais), sideman, artista revelação… tudo parece ser um pretexto para somar votos e chegar a uma conclusão consensual: o melhor dos melhores. E, ainda que cada vez mais, surjam nomes de mulheres nestas listas, estes são normalmente considerados “excepcionais”. Esta relação quantitativa e qualitativa sugere uma participação (ainda que binária) igualitária entre homens e mulheres, mas em que apenas uma pequena amostra feminina é reconhecida. Contudo, este selo de aprovação insinua o que a própria palavra demonstra: uma anormalidade à regra. Regra esta que é estabelecida com base em expectativas masculinas ou outras excepções femininas que marcaram a história do jazz. “Só para começar, quem faz as listas são homens. Portanto, temos sempre de questionar quem são os produtores das narrativas. Nós temos narrativas e estas narrativas são produzidas por um centro, que é quem tem o discurso dominante. Ora, as mulheres neste centro são marginais”, explica Beatriz Nunes.

Em 2002, Lucy Green demonstrava que a escolha dos instrumentos por parte dos alunos de jazz está associada à categorização pré-concebida de género a determinados instrumentos: por norma, às alunas são-lhes associados instrumentos clássicos como piano, violino, violoncelo e flauta. A faculdade de mostrar maior sensibilidade, e uma maior tendência para a delicadeza, segundo Green, faz com que os professores identifiquem “as raparigas como menos confiantes na performance musical em relação aos rapazes, porém mais maduras no seu comportamento na sala de aula, mais trabalhadoras e responsáveis”, o que para Beatriz Nunes comprova as “expectativas socialmente aprendidas em relação ao género e ao ensino de música”. “É preciso ter uma mulher não só em primeiro, mas em oitavo, em décimo e em vigésimo quinto [lugar]. É preciso uma distribuição igualitária, caso contrário, as mulheres no topo serão sempre uma excepção”, defende Ann Powers, crítica da NPR. Face à questão do reconhecimento comparativo, Jéssica Pina, trompetista, conta que dava por si “a pensar ou a pôr em causa os elogios” que lhe eram endereçados e depois questionava: “‘se fosse homem as pessoas elogiariam da mesma forma?’ Com o tempo percebi, e cada vez mais percebo, que sendo mulher eu tenho a capacidade de fazer diferente, especial, de sentir de outra forma e transmitir essa ideia. As mulheres não têm que ser iguais ou melhores que os homens, somos diferentes, sem dúvida”. Referindo-se a esta lista de 2020, Inês Homem Cunha, presidenta do Hot Clube de Portugal, justifica a falta de representatividade feminina devido ao “preconceito enraizado no que diz respeito à profissão de músico” sendo que “as mulheres são duplamente prejudicadas” e afirma que com o aumento do número de “mulheres a entrarem nas escolas de música, não serão precisos muitos anos para que a situação se regularize, ou até se inverta”. Com esperança, Beatriz Nunes conta que o importante está também na criação de narrativas femininas, seja através de estudos, de opiniões e, mais importante, reconhecimento: “este ano, pela primeira vez, nós e outras mulheres do jazz temos colaborado num grupo informal em que temos discutido estas questões, e reparámos com optimismo que a jazz.pt, que faz todos os anos uma lista de jazz, identificou a Sara Serpa como músico do ano, mas temos de pensar o que é que a Sara Serpa teve de provar para poder conseguir esta distinção”.

Porém, a falta de representatividade feminina no jazz começa desde cedo no percurso musical: “as desigualdades de género no mundo da música jazz acontecem logo na adolescência, em que se constata que as raparigas desistem das aulas numa percentagem muito mais elevada que os rapazes. As que conseguem manter-se têm que enfrentar vários obstáculos: falta de representação (ser a única mulher numa sala, num ensaio, numa digressão), sexismo, desigualdade de oportunidades em relação aos seus pares masculinos, e desigualdade de salários”, explica Sara Serpa. Para a cantora e compositora, a base deste problema sistémico está associado a “uma indústria completamente masculina em relação a lugares de poder (curadores, críticos, managers, agentes). Para mim, as mulheres que sobrevivem a tudo isto são mais que excepcionais”. E se normalmente o jazz para um homem pode girar à volta de uma luta racial, a luta por um lugar criativo para as mulheres contém uma camada suplente, a de género: “As mulheres sempre estiveram presentes no jazz, principalmente as mulheres negras. O facto de não serem conhecidas tem mais a ver com o sistema patriarcal e racista que domina o music business, que as torna invisíveis quando não correspondem ao ideal feminino. Na minha experiência, vi muito mais músicos medíocres terem sucesso por serem homens do que por serem mulheres.” 

Quanto à questão da excepcionalidade, Susana Santos Silva descarta a necessidade de comparação: “As mulheres que são excepcionais são excepcionais, independentemente de qualquer comparação de género. Mas, de qualquer forma, o que é que isso significa mesmo? Acho que comparações não são necessárias. Há quem diga que isso acontece, há quem diga que as mulheres para serem tão reconhecidas como os homens têm que ser melhores do que eles”. E explica ainda que “o mérito, especialmente na cultura, é um conceito relativo. Há muitos homens considerados excepcionais que talvez não o sejam. O mesmo deve acontecer com as mulheres. Isso não é importante. O importante é perseverar e fazer um trabalho em que acreditamos e ao qual nos dedicamos totalmente sem restrições.”

Após uma relação que se desenvolveu naturalmente com o jazz — exactamente pela liberdade musical e individual –, Jéssica Pina explica que na altura da primeira abordagem com o jazz nunca sentiu “nenhuma dificuldade por ser mulher. “Nunca pensei nisso como um obstáculo, porque não o é. É algo incomum, diferente, mas não traz nenhuma dificuldade física associada”. Mas realça que “a única barreira que possa ter sentido em relação a ser mulher relacionou-se com aspectos sociais”.



O paradigma complexifica-se uma vez que se tenta procurar a ponta do ciclo vicioso que a criação destas listas acabou por se transformar. O debate crítico e a procura por consensualidade tornaram-se questionáveis uma vez que, em primeiro lugar, os críticos fazem parte da mesma classe social, da mesma etnia e da mesma região geográfica, desfavorecendo a criação de um espaço de debate entre novas perspectivas; em segundo lugar, a questão da tendência — o que se deve ou não ouvir –, visto que são os críticos que dão o selo de aprovação de x ou y banda e artista; em terceiro e último lugar, a questão das promotoras, que dão de comer aos órgãos de comunicação musical, formando um loop que valida e promove a visibilidade de futuros trabalhos dos mesmo artistas e, porventura, perpetua o mito da meritocracia. Para Sara Serpa, escrever sobre mulheres não é exclusivo para críticas femininas: “acho que os críticos masculinos têm essa responsabilidade também. Acredito que o paradigma tem que mudar, enquanto forem só homens a definir quem merece aparecer numa publicação, num festival, num clube, as visões serão limitadas e exclusivas”. Na mesma linha, Santos Silva não vê a resolução do problema com o aumento do número de mulheres críticas, uma vez que o problema “tem a ver com a nossa sociedade conservadora e subdesenvolvida. Eu gostava de ver mais mulheres críticas, e acho que isso seria muito positivo para a ‘cena’ em geral, talvez para as mulheres em particular…”

Beatriz Nunes realça que os modelos patriarcais podem ser replicados por homens e por mulheres e que isso “ajuda-nos a perceber que isto não é um discurso contra homens, ou seja, não é uma personalização, é uma coisa contra um tipo de pensamento, neste caso o patriarcal”, dando ainda um exemplo de como este paradigma pode ser alterado, não só como uma luta exclusivamente feminina: “tens na lista da jazz.pt deste ano, um homem, o José Dias, que é investigador no Manchester Metropolitan University, que se dedicou a fazer uma lista de melhores do ano, só exclusivamente de mulheres. O que quero dizer é que, por um lado, acho muito importante haver mulheres, e sem dúvida que sim, vai ser diferente teres mulheres a participar, a produzir discurso… mas também é muito importante os homens entenderem que são uma chave nesta questão, é importante que sejam aliados e que deem espaço para a participação das mulheres e visibilidade”.

Às duas problemáticas anteriores junta-se a questão do acesso ao jazz, que para Serpa “é limitado”, explicando que “em Portugal faltam mulheres em todos os campos, como alunas, professoras, instrumentistas, produtoras, engenheiras de som, críticas de música, curadoras ou diretoras artísticas. Associe-se o sexismo ao racismo e constatamos também uma ausência assustadora de mulheres negras no meio do jazz, que reflecte todo o trabalho que existe por fazer para que todas tenham igualdade de acesso e oportunidades”. Em Portugal, onde apenas 0,21% do Orçamento de Estado de 2021 vai para a cultura, e os acessos à música se tornam cada vez mais escassos, o Hot Clube Portugal consagra-se como um dos mais antigos clubes de jazz da Europa, que, para além de espaço de promoção e partilha do género, desenvolveu igualmente um espaço académico que conta com cerca de 360 alunos. “A integração das mulheres no universo HCP tem sido natural e correspondido à vontade de quem nos procura”, refere Inês Homem Cunha, presidenta do HCP há 12 anos, que considera este feito como uma possibilidade de “não só ser um exemplo como contribuir para que essa integração seja cada vez mais significativa”.

Beatriz Nunes ressalva ainda no seu estudo que o acesso é dificultado também através de problemas sociais individuais, pelo facto de “o género feminino demonstrar uma tendência superior para se identificar com experiências de ansiedade e falta de confiança sobre as suas capacidades no contexto da aprendizagem de improvisação jazz”, o que eventualmente poderá resultar num “profundo impacto negativo sobre a aprendizagem de improvisação, desde a rejeição imediata da aprendizagem, do abandono da área de estudos do jazz à ausência da sua prática no futuro profissional e artístico”. O que leva a um impacto directo e pejorativo na carreira individual das artistas: a falta de exposição e o fechar de portas a novas possibilidades de colaboração e partilha musical, assim como a criação de novas vertentes do jazz contemporâneo. Para Jéssica, o acesso ao jazz, principalmente “a escolas, instrumentos, professores e salas, é sem dúvida super importante para uma carreira artística. No meu caso, se eu não tivesse tido essas oportunidades, não teria descoberto a música, o dom e o prazer que ela me dá. Nem toda a gente tem esses acessos e muitos músicos que se poderiam tornar incríveis acabam por desistir por não conseguirem suportar esses acessos. As oportunidades especificamente para as mulheres não estão, a meu ver, limitadas a nível dos acessos mas podem muitas vezes estar dificultadas pela sociedade que acaba por rotular e desvalorizar o género feminino”. No ponto de vista de Sara, “cada carreira é diferente”, e a artista defende “que o processo de profissionalização de músicos passa por várias etapas: educação, prática, e acesso a festivais, financiamentos e digressões” e crê que é necessário “identificar onde há desigualdade de género e raça/etnia e criar iniciativas específicas que se foquem nessa desigualdade. Expor os dados estatísticos ajuda sempre. Tem que haver uma vontade institucional de criar novos paradigmas e mais apoios às poucas organizações de músicos que existem em Portugal, que estão em melhor contacto directo com o que se passa no terreno”.

No que toca ao reconhecimento em Portugal, Sara não vê uma forte correlação entre a aprovação estrangeiro para obter o reconhecimento nacional, mas justifica a saída de artistas portugueses pela falta de “espaço, visibilidade, oportunidades, apoio no seu país para desenvolverem a sua visão artística”, sobretudo para o jazz, que não é um género de massas mas requer oportunidades de criação e partilha. “Para mim o importante é definir reconhecimento — se significa aparecer no jornal mas não ter concertos, então há algo que não está a funcionar. É importante fomentar a criação e, mais ainda, será criar incentivos para manter e apoiar os clubes e salas que existem para se ouvir esta música”, defende. Contudo, para a presidenta do HCP, “o crescente do número de instituições de ensino do jazz que têm aberto em Portugal tem promovido um maior acesso e contribuído para um conhecimento mais informado”, mas confirma que as barreiras encontradas por uma mulher no mundo do jazz “são as mesmas que encontra em todas as actividades, agravadas pelo facto do jazz ser um mundo tradicionalmente de homens e pelo facto de as mulheres terem desempenhado papéis de menor relevância durante muito tempo”.



O ponto de viragem para o reconhecimento feminino passa, para Jéssica Pina, por uma mudança de perspectivas, indo mais além do próprio jazz: “se a sociedade fosse mais open minded, menos machista e se as próprias mulheres se ajudassem mais entre si e se os homens fossem capazes de respeitar, admirar e enaltecer o empoderamento feminino. As mulheres devem, sim, ser críticas com elas próprias e acreditar que são capazes de qualquer coisa. Cada vez mais as mulheres estão a mostrar ao mundo que somos tanto ou mais capazes de qualquer função e na música cada vez mais aparecem grandes músicos femininos”.

Susana Santos Silva acentua que “são necessárias gerações para se conseguir mudanças consistentes” nas mentalidades que perpetuam as crenças de género e acha que “já devíamos estar longe destes problemas, mas claro que para os ultrapassarmos temos que falar deles”. “Mas a mim parece-me sempre que falamos e os tentamos resolver em fases demasiado tardias do processo e em subsistemas paralelos às grandes questões. Enquanto a mulher continuar a existir neste contexto machista, patriarcal, católico e submisso em que a nossa sociedade ainda assenta vai ser impossível mudar estas outras questões de alguma forma mais simples e secundárias. (…) Vivi estes problemas de perto enquanto cresci, a minha mãe foi a super heroína que muitas mulheres são obrigadas a ser, o tipo de heroína que nunca será a pianista que um dia sonhou. E embora pareça que vivemos numa sociedade muito diferente da geração desse tempo, continuamos mais próximos do que gostamos de pensar. Eu vejo isto com uma perspectiva de quem vive na Escandinávia, onde a realidade é muito muito diferente, para além do facto de nunca ter compreendido ou aceitado as tradições que tendem a paternalizar e emprisionar as mulheres (embora, também eu tenha caído em armadilhas sociais sem ter dado por ela)”. Para si,  “um dos grandes entraves à mudança é não haver uma consciência clara de que estes problemas existem. As mulheres são, também elas, culpadas de perpetuar estas tradições e costumes, muitas vezes porque nem se apercebem de que eles são de facto um problema. Até que alguém faz algo destemido e corajoso que começa a mudança.  Eu tive que comprar algumas guerras pelo caminho… e ser muitas vezes a ovelha negra, mas também tive sorte, muitas não têm”. Por sua vez, Inês Homem Cunha ressalva que o principal mecanismo para fazer face às dificuldades da representatividade feminina no jazz é a “educação, educação e educação. De músicos, mas também de públicos. O preconceito só se combate com a educação”. Principalmente no meio da indústria musical no geral, Cunha salienta que “o que é de analisar é o que é que a indústria procura nas mulheres, sobretudo na música pop. Será que as mulheres músicos sentem que é suficiente a sua capacidade de criar, compor, interpretar?”

Sorte ou não, a desigualdade de género, apesar de ser um problema sistémico desde a sua génese, persiste actualmente no jazz pela falta de representatividade feminina, criando um paradoxo face às características do género enquanto forma de emancipação étnica, de luta pela liberdade de expressão musical e individual e, por sua vez, impossibilitando as oportunidades de expansão do jazz a novos caminhos criativos. Enquanto a mulher não for vista como elemento igualmente criativo, sem barreiras de género pré-concebidas, a evolução do jazz, e das restantes artes, continuará a auto-limitar-se, restringindo-se a moldes masculinos e heteronormativos.

Que as notas azuis se cinjam realmente a ser o que deveriam ter sido desde o início: uma forma de expressão da luta individual e colectiva, com propósito e criatividade, como meio de celebração e modo de reivindicação. Que o jazz conceda às mulheres o que as mulheres têm vindo a conceder ao jazz: uma porta de percepções infinitas. 


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