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Fotografia: Beatriz Blasi
Publicado a: 01/04/2023

Explorar o lado frágil de Deusa Náusea em palco.

Inês Malheiro: “Tem que ver com energia, não com notas certas ou erradas”

Fotografia: Beatriz Blasi
Publicado a: 01/04/2023

Inês Malheiro vai canalizar a sua Deusa Náusea hoje, às 19 horas, na Igreja do Colégio, em Ponta Delgada, num espectáculo inserido na programação deste ano do Tremor.

A artista conversou um pouco com o Rimas e Batidas em vésperas de se mostrar ao vivo num estado de assumida “fragilidade”. No programa oficial do festival, explica-se que “desde 2018, Inês Malheiro tem vindo a construir um repertório a solo que tem como matéria-prima uma voz criadora de narrativas sonoras”.

“A The Endless Chaos Has an End, uma série de músicas lançadas no SoundCloud, juntam-se liquify, spread and float, um álbum-performance improvisado ao vivo e editado no início de 2022, e projetos como a sonoplastia de Práticas Laboriosas do Enxofre(2022), Canal-Conduto (2020) com Gonçalo Penas, e Organismus Kathársis, co-criado com Francisca Marques e apresentado no Lisboa Soa”, adianta-se ainda. “Deusa Náusea, o seu mais recente álbum lançado em outubro do ano passado, oscila entre o sonho fragmentado e o pesadelo febril, explorando a mente e o subconsciente através de sonoridades espectrais de beleza sublime e vozes cortadas que compõem a banda sonora dos nossos episódios oníricos”. Ou seja, promete.

Descontraída, generosa, solta e divertida, Inês fala de forma transparente e até algo desarmante sobre a sua arte que é nova e merece toda a nossa atenção.



Já reparaste que as deusas estão na ordem do dia? Os Fumo Ninja cantam a “Chapada da Deusa”, a Margarida Campelo usa a palavra para titular um trio de interlúdios no disco dela e tu nomeias o teu novo projecto com a expressão Deusa Náusea. Qual o significado disto?

Bem, eu cheguei a Deusa Náusea por um jogo de palavras. Mas penso que não tinha essa consciência de que havia mais gente nessa procura do uso dessa palavra. No meu caso foi mesmo algo que nasceu de uma brincadeira com essa ideia de divindade e a sua desconstrução através do contraponto com a palavra “náusea”, e também se dá o caso de haver uma certa consonância fonética. Funcionam bem em conjunto.

Já te conhecia do projecto que lançaste na Carimbo Porta-Jazz, mas este disco aponta numa direcção muito diferente. Musicalmente falando, onde é que arrumas esta Deusa Náusea?

Não sei, é um pouco difícil pensar no que faço nesses termos: vou fazendo as coisas sem pensar muito em classificá-las. O projecto da Porta-Jazz nasceu de um convite, de uma encomenda. Foi uma experiência que aconteceu naquele momento e em que eu, na verdade, nem tinha pensado antes. Interessa-me aquela abordagem, mas não era algo que eu tinha pensado fazer. Digamos que foi um acidente feliz. Este álbum… bem, eu desde há uns anos a esta parte que tenho vindo a fazer experiências, em casa, com vozes e gravações perdidas e este projecto foi um bocado a organização dessas coisas num disco, a tentativa de lhes conferir alguma coerência.

Gosto da expressão “gravações perdidas”. Importas-te de a explicar?

Bem, uma coisa interessante acerca deste álbum é que eu comprei um microfone muito bom para eu gravar — um Neumann, caro. Foi mesmo um investimento que eu fiz para que as coisas em que eu estava a trabalhar soassem bem. Depois, na altura em que começámos a misturar o disco, comecei a aperceber-me que boa parte das gravações que usei foram afinal de contas feitas com o telemóvel. Gosto da liberdade que isso me dá, de estar na rua e ter uma ideia e gravá-la logo. E depois gosto muito de arrastar essas gravações para o computador e começar a tentar perceber o que acontece se as esticar, se as encolher, se as inverter, se mudar o pitch. E acho que o álbum acaba por ter imensas coisas que vêm desse lugar mais relaxado. Numa das músicas ouve-se a voz da minha mãe no início, porque aparece numa gravação de quarentena em que eu estava a tentar tocar numa guitarra – que é algo que eu não sei fazer. Era uma guitarra do Pingo Doce [risos]. Essas coisas vêm todas desses sítios um pouco mais… mundanos, não sei… Por isso é que me refiro a estas coisas como gravações perdidas.

Encontras conforto na imperfeição, é isso?

Sim [hesitante]… Isso vem desde o tempo em que comecei a estudar música. Para mim, a técnica é um meio para chegar a algo. Ou seja, se para chegar a algo for necessário a técnica sofrer, isso a mim não me faz qualquer tipo de confusão. É uma discussão que está sempre em cima da mesa. Isso aconteceu ao fazer o álbum. Por exemplo: ter uma gravação que já fiz há muito tempo e que se percebe estar desafinada, o que me obriga a refazê-la, refazê-la, mas nada vai soar a esse tal take original. Tem que ver com energia, não com notas certas ou erradas.

Bem, já o Jorge Lima Barreto defendia que “a afinação é um conceito pequeno-burguês”…

[Risos] Gosto e subscrevo.

Tu estudaste jazz, certo?

Sim, na ESMAE, no Porto. Sou de Braga, onde comecei por estudar piano, e estudei Canto Jazz no Porto, onde vivo actualmente.

Quais são as tuas referências nesse campo? Refiro-me à voz enquanto ferramenta de expressão artística…

Confesso que me afastei disso nos últimos tempos, das referências apanhadas na escola. Para mim, actualmente, as referências encontro-as noutros géneros musicais. Já não me cinjo tanto ao campo do jazz. Fui-me desligando um pouco disso. Talvez uma consequência da pandemia…

E de que nomes te acercaste? Meredith Monk…

Sim, a Meredith Monk fez parte dessa investigação, bem como a Laurie Anderson, também, sobretudo na sua dimensão performática. Também posso incluir aí uma cantora que fui ver há dias…

A Cécile Mclorin Salvant?

Exactamente. Mas fiquei… com “mixed feelings” [risos].

Então?

Porque eu descobri-a quando tinha uns 16 anos e ela foi muito importante para mim enquanto estive a estudar jazz. Mas este concerto dela que vi agora foi [hesita]… demasiado… tradicional. Para mim, pelo menos. Mas guardo-a com carinho nessa memória do meu percurso.

Não consegui ver e gostaria de ter conseguido. Optei por ver a apresentação do novo disco do Tó Trips na mesma noite em que ela passou por Lisboa.

Boa escolha. Eu acho que é um bom concerto, que merece ser visto. Estes meus “mixed feelings” têm só que ver com o “lugar” em que me encontro agora.

Compreendo. Olha, e para terminar, como é que resolves a Deusa Náusea em palco? Imagino que a abordagem tenha que ser bem diferente da que tiveste a fazer o disco…

Sim. Para mim foi um desafio e assumo perfeitamente que o trabalho que fiz em casa foi uma coisa e que ao vivo precisa de ser outra. Foi importante para mim estabelecer isso. Ao vivo, portanto, acaba por ser uma coisa mais frágil. Não sou muito fã de ir lançando samples, prefiro estar a fazer som em tempo real, de brincar com isso, de procurar uma certa imprevisibilidade. E portanto, o concerto acabou por ficar mais frágil, com mais voz. Está bem diferente do disco. Está mais… Bem, acho que “frágil” é mesmo a palavra certa.

E que levas para cima do palco? O teu precioso Neumann?…

Sim, levo o meu Neumann, o Ableton Live, uso um controlador, o que me liberta de olhar para o computador, o que é óptimo. É isso… Ah… uso também um Casiozinho pequenino, claro.


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