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Ilustração: Carlos Quitério
Publicado a: 17/08/2022

O jazz em primeiro plano.

Notas Azuis #104: Especial Carimbo Porta-Jazz 2022 – parte 1

Ilustração: Carlos Quitério
Publicado a: 17/08/2022

Na coluna Notas Azuis vai abordar-se jazz, música livre, música improvisada de todas as eras e nacionalidades, editada em todos os formatos.



[Gianni Narduzzi] Dharma Bums

Em 1958 a América era, em muitas coisas, um bicho diferente (e em tantas outras a mesma “besta” que hoje todos reconhecemos). Nesse tempo o jazz atirava-se de olhos fechados no abismo do futuro, sem outro pára-quedas que não fosse o do seu próprio espírito de aventura manifestado numa insaciável sede de invenção. Os escritores que traduziam em palavras essa ânsia de mudança sabiam que era essa a única banda sonora a que poderiam confiar os filmes dos seus pensamentos. E Jack Kerouac era um deles: nos angulares solos do bebop, Kerouac e outros companheiros da sua “geração beat” encontravam o pulsar da sua própria inventiva vertigem de escrita, pensamento em acção instantâneo, com as mãos a guiarem as canetas da mesma forma que as de Monk ou Miles guiavam os sons que pareciam nascer de uma funda fonte sem nascente ou foz, um incessante fluxo que também equivalia a urgência de vida.

The Dharma Bums foi o livro que Kerouac lançou após On The Road. Parte romance, parte fiel relato de memórias, nessas páginas o escritor procurou pensar sobre o seu próprio lugar na América enquanto tentava encontrar no budismo uma outra ordem para a sua estranha vida, desencaixada dos valores então dominantes de uma sociedade em aceleração desenfreada para o modelo capitalista voraz que hoje conhecemos. Dharma Bums inspira-se no livro de Jack Kerouac e talvez lhe capte o mesmo sentido de maravilhamento e demanda. Gianni Narduzzi, contrabaixista italiano baseado em Basel, na Suíça, cujas ligações à cena jazz nacional (integra a Orquestra de Jazz do Porto) ajudam a explicar este lançamento com Carimbo Porta-Jazz, lidera aqui um ensemble em que se encontram Gonçalo Ribeiro (bateria), Joaquim Festas (guitarra), Afonso Silva (saxofone alto), Hugo Caldeira (trombone) e ainda, de forma mais pontual, Miguel Meirinhos (piano em “Canção do Vinhal” e “Big Sur”) e, finalmente, Pedro Jerónimo (trompete), Pedro Matos (saxofone tenor) e Rafael Gomes (saxofone barítono) – estes últimos três músicos contribuem apenas para “Big Sur”.

E comecemos exactamente por aí: o tema que resgata o título de um outro livro de Kerouac, Big Sur, novela de 1962, é o que beneficia do mais amplo arranjo com nove “vozes” entrelaçadas em torno da composição do líder. É igualmente o tema mais longo do álbum, uma tranquila peça que ultrapassa os 10 minutos e que parece ter o mesmo passo das palavras, frases e parágrafos que se se sucedem página após página em direcção a um qualquer desenlace narrativo, com um bom solo de Meirinhos (muito lírico) a que se segue, após um curioso break que parece apontar para uma mudança de “capítulo”, a guitarra a expõr um tema que depois desencadeia uma explosão cromática de metais, numa sequência mais efusiva. Essa dinâmica composicional atravessa todo o disco, sempre servido por elegantes desempenhos de todos os músicos, com Gianni Narduzzi a mostrar entender o valor do pulso seguro, como tão bem demonstrado em “Turner Point”, tema que arranca com um solo da sua autoria a que depois se junta o ensemble base em harmónica e fluída conversação. A juventude dos músicos ajuda, por um lado, a explicar a fidelidade idiomática ao bebop e hard bop, mas por outro também lhes inspira algum arrojo ao nível da invenção rítmica: logo no tema de abertura, “Graffiti”, Narduzzi e Gonçalo Ribeiro parecem subtrair aos esquemas repetitivos do hip hop algum do seu drive, o que resulta numa apresentação solta que eficazmente convida os ouvintes a perderem-se nas “páginas” que se seguem – e uma palavra para destacar a fluência do discurso de Joaquim Festas na guitarra neste tema. Personagens interessantes, trama envolvente e estilo de “escrita” vívido e vibrante. Tudo o que se pede a um bom livro encontra-se também neste disco.



[Nuno Trocado & Jorge Louraço Figueira] Umbral

Nuno Trocado, guitarrista e autor das composições, lidera um ensemble que dá sustento musical aos textos de Jorge Louraço Figueira aqui ditos por Catarina Lacerda. No ensemble encontram-se, ao lado de Trocado, João Pedro Brandão, em flauta e saxofone alto, Sérgio Tavares no contrabaixo, Acácio Salero na bateria, e Pedro Pires Cabral em theremin, samples e gravações de campo. Pensada como parte de um espectáculo estreado em Julho de 2021 no Largo da Capela Nova, Vila Real, com figurinos de Helena Guerreiro, a música deste disco foi gravada no dia 28 de Agosto de 2021 no CARA – Orquestra Jazz de Matosinhos por Nuno Couto, com a mistura e masterização a serem depois assinadas por Sérgio Valmont. Tudo certo aqui. Sente-se bem o peso dos textos que carregam algum eco do estilo de Miguel Torga e que são ditos de forma irrepreensível por Catarina Lacerda. Indicam as parcas notas que “as palavras dos pássaros e o canto dos poetas de Trás-os-Montes inspiraram este espectáculo de música e teatro a partir da recolha de vestígios arqueológicos e outros nem tanto”. Esses “outros nem tanto” adivinham-se numa música abstracta, com a flauta de Brandão a rodear as palavras de ar e alma e os certeiros samples de Pedro Pires Cabral a funcionarem como cenário adicional para as dramáticas deambulações dos restantes instrumentos. Este é um disco que se escuta como quem vê um filme, com a natural curiosidade de se perceber o que nos traz a cena seguinte, com passagens mais pastorais ou, por vezes, feitas até de uma certa tensão cinemática, como acontece mo curioso “Baile”, tema que soa a pedaço perdido da banda sonora de um filme policial e que é guiado pela impressionista guitarra de Trocado a que o saxofone de Brandão e os samples de Cabral adicionam depois camadas de intriga. Como escrevi, tudo certo aqui.



[Inês Malheiro] Liquify, Spread and Float

Resultado da gravação de uma apresentação ao vivo no Festival de Jazz de Guimarães em Novembro de 2021 que contou com componente visual a cargo de Carolina Fangueiro (gravada e posteriormente misturada e masterizada pelo incansável Sérgio Valmont), este álbum consiste das três peças a que o título alude – “Liquify”, “Spread” e “Float”. Inês Malheiro (voz, efeitos), Daniel Sousa (saxofone, electrónica), João Almeida (trompete, efeitos), José Vale (guitarra, efeitos) e Vicente Mateus (bateria, efeitos) integram o ensemble que embarca nesta altamente experimental viagem, algures no limbo que separa os terrenos da música ambiental e de um jazz mais livre. 

E se o primeiro tema é uma longa e, socorrendo-nos do título, liquefeita deriva atmosférica, toda ela feita de drones e ruídos em suspensão, o segundo, mantendo a abstracção que é por aqui dominante, impõe-se com um carácter mais angular, muito graças às vigorosas entradas de Vicente Mateus, com João Almeida a soar por vezes ao Miles mais estratosférico dos anos 70 ou talvez ao Jon Hassell quarto-mundista, enquanto todos os outros músicos parecem evoluir como gente de olhos vendados em quarto escuro pejado de objectos e mobília, às apalpadelas. Quando chegamos a “Float”, o tema mais longo do tríptico (com 16 minutos e meio), o ensemble soa mais encaixado do que nunca, com um motivo sugerido pelos sopros a servir como a primeira pedra de um edifício de sons e texturas, de frequências e ecos, sempre em forma livre de qualquer estrutura, uma orgânica massa de sons que, de facto, flutuam por aí sem denotarem princípio ou fim, mas a tornarem-se cada vez mais densos, intempestivos e granulosos antes da resolução final com a voz a assumir um primeiro plano no drama sonoro desenrolado sem alguma vez, no entanto, assumir algum carácter mais narrativo.



[Carlos Azevedo] Serpente

Carlos Azevedo é compositor e pedagogo talvez mais do que músico, se tal for possível. Ou pelo menos, um compositor e pedagogo com mais obra nesses domínios do que no lufa-lufa habitual dos estúdios e palcos de clubes e/ou festivais a que os músicos profissionais se submetem. Na jazz.pt António Branco explica-nos o essencial do seu percurso e, portanto, não nos vamos deter nessa parte. Mas interessa ressalvar que o pianista tão habituado a pensar e criar música para ensembles de dimensões generosas, como a “sua” Orquestra de Jazz de Matosinhos, se propõe aqui, no primeiro disco em nome próprio (lá está…) em mais de 20 anos, a uma invulgar depuração formal da sua visão musical para o formato de quarteto. Ao seu piano juntam-se a guitarra de Miguel Moreira, o contrabaixo de Miguel Ângelo e a bateria de Mário Costa. Todos são músicos de pergaminhos mais do que firmados, líderes por direito próprio noutros projectos, solistas imaginativos, que aqui, sem abandonarem essas características que os levaram, aliás, a serem eleitos por Carlos Azevedo como parceiros nesta aventura, se “vergam” alegremente à música proposta pelo líder. As composições de Carlos Azevedo, quase todas criadas especificamente para este registo, espelham ideias musicais muito claras em que o seu conhecimento do jazz se cruza com experiências e paixões noutros domínios, da música erudita à mais popular, e por isso o que se escuta neste disco serpenteia, de facto, por entre fronteiras, contorna dogmas evidenciando uma vivacidade que possui algo de lúdico – esta é música que pretende sublimar o acto de tocar, música pensada para o desfrute colectivo. E se os quatro criativos músicos aqui presentes não escondem que gostam de tocar juntos – escute-se a alegria que se desprende de “Time Machine”, por exemplo – o mais natural é que quem deste lado escuta o resultado final sinta também esse êxtase criativo.

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