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Fotografia: André Ferreira
Publicado a: 13/07/2022

A absorver sem parar.

Funchal Jazz Festival 2022: pode não ter sido a primeira vez, mas dificilmente se repetirá da mesma forma

Fotografia: André Ferreira
Publicado a: 13/07/2022

“To the black people of the Delta, who created a Mississipi of song that now flows through the music of the whole world”. Esta é a dedicatória que aparece logo nas primeiras páginas de The Land Where The Blues Began (1993), livro assinado pelo etnomusicólogo Alan Lomax. Na tarde do passado domingo, quando Joel Ross e a sua banda davam uma masterclass no Conservatório – Escola Profissional das Artes da Madeira, Eng.º Luiz Peter Clode, o blues foi assunto recorrente, recordando-nos que, por mais mudanças a que assistamos no mundo da música, as origens e os seus protagonistas são fundamentais para um entendimento mais profundo do presente, algo reforçado por diversas vezes pelo próprio Ross ao longo da aula. 

Para o autor de The Parable Of The Poet (2022), os últimos anos passaram por mergulhar nesse som em particular. “Tenho-me preocupado mais em perceber mais sobre o blues e de onde vem”, confessou aos alunos (e interessados) que decidiram marcar presença na actividade programada pelo Funchal Jazz Festival, que acontece desde 2000 na ilha da Madeira. Porém, as respostas ainda estarão para chegar, sentindo algumas dificuldades em definir o blues – Godwin Louis, o saxofonista de serviço no grupo que anda com Ross na estrada, acabou por falar de “honestidade”. Também se descreveu o blues como um reflexo das dores do dia-a-dia de alguém que vive em condições opressivas e diminutivas – esta mesma descrição poderia ser usada para muitas das derivações que a música negra fez nas últimas décadas, desde o rock’n’roll ao rap. 

Numa aula que certamente terá aberto novas perspectivas a muitos daqueles que marcaram presença, Ross, Louis e ainda a contrabaixista Kanoa Mendenhall e o baterista Jeremy Dutton começaram por tocar – demonstrando o mesmo rasgo da noite anterior – e só depois passaram às lições, discorrendo sobre inspirações, da forma como as ideias para canções podem ver de todo o lado, incluindo de jams, mas, mais importante, dando a dica que é preciso interiorizar os temas para realmente poder ser-se livre e ambicioso na hora de interpretá-los. 

Para quem já partilhou sessões com Herbie Hancock (ainda no ensino secundário!), Ambrose Akinmusire ou Christian McBride, uma das revelações feitas na masterclass, os segredos, mesmo estando ainda abaixo dos 30 anos, parecem ser poucos. Por isso mesmo, aquela partilha com a nova geração de músicos madeirenses foi tão importante, como quando insistiu que era preferível aprender sempre as músicas a partir dos seus originais, ainda para mais quando são tocadas por quem as compôs – o exemplo foi “Tenor Madness”, tema escolhido pelo conjunto de jovens (cantora, baterista, contrabaixista, pianista e saxofonista) que responderam ao desafio de pegar nos instrumentos à frente dos craques americanos, mas optando por outra versão que não aquela que tem Sonny Rollins e John Coltrane nos créditos. 

As questões foram-se fazendo depois de um período inicial de timidez, mas ficam, para encerrar este capítulo, mais umas ideias de Ross e companhia: “toda a gente devia aprender piano e bateria para saber harmonia e ritmo”, “depois da pandemia começámos, todos, a dar mais valor ao palco” ou a revelação de que nem tudo começa pela aprendizagem mais teórica: “Eu aprendi na igreja e não havia teoria”. 

No dia anterior, o segundo do Funchal Jazz Festival no palco principal, esses ideais ficaram bem claros nas apresentações de Immanuel Wilkins e Joel Ross e o seu agora quarteto Good Vibes. Aliás, e voltando uma última vez à masterclass, uma frase dita pelo segundo resume de maneira adequada aquilo que vimos e ouvimos: “Nada é original, mas tudo é original porque nunca aconteceu exactamente dessa maneira”. No idílico Parque de Santa Catarina, os dois amigos e companheiros fizeram questão de abordar os seus concertos de formas diferentes: o saxofonista optou por abordar o seu mais recente álbum, The 7th Hand (2022), enquanto o vibrafonista e pianista optou por se afastar do longa-duração que lançou este ano e dedicou-se, em vez disso, a testar os novos caminhos que vai depois seguir em estúdio com aqueles músicos com que partilhou viagem até ao Funchal. 

Numa mistura de gerações na plateia – o nome “jazz” e o espaço onde acontece o festival faz com que se veja por lá o espectro completo da família, da avó à neta –, o que se viu em cima do palco foram os novos líderes desse género musical que não se esgota. Começando por Wilkins, o primeiro a apresentar-se, ao lado de Micah Thomas (piano), Rick Rosato (contrabaixo) e Kweku Sumbry (baterista), o som que projecta a partir do seu saxofone alto é precioso e serpenteante – e isso torna-se mais evidente ao vivo –, soando clássico enquanto gravita numa dimensão que não é bem terrena e nem tem bem a facilidade de se fixar numa década – “Fugitive Ritual, Selah”, por exemplo, é subtileza, esperança e elegância que tiram a qualquer um o chão. A camisola de Alice Coltrane que vestia mais cedo, à hora do almoço, quando também o vimos a jogar basquete junto ao restaurante, é capaz de ser uma excelente pista para aquilo que tenta alcançar. É música para o espírito e para provocar a união. 



Do lado do músico com “hip hop swagger” – palavras de Don Was, actual presidente da Blue Note –, a apresentação foi, como mencionámos anteriormente, uma zona de teste, aproveitando os instrumentistas (todos eles com um nível técnico altíssimo) que trouxe consigo para testar e expandir material, refugiando-se entre o piano e o vibrafone – um instrumento encantatório que nas mãos certas, como são as dele, desarma qualquer um – para uma descoberta a dois (os músicos e o público, neste caso). Uma coisa é certa: Ross angariou muitos fãs com a música que tocou naquele parque, com muitas das pessoas a dirigirem-se a seguir ao concerto à banca do merch a pedir o disco que ali tinha sido tocado. Ainda não está gravado, mas já é muito requisitado. Nada mau. 

O esperado encontro em palco entre Wilkins e Ross nunca chegou a acontecer no Parque de Santa Catarina, mas nesta primeira vez em que dividiram o cartaz de um evento cada um com a sua banda – anteriormente, o saxofonista fazia parte do então quinteto do vibrafonista e gravou para The Parable Of The Poet, por exemplo – não foi preciso esse cruzamento para que se percebesse que o novo som da Blue Note está em muito boas mãos. 

Mais tarde, e já com Joel Ross a celebrar o seu 27º aniversário, as jam sessions no Qasbah voltaram a ser ponto-de-encontro com os residentes Nuno Ferreira (guitarra), João Mortágua (saxofone), Francisco Brito (contrabaixo) e Luís Candeias (bateria), todos músicos de talento excepcional (e comprovado), a receberem não só os novos talentos do jazz madeirense mas também os americanos que não enjeitaram a hipótese de dar continuidade ao que já tinham feito nesse noite. Serviu, durante o tempo que ficámos por lá, para vermos que as palavras ouvidas na masterclass não foram proferidas em vão e sustentam-se na realidade: Wilkins, Ross e companhia não se cingiram aos seus instrumentos predilectos e deslumbraram naquilo a que se agarraram. 



Se o segundo dia sugeria uma inclinação para uma plateia mais jovem, o primeiro apresentava um alinhamento com Mário Laginha acompanhado pela Orquestra de Jazz do Funchal e Cécile McLorin Salvant, nomes de peso que não desiludiram quem foi à procura de sobriedade e virtuosismo. No caso do experiente pianista português, o resultado final foi construído em cima de material seu, assumindo, sem problemas, quando pegou no microfone que alguma música que escreve “não é fácil” e que os músicos da big band “conseguiram tocar o que muita gente não consegue”. 

Aperfeiçoado numa “semana de sonho” para Laginha (“não há nada mais compensador e recompensador”, chegou a dizer), houve espaço para que os membros da banda puxassem pelos seus limites – a vocalista Madalena Caldeira até aceitou o repto de escrever uma letra para colocar em cima de “Ribeira da Barca”, tema do disco Jangada (2022). Mais um feliz cruzamento entre os locais e a nata do jazz (neste caso, o português) – e mais bagagem, da boa, para os primeiros. 



Com três GRAMMYs consecutivos para Melhor Álbum Jazz Vocal no currículo (vamos ver se o quarto chegará com Ghost Song, editado este ano pela Nonesuch), as expectativas estavam altíssimas para o espectáculo de Cécile McLorin Salvant… e foram cumpridas. A cantora, compositora e artista visual norte-americana é uma intérprete assombrosa que nos remete para as grandes vozes do jazz e a estrela mais cintilante de um quinteto em que também se ouviu e viu Sullivan Fortner (piano), Marvin Sewell (guitarra), Paul Sikivie (contrabaixo) e Keita Ogawa (percussão). 

Com os músicos muito próximos em palco, Cécile mostrou um repertório com muitas versões (altamente personalizadas, obviamente) de nomes como Kate Bush, Kurt Weill, Dianne Reeves ou Sting, divagando (sempre com uma orientação precisa) entre o jazz, o blues (um dos melhores momentos aconteceu só com ela e o guitarrista nessa linguagem) ou o teatro musical. Porém, o tema-título do seu mais recente LP foi onde a elevação finalmente chegou e fomos catapultados para um outro nível – ela já anda lá em cima normalmente; nós é que demorámos a chegar. 

Antes do final, cantado em francês, ainda houve tempo para mais uma pequena amostra de classe. “Ouvir a música do Mário e da big band foi realmente inspirador”, atirou a reputada cantora, reconhecendo o trabalho bem feito por quem lhe antecedeu. Esta boa onda, chamemos-lhe assim, foi transversal a tudo aquilo que presenciámos no Funchal Jazz Festival, ficando mais claro, e ainda mais para quem não cresceu dentro deste universo, que existe um grande respeito pelos autores, por quem tocou o quê e pelo que foi feito lá atrás – ninguém surge de um vazio, portanto é de louvar essa preocupação em 2022. Nestes dois dias (mais um terceiro só com o workshop), a lição, que não se pareceu de todo com isso, foi bem dada e só quem não se apresentou de mente aberta poderá ter queixas a apresentar.


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