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Fotografia: Mário Filipe Pires & Nuno Pinto Fernandes
Publicado a: 28/07/2022

Pop sofisticada e psicadelismo do Sahara.

FMM Sines’22 – 27 de Julho: da hipnose de Letrux à virtuosidade desértica de Mdou Moctar

Fotografia: Mário Filipe Pires & Nuno Pinto Fernandes
Publicado a: 28/07/2022

Em 2019, o Festival Músicas do Mundo fez-se ecoar pelo Castelo e pelas avenidas de Sines pela última vez no dia 27 de julho. Em 2022, é a mesma data que vê os sons do “globo” regressar à costa alentejana após um interlúdio de dois anos provocado por um maldito vírus que mais conhecemos como Covid-19 – o nome continuará a assombrar os nossos dias enquanto caminharmos pelo mundo dos vivos.

Falando em caminhar, foi precisamente isso que decidimos fazer quando colocámos pela primeira vez os pés na cidade de Sines. Quem vos escreve deste lado é obrigado a colocar ênfase em “primeira vez” por duas razões: primeiro, porque é a sua primeira vinda ao FMM e, segundo, é também a sua primeira visita a Sines. Portanto, enquanto havia muita música para descobrir, também há cantos e recantos da cidade a explorar – e ainda bem que assim o é. Fica já a dica para futuros visitantes: sopa de agrião e salmão grelhado d’O Beicinho. De nada.

Nesses primeiros passos que demos pelas ruas de Sines, rapidamente percebemos que os dois anos de entreato pouco demoveram visitantes, graúdos e adultos, de virem descobrir o festival. Claro está, certamente o tempo passou – o mundo é um local muito diferente, e é debatível se para melhor -, mas a música, e especialmente a música ao vivo, continua a ter a qualidade intrínseca de nos deixar presos num alinhamento cósmico onde os astros – sons, artistas e público – se alinham. O FMM pode muito bem ser descrito dessa forma: uma comunhão imensa entre todos esses elementos, onde quase esquecemos o quão pejorativo pode ser definição de “world music”. Mas sobre isso, já se escreveu por aqui no ReB coisas suficientes para refletirmos. Por agora, mesmo com isso em mente, temos uma missão: desfrutar do regresso do FMM, celebrar a multiculturalidade e a inclusão, e pensar criticamente – mas sem nunca deixar de aproveitar os concertos – sobre os artistas que vão passar pelos palcos do festival.

Conversemos, então, sobre quem sobe aos palcos. Mais concretamente, olhemos primeiro para o palco do Castelo e para Letícia Novaes, que mais conhecemos como Letrux, que, pelas 21h, veio encantar o público que se atreveu a ser encantando pela sua “pop” sofisticada e alternativa. Trazendo na bagagem Letrux aos Prantos, o seu mais recente trabalho discográfico, a artista brasileira hipnotizou e encantou o público do FMM tal e qual como se uma fada se tratasse, lançando um feitiço sobre o público em forma de canções sedutoras.

Foi precisamente com uma canção mui-sedutora que Letrux abriu as hostilidades do seu universo em palco. “Déja-Vu Frenesi”, primeira canção de Letrux aos Prantos, transformou-se em cima de palco em algo mais psicadélico, permitindo que as suas texturas oníricas e grooves deliciosas deixassem espaço para os movimentos e danças com que Letícia ia encantando o público. Muito do espetáculo de Letrux resumiu-se ao cruzamento dessas componentes – no melhor sentido, claro –, transformando-se numa verdadeira festa onde o público, algo reticente inicialmente, rapidamente se converteu, em paixão e número, às acrobacias musicais da artista natural do Rio de Janeiro. “Abalo Sísmico”, atirada a seguir, foi a banda sonora perfeita para a noite a cair sob a cidade de Sines, antes de “Hypnotized”, a primeira faixa a ser resgatada de Letrux em Noite de Climão, disco de estreia lançado em 2017, se iniciar com um momento mais intimista entre a artista e o público, eventualmente culminando numa catarse de instrumental dançável onde os vocais de Letícia poderiam ter certamente feito a estrutura do castelo de Sines tremer. De falta de alento e energia, certamente não nos podíamos queixar.

Antes de prosseguirmos à descoberta do que mais Letrux tinha para nos presentear, a artista ofereceu-nos um pequeno deslumbre da sua história com a zona de Sines. Há nove anos, Letrux veio passar umas férias a Porto Covo e apresentaram-lhe o Festival Músicas do Mundo pela primeira vez, anotando que um dia faria parte do cartaz do festival. Em 2022, aqui estava, e quase como se quisesse celebrar a ocasião, partiu rumo a “Me Espera”, a sua colaboração com Mulú, um bop a fazer lembrar as explorações de nu-disco dos Daft Punk no seu Discovery. Passos de dança eram pedidos e, certamente, o público ali presente não desapontou.

Com o público totalmente na sua mão, Letrux prosseguiu a tornar o seu espetáculo numa verdadeira performance. A intensidade de “Contanto Até Que” abriu alas para a art pop orelhuda de “Que Estrago”, dedicada a todas as mulheres ali presentes, terminar com um momento surreal e surpreendente. Como se vindo do nada, Letrux começou a puxar um fio (?) rosa, aparentemente infinito da sua boca, deixando muita gente boquiaberta com o momento mágico. O espetáculo prosseguiu, mas a memória do fio ali ficou, emaranhado em torno do seu microfone, a servir como uma espécie de lembrança do poderio que Letrux poderia exercer sob o público.

Os procedimentos continuaram com “Dorme com Essa”, mais uma faixa de Letrux aos Prantos, uma balada rítmica e cativante com direito, primeiro, a um belíssimo solo de guitarra e, segundo, à demonstração de apoio de Letrux à candidatura de Lula da Silva às próximas eleições presidenciais do Brasil, a decorrer no próximo mês de outubro. Por cima das suas vestes negras, agora encontrava-se uma camisola vermelha onde se podia ler “Lula 2022”, para uma receção bem calorosa do público. Cânticos de “OLÊ, OLÊ, OLÊ, OLÁ, LULA, LULA” a ouviram-se um pouco por todo o Castelo – e no final do concerto ouvir-se-iam outra vez –, lembrando que, felizmente, ainda parece haver muito boa gente a querer dar novo rumo ao Brasil Esperemos que, como estes que se fizeram ouvir no FMM, haja outros tantos do outro lado do Atlântico a querer o mesmo.

Contudo, para chegar a esse final do concerto ainda havia emoções a digerir. Primeiro, “Ninguém Perguntou Por Você” soou maravilhosa ao vivo (Letrux bem que tentou arrefecer o ambiente com a ajuda de um leque, adornado com a cara de Lula –claro – mas nem isso ajudou), “Salve Poseidon”, perdida entre o inglês e o português, foi o mote para iniciar a fase final do concerto de Letrux, que terminou com uma dupla de bangers de synthpop a justificarem todos os passos de dança e ativismos necessários e inerentes a um espaço como o FMM. “Flerte Revival” justificou o surgir de óculos por parte de Letrux e do seu teclista dignos da sonoridade – muito estilo synthwave –, enquanto “Vai Brotar” fechou o concerto com nota tão energética como o restante espetáculo: baixo bem puxado (já agora, o baixista da artista, como fazia anos, teve ainda direitos a uns parabéns improvisados do público, mas a prenda foi dele para nós com o seu domínio do instrumento), daqueles que estimulam logo as redes neuronais para colocar a anca a abanar; bateria bem pujante, com cada incursão sob o instrumento a ter o claro desejo de espalhar a palavra da groove; Letrux a dominar, como queria, todos os cantos do palco. O público, na sua mão, obedeceu e dançou, por uma última vez. 

Os sorrisos largos no final do espetáculo davam a indicação da visita de Letrux a Sines ter sido bem-sucedida. Para quem estiver interessado, a artista vai andar pelo país nos próximos dias – Lisboa, no Musicbox, a 28 e 30, em Coimbra, no Salão Brazil, a 29, no Hard Club do Porto a 31 e no Theatro Circo, a 5 de agosto. Se tiverem a oportunidade de ir a uma das datas, não a desperdicem. 

Todavia, se vamos falar de concertos que valem (também) a pena, o que podemos dizer sobre o concerto que Mdou Moctar e a sua banda deram pouco depois das 22h no Castelo? Esclareça-se, desde já, uma coisa. A música de Mdou Moctar não é “world music”. Está longe, de poder ser colocada dentro dessa caixinha detestável. A música de Mdou Moctar é, pura e simplesmente, música rock. Aliás, diga-se: música rock muito excitante. É psicadélico urgente e consciente onde os riffs se multiplicam no seio entre grooves energéticas e uma virtuosidade tal capaz de nos deixar sempre boquiabertos. Falando a sério: como é possível alguém que toca guitarra com apenas dois dedos consiga criar rock tão efervescente como este? Palavras certamente faltam para tentar responder a esta pergunta – mas não há mal nenhum em tentarmos.

Para o FMM, Mdou Moctar trouxe na sua bagagem Afrique Victime, o seu mais recente disco, lançado no ano passado. A meio de 2021, escreveu-se por aqui no burgo do Rimas e Batidas sobre Afrique Victime o seguinte: “Não há muitas formas de descrever este blockbuster de guitarra, que converte a aridez desértica do Sara em eletricidade carnal, que é um missal para quem ainda não se esqueceu de África, por quem o mundo luta — para que mantenha o seu título de continente mais explorado e injustiçado, é claro”. Sentimos que a mesma descrição pode ser aplicada ao espetáculo ao vivo de Mdou Moctar, exceto com uma pequena diferença. Ao vivo, o caldo efervescente das canções de Mdou Moctar, surgido da combinação da história do seu Níger natal, do tishoumaren e das tradições da música Tuareg, com influências de estilos como blues e o hard rock, surge ainda mais carnal e cru, quase como se fosse uma espécie de punk desértico a ser soprado diretamente do Saara para cima do palco colocado no interior do castelo de Sines.

No entanto, não se pense que por o espetáculo de Mdou Moctar ser, primeiramente, um concerto de rock que não existe espaço para qualquer tipo de ativismo. Relembremos: a música de Mdou Moctar é ativismo. É consciencialização, para com os direitos das mulheres, para com a exploração da África Ocidental por parte de potências neocolonialistas. O seu domínio do instrumento — uma guitarra branca a contrastar com as cores escura da sua vestimenta tradicional — não é muito diferente da forma como grandes do jazz cósmico, um John Coltrane, um Sun Ra (digamos de outra forma – é possível imaginar Amiri Baraka a ficar impressionado com a música de Mdou Mcotar), dominavam os seus instrumentos. Cada dedilhar de riffs é um convite a entendermos as dores e lutas do seu povo, cada faixa a ser tocada – ouvimos canções como “Tarhatazed”, retirada de Ilana (The Creator), ou “Chismiten”, de Afrique Victime, por exemplo – é uma viagem por um manto de virtuosidade e ritmo (nossa senhora, o baterista era um poço de energia a fervilhar durante todo o set) que, quando em sinergia, se transformaram num espaço seguro tanto suscetível ao transe duradouro como aos moshpits em forma de comunhão, passos de dança eletrizantes e muitas palmas a acompanhar.

Para o final do concerto, Mdou Moctar deixou um dos grandes momentos, para já, da época de festivais de 2022. “Afrique Victime”, a faixa título do seu mais recente disco, foi estendida até ao máximo a nível de restrições de horário e, por nós, bem que poderia ter sida estendida até ao infinito. Se o The Guardian chegou a escrever – e a descrição é bastante apropriada – que Moctar é uma espécie de “Hendrix do Sahara”, não conseguimos retirar da mente que muitas das brincadeiras que efetuou com a guitarra durante “Afrique Victime” trouxeram-nos à memória a criatividade imensa com o instrumento de um Tom Morello. Quando “Afrique Victime” terminou, para uma grande ovação por parte do público – e pedidos de mais uma canção que, infelizmente, não se materializou -, a ideia que ficou ali delineada é a de um sinónimo entre futuro e música negra. Como sempre e, provavelmente, como sempre será. Para quem não assistiu ao grande concerto de Mdou Moctar no FMM, não desanimem: há dose marcada no próximo dia 13 de agosto, no Sonic Blast

O Festival Músicas do Mundo continua por Sines esta quinta-feira (28) com concertos de artistas como James BKS, Ana Tijoux ou Steam Down, entre outros. 

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