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Fotografia: Fabiana Esposito
Publicado a: 19/11/2024

Uma história que vem de longe.

Fidju Kitxora e as recordações do futuro

Fotografia: Fabiana Esposito
Publicado a: 19/11/2024

É difícil precisar onde começa esta viagem que, como sankofa, projeta um voo sobre o futuro, com o olhar fixado no passado. E mais difícil ainda será vislumbrar, ainda que brevemente, que horizontes se expandem neste voo em busca de algo ainda não imaginado. O que sabemos, por agora, é que por aqui se recordam e projetam memórias, tantas vezes evaporadas entre gerações onde as migrações marcam os sentidos dos percursos biográficos e familiares. Mas sabemos, também, que o ato de recordar que aqui é evocado em nenhum momento se deixa aprisionar pela nostalgia, mesmo quando aqui se choram histórias passadas ou se abraçam sonhos e heranças partilhadas. 

Fidju Kitxora é, nas suas palavras, um “coletivo formado entre Cabo Verde e Lisboa que procura as vozes perdidas na diáspora”. E Racodja é o álbum de estreia destes “filhos que colhem memórias daqueles que nunca mais voltaram”, mas que inescapavelmente procuram encontrar novas formas de expressão sonora, poética e performática para traduzir uma tensão partilhada com lugares e territórios emocionais que são simultaneamente tão próximos e distantes. 

Se todas as histórias têm um começo, esta terá nascido de uma longa viagem a pé pelas ilhas de Cabo Verde em busca de uma reconciliação pessoal e familiar com feridas ainda por sarar e com memórias em risco de se perderem. E foram tantas as histórias, as pessoas e as emoções vividas nessa viagem, que a própria questão da autoria se diluiu. Uma procura quase autobiográfica transformou-se num projeto coletivo e, precisamente por isso, não vamos revelar quem começou esta jornada. Como se perceberá, há por aqui histórias e pulsões bem mais importantes para desvendar.

Eis, então, a história de Racodja, um gesto artístico que tanto bebe da inspiração d’Os Tubarões, dos Rabenta, de António Sanches e Camilo Domingos, quanto das vozes referenciais de Scúru Fitchádu e de Prétu. Um projeto que tanto vive de gravações de campo registadas em Santiago, quanto da evocação do discurso do jovem Karlon no final da década de 90 ou de gravações da Rádiotelevisão Caboverdiana. De todas essas referências nasceram músicas onde as raízes do funaná, do semba ou do kuduro se entrelaçam e harmonizam com registos de techno, afrohouse e de hip hop com perfume de J Dilla. De cada música nascem as ramificações futuras de um jardim onde, voltando ao começo, poderão germinar flores e frutos que ainda não observamos. Música pós-diaspórica? Deixemos a pergunta no ar, que esta história, apesar de vir de longe, só está agora a começar. E quem com ela se quiser contectar não perca a próxima apresentação ao vivo, dia 5 de dezembo, no 18º aniversário do Musicbox



No texto de apresentação do projeto lê-se que Fidju Kitxora é um “coletivo formado entre Cabo Verde e Lisboa que procura as vozes perdidas na diáspora. São os filhos que colhem memórias daqueles que nunca mais voltaram”. Que vozes perdidas são estas a que te referes e que memórias são estas que sentiste necessidade de recordar neste trabalho?

Tendo em conta que venho de um contexto de diáspora, penso que já absorvo, quase por osmose, um certo tipo de realidades que me são muito familiares e ao mesmo tempo muito distantes. Este projeto surge como uma forma de materializar histórias que não foram tão bem contadas pelos nossos pais, uma realidade que sinto que é compartilhada em muitas famílias. A minha família veio para Portugal no pós-independência, em 1975, e penso que, em muitas famílias, há coisas em que as gerações que já nasceram cá não se conseguem situar. Apesar de haver um envolvimento cultural muito forte, certos aspetos perdem-se nessa transmissão. Inevitavelmente, houve um momento da minha vida em que senti a necessidade de me reconectar com certos elementos que não foram e não serão partilhados devido à interrupção que a minha família teve na relação com a sua terra. Os meus avós nunca mais voltaram, nem a minha mãe, e existe uma relação muito difícil com Cabo Verde, algo que eles inclusive me incutiram.

E como acontece essa reconexão?

Esta reconexão aconteceu com o falecimento da minha avó. À medida que a sua saúde se começou a degradar, ela desenvolveu Alzheimer, e era a pessoa que mais histórias me contava. Quando era puto, adormecia com muitas destas histórias, mas não dava muita importância. Quando a visitei e ela sorriu sem me reconhecer, senti que estava a perder um lugar de reconhecimento de coisas que, provavelmente, só ela poderia partilhar. Quando ela morreu, tomei a decisão de ir a Cabo Verde por um período extenso, mas a minha família começou a sabotar essa viagem.

Ainda existe esse trauma?

Sim, e por razões que também têm a ver com questões políticas. O meu avô era comerciante em São Vicente e, de certa forma, apoiava os portugueses. Tinha um tio do PAIGC que o avisou que a situação podia ficar complicada. Não que o meu avô fosse especialmente politizado, mas, em 1975, tomou a decisão de vir para Portugal por tempo indeterminado e nunca mais voltou. A minha mãe já cá estava a fazer o curso de agronomia, as minhas tias também, e também nunca mais voltaram. Houve uma perda patrimonial, que não foi necessariamente difícil porque a minha família fez a sua vida aqui, mas houve uma sensação de injustiça.

Em casa a tua família falava crioulo contigo?

Nada.

E ouviam música de Cabo Verde ou tinham outras referências culturais relacionadas com o país?

Havia referências, estavam presentes, mas como também vivi noutros lugares, houve uma parte de conexão cultural que não vivenciei. Acho que a minha relação com a diáspora está noutra camada, é mais pós-diaspórica do que diaspórica, porque houve uma interrupção por parte da minha mãe.

Houve uma interrupção geracional?

E cultural mesmo. A minha mãe casou com um português, o meu pai, e anulou certos aspetos da sua cultura de origem como forma de proteção. Mas isso fez com que transmitisse para nós certos tipos de bloqueio. A música sempre esteve muito infiltrada, inevitavelmente, mas isso não aconteceu noutros aspetos, como a questão da língua, por exemplo, por haver também um certo preconceito linguístico. Em muitas famílias, os pais acham que isso pode ser um entrave para uma adaptação. No caso da minha família, o crioulo era usado quando estávamos com os meus avós, especialmente entre a minha mãe e as minhas tias, mas para falar sobre coisas que não queriam que nós percebêssemos. Então, quando quis fazer essa viagem, houve sabotagem da minha família, que não queria que eu fosse.

Mas foste na mesma.

Sim. Fiz essa viagem e sinto que resgatei outras versões de histórias que já conhecia sobre os meus avós. Depois, tentei uma reconciliação da minha família com Cabo Verde. Andei, por exemplo, em São Nicolau, na Aldeia da Praia Branca e Fragata, onde tenho família, e fui descobrir os sobrinhos dos meus avós, já com 80 anos. Eles nem acreditavam que eu estava ali. Descobri fotografias minhas que o meu avô mandou há mais de 30 anos, comigo com oito anos. As pessoas acolheram-me como um filho perdido, até porque tive de andar muito; há aldeias onde só chegas a pé. Nesse processo, acabei por mandar muitas coisas para a minha família daqui, e foi bonito esse esforço de reconciliação, mesmo que não queiram ir lá. Isto era algo que queria fazer por mim, para não deixar mal-entendidos. Fruto das minhas vivências, eu não tenho a mesma relação identitária que outros cabo-verdianos têm em certos contextos que acontecem aqui na diáspora. Mas sinto que a instabilidade em relação à uma perceção daquilo que é o teu lugar de origem é algo comum e que faz com que tenhamos este sentimento muito forte por um lugar que é tão distante, mas que é tão próximo. 

A tua música, em projetos anteriores, sempre viveu muito de trânsitos, dos diferentes lugares onde viveste, e nunca esteve completamente ancorada numa raiz territorial ou numa identidade estética muito fixa. Neste projeto, é um pouco diferente, porque procuras as raízes da música cabo-verdiana e há um certo regresso às fontes. Ao mesmo tempo, optaste por diluir a tua identidade num projeto que procuras que seja mais coletivo que individual. Este álbum abre um novo ciclo no teu trabalho e posicionamento?

Exato. Eu estou a querer conectar-me comigo, e neste projeto tentei fazer uma certa interrupção, mesmo que o álbum seja baseado em tudo aquilo que foi a minha vida. Sinto que este projeto pode fazer confluir muitas coisas que fui fazendo ao longo de 30 e tal anos. E que estou a fazer algo que pode juntar todos os diferentes contextos de pesquisa. Se calhar agora estou num lugar…

É um lugar de síntese?

Penso que sim. Neste álbum, tentei que cada música tivesse uma sensação de ser uma ramificação para algo. Cada uma das músicas, eventualmente, vai-se desdobrar noutros caminhos.

Pensemos, por exemplo, na “Dizisperu”, em que partiste do sample de “Alto Cutelo”, gravada ao vivo pel’Os Tubarões.

Sim. Samplei essa música, mas a partir de um registo próximo do J Dilla. O Dilla é uma grande referência minha. Sinto que vou querer conectar-me com rappers do rap crioulo e uma das linhas vai ser por aqui. No caso da “Espinh Branku”, já é um registo mais experimental, com gravações de campo feitas em Espinho Branco, que é perto de uma aldeia de Rebelados, em Santiago. 

Foi nesse processo de trabalho com samples e gravações de campo que a questão da autoria se colocou? 

Sim, e não é de todo uma questão de marketing. Quando imaginei este projeto, tinha como objetivo conhecer várias ilhas de Cabo Verde a pé. Durante três meses, fiz uns 400km a pé, passei muito tempo sozinho, mas também fui encontrando pessoas no caminho. Foi nesse momento que comecei a projetar esta ideia de fazer um projeto que desse voz a muitas pessoas que ia conhecendo. Nesse processo, tive muitos choques emocionais. As pessoas que vão a Cabo Verde têm muitos choques emocionais, porque estamos a falar de pessoas com um nível de acolhimento que não vês em muitos lugares. É uma forma de acolhimento muito pragmática e de sobrevivência. Encontrei pessoas que eram extremamente generosas, mesmo não tendo quase nada. Como não tinha forma de retribuir no imediato, pensei: “No que é que eu sou bom?”. É a produzir arte e cultura. Então, decidi fazer muitas gravações no processo e comecei a imaginar um projeto em que pudesse, de alguma forma, dar voz às pessoas que ia encontrando. Não num sentido “heroico”, nada disso, mas queria que elas estivessem aqui. A “Espinh Branku”, por exemplo, tem a gravação de uns putos com quem estava a jogar futebol, e usei algumas frases deles e as palmas, que percebi logo que podia usar como snare. Aqueles putos estão na música, não é? Porquê dar apenas a minha cara?

Há uma ideia de coautoria?

Claro que sou eu que estou a canalizar, mas estou a conduzir cenas que são concretamente de outras pessoas. Sejam as gravações, ou mesmo na questão do sampling, em que recorro a’Os Tubarões, a uma story do Prétu, ao João Cirilo, ao Princezito, a um discurso do Karlon no documentário Outros Bairros. Fui falar com eles, eles gostaram, mas foi incrível perceber que muitos deles nem têm direitos ou licenças sobre as suas próprias obras. 

A questão dos direitos de autor e dos compositores ainda é um grande debate na música de Cabo Verde.

Pois. Eu coloquei o álbum free, para download, porque o meu objetivo não é ganhar dinheiro, é ter a oportunidade de produzir coisas que me afetam de uma forma emocional. Por exemplo, esse medley d’Os Tubarões é algo que me arrepia sempre que ouço e choro com essa música. Eu ouvia-a quando era puto, mas só quando comecei a compreender certos aspetos da realidade de Cabo Verde na diáspora é que a música me bateu mesmo forte. Há uma profundidade emocional que vem da relação com certos contextos da diáspora, das amizades que aí crias. Depois, metes-te também como artista que, logicamente, tem um comportamento politizado com certas coisas que faz. Mas há ainda um outro lado, que nós partilhamos, que é esta relação com a investigação. Começa-se então a criar um puzzle com diferentes camadas, onde percebes que há algo que podes fazer pelas pessoas ou pela cultura. No meu caso, quando escuto as músicas deste álbum, lembro-me das pessoas, seja a minha família, sejam as amizades que fui criando, e da necessidade que essas pessoas também têm de ir para outros lugares. O álbum, se calhar, também é uma forma de levar estas pessoas a outros lugares.

E nesse caminho foram-se juntando outras pessoas ao projeto? 

Sim, sobretudo a nível performático, houve mais pessoas a conectar com o projeto e a tocar comigo ao vivo.

É também por isso que Fidju Kitxora é um coletivo?

Exatamente, e será sempre assim. Isto não é algo que idealizei sozinho. É claro que, ao vivo, eu estou lá, mas tenho um técnico de luz que conceptualmente percebeu a ideia e trabalha muito com a contraluz e com o fumo, para que a nossa presença em palco seja mais diluída. Chamei também o Lukanu, que é um bailarino angolano, para a performance de dança. Gosto muito do trabalho dele e convidei-o para interferir muito no público e evitar essa hierarquia com quem está em palco. Quando ele está no público, a nossa presença, enquanto músicos, associada à questão da contraluz, dilui-se.

Indo agora à questão propriamente sonora, as oito músicas deste EP apontam para diferentes estilos, ritmos e abordagens estéticas: do funaná ao semba, do kuduro ao afrohouse, do hip hop às gravações de campo. O que tentaste traduzir, do ponto de vista sonoro, cruzando estas distintas tradições da música africana e da música negra afrodiaspórica?

Foi algo muito natural e não houve muita premeditação. Foi uma relação natural com os samples, com ambiências que precisavam de uma sustentação ao nível dos arranjos e em que me comprometi com certas sonoridades eletrónicas africanas. Sinto que este álbum ainda é uma coisa muito figurativa, e as coisas que estou a começar a fazer agora — e que já estou a tocar ao vivo — estão num lugar mais híbrido. Como te disse, acho que é música pós-diáspora. Ou seja, já não é música da diáspora, como muitas das coisas que consumimos, porque tenta ir além disso. Se calhar, neste primeiro momento, há essa apreciação esteticamente mais nítida, mas agora estou a entrar num lugar mais diluído. 

Do ponto de vista da produção, o ponto de partida foram os samples?

Sim. Comecei por fazer um catálogo de todas as coisas que gravei em Cabo Verde. Tinha umas 500 gravações e comecei a escolher. Depois, comecei a recolher estas coisas muito espontâneas, como, por exemplo, uma story do Prétu que adorei. Quando a vi no Instagram, gravei logo, antes que se dissipasse, e fiz a música a partir daí. De certa maneira, o Xullaji já dá um mote ao nível da melodia, e os arranjos caminharam nesse sentido. Para mim, fez muito sentido, porque essas referências são também o reconhecimento que tenho de artistas, como é o caso dele, que estão a ir além. Ele, o Scúru

Que também é samplado na “Lobo na Skuru”.

Sim. Para mim, eles são artistas que demonstram uma reflexão muito pessoal e profunda daquilo que é a sua identidade. Têm uma reflexão muito sincera, muito autêntica e muito própria daquilo que são. São cabo-verdianos por questões familiares e sociais, mas sabem que não são só isso. Têm muitas outras coisas implicadas, e o trabalho deles é mesmo uma referência para mim.

São duas figuras-chave.

Eu acho que sim, porque construíram um lugar que é mesmo deles, ainda que se calhar não seja tão appealing. Na verdade, acho que o Xullaji já se distanciou de ser appealing noutras camadas dele. Esta é só mais uma, mas que está num lugar de síntese muito interessante. Além deles, foi também natural colocar a referência ao Princezito, ao Karlon ou ao Antonito Sanches, que é um herói para mim.

Como surgiu o nome Fidju Kitxora?

Acho que foi numa das caminhadas. Surgiu de repente e esse nome também me trouxe uma certa noção rítmica, algo que é meio batuku a nível rítmico e de métrica: Fidju Kitxora. Achei essa métrica muito musical e senti que podia ser algo que transmitisse essa dor de quem nunca mais voltou. E achei que a pintura da capa, pelo desgaste, poderia transmitir também um bocado essa tristeza.

No século XXI temos vivido muito a partir do prefixo “re”: reformular, reciclar, recordar, reinventar, resignificar, remisturar. O teu álbum também se propõe a recordar, embora também abra vários caminhospara o futuro. Como é que olhas para esta relação entre os tempos, entre este “recordar”, que remete à redescoberta deste passado, quando, ao mesmo tempo, estás a criar música nova no presente e a procurar outros futuros com este teu gesto artístico? Como se articula este cruzamento de tempos e temporalidades?

Eu acho que é muito líquido. Basta ver, por exemplo, esta questão de Cabo Verde. O que é Cabo Verde ao nível de tempo e espaço? É algo líquido onde tens pessoas que constantemente falam umas com as outras no telemóvel para a sua avó que está em Cabo Verde, para o seu primo que está em Boston. Vais a um concerto de Ferro Gaita e vês malta de todas as idades a cantar as músicas. Eu acho que é tudo muito líquido e não consigo criar uma sensação de que realmente existe um “antes” e um “pós”. Se calhar, esses “re” que mencionas podem ser iniciadores de algo novo, podem ser portas de entrada. Mas, ao mesmo tempo, também demonstram que não existe “antes” nem “depois”.  Está sempre tudo em constante crioulização, está sempre tudo a misturar-se. Para mim, ter pegado nas histórias da minha família, em samples de música antiga, e ter situado tudo isso agora, neste momento da minha vida, faz-me pensar que tudo isto faz parte do mesmo lugar e do mesmo tempo. Cabo Verde é o quê? São aquelas 10 ilhas? Não. Andas na Cova da Moura e sente-se Cabo Verde. Falas com a Juana na Rap, que é branca, e sente-se a influência de Cabo Verde. O que é “música cabo-verdiana antiga”, quando tens ainda uma vitalidade desse lugar musical ainda hoje, como acontece cá com os Fogo Fogo. É verdade que tens esta cristalização da morna, em que a Cesária Évora continua a ser um modelo para vários projetos. Mas tens também os Acácia Maior, que fazem provocações além disso, para além dessa perceção da morna. Não sinto um “pré” e um “pós”; sinto que está tudo em constante transformação.

Em Portugal, as pessoas negras e afrodescendentes cresceram a ouvir pessoas brancas dizer que deviam ir para a “terra delas”, mesmo quando nasceram e cresceram em Portugal. Em resposta a isso, tem havido uma luta política, social e cultural para inscrever a história negra e africana no contexto da sociedade portuguesa e para mostrar que Portugal nunca foi, não é, nem será apenas um país branco. Ao mesmo tempo, também tem havido um movimento cultural e político que procura recuperar a ancestralidade africana dos afrodescendentes em Portugal e o reconhecimento de uma história que está inevitavelmente ligada a África. Tratando o teu álbum de questões identitárias profundas, como é que achas que se gere esta necessidade de reconhecimento dos afrodescendentes como parte do corpo nacional português sem, ao mesmo tempo, apagar essa sua ancestralidade africana? Ou, virando a questão ao contrário, como é que se pode reivindicar essa ancestralidade africana para os afrodescendentes sem, ao mesmo tempo, reificar o discurso da extrema-direita de que os portugueses negros não são realmente daqui?

Estava-me a lembrar do livro do António Contador [Cultura Juvenil Negra em Portugal], em que ele falava desta questão do hífen. Esse lugar de tensão é muito interessante. Se calhar, a coisa mais verdadeira na palavra “afrodescendente” está no hífen que juntou essas duas palavras. Eu acho que é o hífen que revela a identidade destas pessoas. Estou-me a lembrar também do discurso do Dino D’Santiago sobre a questão do hino nacional. Quando ele fez essa intervenção, as pessoas mandaram-no para a terra dele e a terra dele é Quarteira. Mas ninguém queria saber. As pessoas vivem narrativas, estamos todos a querer acreditar em narrativas. Agora há uma narrativa intensificada nesta questão do nacionalismo português. Até nós próprios, descendentes, estamos a querer acreditar em certas narrativas, porque precisamos de ter uma estabilidade identitária, especialmente quando estamos sempre a ser provocados, seja por questões raciais — sempre a ser postos em dúvida sobre quem somos, sempre a ser postos num lugar in between — seja por vivermos numa realidade e num sistema económico que também nos põe a duvidar de quem somos, se somos músicos, professores, pais… Cada um de nós agarra as suas narrativas para criar uma certa estabilidade e, no caso dos afrodescendentes, existe uma conflitualidade entre aquilo que é um espaço familiar muito forte — que, para muitos, é um lugar de instrução prioritário (não é a escola, não é a sociedade portuguesa, mas é a família, e o contexto do bairro) — e aquilo que é o contexto de uma cultura dominante. Isso cria uma tensão muito forte e dificuldades ao nível de adequação identitária. Há muita malta que é nascida em Portugal, mas que, com toda a legitimidade, não se sente portuguesa. Muitos sentem-se cabo-verdianos, mas nunca foram a Cabo Verde. São questões identitárias difíceis, e, se calhar, a linguagem também não ajuda a traduzir esta coisa tão abstrata. “Afrodescendentes”? “Segunda geração”? Parece que nada disso chega. Nem sequer chega dizeres que és “cabo-verdiano”. Talvez as palavras não sejam suficientes para definir completamente estas pessoas e, daí, dizer que é o hífen, é esse traço que melhor consegue definir a experiência, porque não é uma palavra, é um símbolo. É uma síntese onde está tudo dentro.

Olhando para o panorama musical, há poucos anos não se via no espaço do mainstream quase nenhum artista negro. Nos últimos anos, pelo contrário, vemos músicos negros e afrodescendentes no topo das listas do Spotify e em palcos de grandes festivais. O que achas que mudou em 20 anos para termos este processo de afirmação cultural tão forte nestas gerações mais novas? E achas que essa afirmação cultural, que introduz no espaço público outras narrativas, tem ou pode ter um impacto político significativo?

Neste sistema cultural, há sempre uma apropriação daquilo que é novo. Além disso, estamos numa realidade em que, a nível de produção, já existe mais capacidade de materializar projetos ao nível artístico. A tecnologia hoje é mais compartilhada e tens malta para produzir música apenas com computadores. Se calhar, há 30 ou 40 anos, artistas, por exemplo cabo-verdianos, para poderem produzir um disco, teriam de arranjar editoras, estúdios… Atualmente já não é assim. Isso fez com que houvesse nova produção e contextos em que, por uma questão inclusive de marginalização, se criassem obras e estéticas muito próprias. Logicamente, os olheiros das editoras começaram a apreciar esses fenómenos, sobretudo por questões mais quantificáveis, como os números de visualizações. Em todo o caso, sinto que ainda vemos muitos africanos caricaturando-se a si próprios em prol de uma visão de África, ao mesmo tempo, muito assimétrica e imaginada. Como é que se imagina África? São os zulus a saltarem, as coreografias exacerbadas, a sexualização do corpo africano. Esse imaginário ainda predomina, e tens artistas que se conectaram com o mercado da cultura global ocidentalizada, indo beber muito daquilo que é a sexualização, a exotização, essa potência da fisicalidade, seja do corpo ou da própria música. Isso é algo que ainda predomina, e acho que muitos artistas estão a aproveitar isso, e as editoras também, potencializando essa forma mais do que outras propostas que vão para além disso, onde há outras mensagens a serem passadas e que não são simplesmente entretenimento. Há uma sensação colonialista ainda. Ainda há uma fragrância colonial.

Assente nessa exploração do exotismo?

Penso que sim. Apesar de que dentro disso existe espaço para a politização da música africana. Tens artistas desta nova geração com outro tipo de consciência porque, apesar de não viverem na África geográfica, vivem numa África europeia e há muitos aspetos novos que se revelam vindos dessas outras Áfricas. Essa projeção já está a chegar ao nível da produção.

E sentes que esta afirmação cultural está a ter, ou pode ter, impactos políticos significativos na sociedade portuguesa?

[Hesitação] Eu acho que não. Não estou a sentir isso. Na manifestação em que estivemos da Vida Justa vi um cartaz que dizia algo como “Querem-nos escutar, mas não nos querem aceitar”. Eu acho que é isso. Existe, por exemplo, um afeto pela música do Dino, mas há uma aversão com o negro que se senta ao teu lado no metro. 

E sentes que isso não está a mudar?

Acho que não. Eu acho que uma coisa são estas gerações que estão a nascer agora, em que estão em turmas, como uma que tenho agora, com miúdos portugueses, ucranianos, brasileiros, guineenses, cabo-verdianos… Esses putos vivem numa realidade multicultural em que há uma aprendizagem que faz com que certas coisas se vão diluir ao nível daquilo que é a racialização. Mas agora também estamos num momento em que os fascistas se desenterraram. Eles existiam, mas agora estão aí com megafones. Independentemente de haver um esforço, até governamental, de integração e abertura cultural para aquilo que é a cultura africana, isso não vai alterar consciências porque, no caso da música, estamos a falar de contextos comerciais, de contextos capitalizados, em que muitos artistas são instrumentalizados para fazer dinheiro, não é para trazer um mundo melhor, não é para que as pessoas estejam de mãos dadas a cantar We Are the World. É para fazer dinheiro, ponto. Não é para mudar nada. É por isso que eu não acredito. E dentro disso, se tu fores a ver, as pessoas que pegam no veículo da arte para transmitir uma mensagem mais politizada, essas não são visibilizadas, não são postas no mainstream.


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