Cansaço acumulado de missões sucessivas, poucas horas dormidas e algumas dores de costas são mazelas habituais para quem se mete nas andanças dos festivais. Nem tudo são rosas quando andamos nesta correria, mas, felizmente, há outras flores que brotam dentro de nós sempre que temos a possibilidade de conhecer novos festivais, gentes e locais, bem como novas oportunidades de apanhar em concertos os artistas de que mais gostamos. No Festival Vapor, essas flores nascem desde as ferragens antigas dos comboios, o elemento mais presente por entre o recinto montado no Museu Nacional Ferroviário, cenário capaz de apaixonar qualquer um logo à primeira vista. E quando um evento que vai apenas na sua 4ª edição já se apresenta com esta robustez ao nível conceptual — todo o imaginário em torno da cena steampunk é único dentro deste meio dos festivais de música — e logístico — não há qualquer falha a apontar quer às infra-estruturas, quer aos recursos humanos que metem estes motores a carburar —, o que sentimos é mesmo um verdadeiro jardim de emoções, pois é sempre gratificante fazer parte de uma experiência destas e, acima de tudo, ver que existem alternativas cada vez mais viáveis fora do constante (e cada vez mais entristecido) foco que recai sobre Lisboa.
Foram três dias bem passados no Entroncamento, dos quais destacamos as actuações de Conferência Inferno e Linda Martini (primeiro dia), Scúru Fitchádu (segundo dia) e Ana Lua Caiano, sobre a qual nos debruçaremos nesta derradeira reportagem já de seguida. Mas o Vapor é muito mais do que música, já que a programação foi incansável no número de propostas dentro das mais diferentes áreas — do teatro à dança; das exposições às oficinas. Há ainda a sublinhar o esforço feito para que este evento seja o mais inclusivo e acessível possível, para que toda a gente, independente da sua condição física, possa desfrutar da experiência — os concertos tiveram sempre tradução para língua gestual portuguesa, havia imensos bebedouros para cães-guia e rampas que facilitavam o acesso a quem se movimentava de cadeira de rodas. É praticamente certo que o certame volta para o ano com a 5ª edição, e as perspectivas para o que possa vir do futuro não podiam ser mais positivas.
Num dia (29 de Setembro) em que quase nos esquecemos que já era Outono — no pico da tarde os termómetros chegaram quase aos 30 graus —, Ana Lua Caiano beneficiou das condições atmosféricas para se apresentar ao público do Entroncamento num solarengo final de tarde, quando o relógio marcou as 18h30, com o sol a pôr-se diante si à medida que os minutos passavam. O seu rosto começou por brilhar com o reflexo alaranjado da luz natural do astro-rei e terminou em tons de vermelho já com a iluminação artificial em funcionamento, mas a sua música foi orgânica e honesta como sempre. A cantautora e produtora continua a esquivar-se da possível tentação de convocar outros músicos para a acompanharem em palco e entrega ao público a sua arte tal e qual como ela foi criada, sem o input de mais ninguém, “sozinha”. E aqui as aspas servem para não ir contra a ideia de que, apesar de tudo, Caiano actua com “banda” em palco, como brincou a própria a meio da sua actuação. Essa banda são os vários instrumentos a que recorre — das percussões aos sintetizadores — e que se encontram todos ligados a uma Loopstation que lhe permite ir montando os temas ao vivo em modo “she, herself and her”.
Talvez por ser domingo, o Festival Vapor estava repleto de famílias, dos netos aos avós, que no Palco Telheiro se reuniram para uma comunhão em torno da música — tão moderna quanto ancestral — que Ana Lua Caiano tem feito, ajudando até a carregar um pouco mais o nome de Portugal além fronteiras no circuito das artes. Apesar de ter um lugar reservado na gala dos Globos de Ouro nessa noite — estava nomeada para todas as três categorias ligadas à música e arrecadou mesmo o galardão de Melhor Canção —, a artista não mostrou quaisquer sinais de querer apressar o espectáculo para seguir viagem para Lisboa e viu-se que estava completamente rendida ao carinho que o público do Entroncamento tinha reservado para si. Retribuiu-nos com muitos sorrisos, interacções e uma performance que passou em revista as canções dos seus dois EPs e do álbum com que se estreou este ano, Vou Ficar Neste Quadrado. Em pé e diante de um microfone secundário afastado da sua bancada de trabalho, muniu-se apenas de uma pandeireta para nos entregar uma versão bem crua de “Ando Em Círculos”, que terá sido um dos momentos em que sentimos a pele a arrepiar. “Mão na Mão”, “Adormeço Sem Dizer Para Onde Vou”, “Cansada” e “Deixem O Morto Morrer” foram outros dos temas a que tivemos direito a escutar antes de a vermos abandonar o recinto custosamente, pois ainda tinha uma grande viagem pela frente e estava com dificuldade em ausentar-se dali para que pudesse receber a grande ovação de que foi alvo durante mais tempo. Ainda assim, voltou atrás para o tão desejado encore, antes de se voltar a retirar lentamente por entre uma chuva de aplausos.
A despedida custa sempre mais quando os dias se fizeram de uma beleza rara. Não queremos, de todo, sair destes quadrados. Do que serve de área para o Festival Vapor, e daquele que Ana Lua Caiano tem vindo a traçar em torno da sua arte, promovendo uma das propostas mais refrescantes que a música portuguesa conheceu nos últimos anos.