É ao segundo dia (28 de Setembro) do Festival Vapor que a programação mais se prolonga no tempo. Do meio dia à uma hora da madrugada seguinte, não faltaram coisas para fazer no recinto montado no Museu Nacional Ferroviário no Entroncamento. Das sessões de cinema às partidas de jogos de tabuleiro, passando por uma oficina de reciclagem e pelo teatro, impossível é estar parado neste certame que vai na sua quarta edição, até porque, caso se salte uma actividade ou outra, a própria natureza do local em que se insere já oferece imenso para ver — e quão é bonita a vasta colecção de carruagens e demais memorabilia ferroviária patentes neste grande museu que se divide entre espaços indoor e outdoor.
Com os finais de dia a ficarem progressivamente mais quentes neste fim-de-semana, criou-se o ambiente perfeito para ver os Moonshiners às 18h30, que montaram os seus instrumentos no Palco Telheiro, que receberia assim o seu primeiro concerto desta edição do festival numa altura em que o sol se ía aproximando da linha do horizonte. Tal como no Palco Naves, a estrutura aqui montada para receber os artistas também se faz rodear de uma série de carruagens de combóio antigas, contribuindo fortemente para o imaginário desejável num show desta banda de Aveiro, cuja sonoridade assenta num rock bem ancestral que vai beber directamente à fonte dos blues.
Formados por Gamblin’Sam (voz e harmónica), Susie Filipe (voz e bateria) e Vítor Hugo (voz e guitarra), os Moonshiners crescem em cima do palco com a adição de um baixista e um teclista, engrandecendo assim as músicas dos vários discos que têm editado desde 2013, dos quais se destacam os mais recentes Boot Legs (que assinalou a primeira década de actividade do grupo em 2022) e Monkey’s Poetry (lançado bem no arranque deste ano). A actuação entreteve, mas não esteve sequer perto de impressionar. Percebe-se o porquê dos Moonshiners encaixarem bem neste tipo de festival, mas a verdade é que não são mais do que um conjunto capaz de emular sonoridades que todos nós, em algum momento das nossas vidas, já escutámos em algum lado, sem lhes conseguirem acrescentar algo de novo e diferenciador ou algum tipo de virtuosismo que nos faça ficar de boca aberta.
Às 21h30 regressámos ao Palco Naves para aquele que foi, sem dúvida, o momento musical mais único de todo o evento. O espectáculo “Le Cabaret Rock” foi a proposta trazida pela companhia de tratro transdiciplinar e artes visuais Custom Circus, um grupo de artistas com larga experiência na performance ao vivo que conta com quase três decadas de existência e mais de 1500 actuações contabilizadas no seu currículo. Mais uma escolha bem acertada por parte do Vapor, que viu neste colectivo o potenical para um casamento perfeito com toda a estética steampunk que procura incorporar nas suas festividades. Do rock à electrónica e do metal à country, o Custom Circus trouxe o seu alinhamento preparado de casa, intepretando ao vivo apenas a parte vocal dos temas. Nem dava para ser de outra forma, já que este espectáculo dá prioridade a um outro tipo de elementos, como a dança, as acrobacias ou os vastos elementos de pirotecnica que são sempre um regalo para a vista. Houve mensagens políticas, maquinaria artesanal, corpetes, histórias de amor, baladas para gigolôs e muito mais neste festim surrealista do Custom Circus que não deixou ninguém indiferente.
Para os verdadeiros apreciadores do que de mais inovador se vai fazendo em Portugal, uma nova oportunidade de assistir a um concerto de Scúru Fitchádu é sempre imperdível. Neste projecto que arrancou em 2016, Marcus Veiga é uma espécie de Keith Flint (dos The Prodigy) mas com raízes fixadas em Cabo Verde. A sua música é pura rave com funaná enquanto principal elemento, uma verdadeira descarga de batidas frenéticas que transportam a tradição do arquipélago africano para territórios nada prováveis, como o punk, o techno ou até o trance.
Foram dois os músicos que acompanharam Marcus nesta apresentação de Scúru Fitchádu no Entroncamento. Henrique Silva (de Acácia Maior) esteve maioritariamente à guitarra, mas consoante o que os temas pediam adoptava também o baixo ou a percussão, demonstrando igual detreza em qualquer um dos instrumentos. A operar uma ampla gama de maquinaria musical e de rosto semi-tapado esteve Ganso (do estúdio recordie), responsável por muitas das camadas que compunham os fundos das telas instrumentais, bem como alquimista de serviço na hora de jorrar ácido para cima das ondas sonoras. Com o protesto na ponta da língua, marca de água deste MC que tem feito activismo através da música, Scúru Fitchádu passou em revista várias malhas dos seus últimos dois álbuns — Un Kuza Runhu (2020) e Nez Txada Skúru Dentu Skina Na Braku Fundu (2023) —, que funcionaram com bálsamo para o momento de maior delírio de todo o festival. Não vimos ninguém ao nosso redor que resistisse à dança e nem falamos apenas de um ligeiro abanar de anca. Fosse o Palco Nave uma zona de terra batida e ter-se-ia levantado uma grande nuvem de poeira — isso é certo. Destaque ainda para alguns temas inéditos que tivemos a oportunidade de escutar, sinal que Marcus Veiga continua no laboratório a preparar novas poções mágicas para o seu culto de fieis — quem sabe 2025 nos traga novo disco.