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Fotografia: Mínima - Música & Arte
Publicado a: 05/02/2025

Na direcção da pluralidade.

Festival Porta-Jazz’25: vozes ao alto e almas ao rubro a favor do tempo

Fotografia: Mínima - Música & Arte
Publicado a: 05/02/2025

Terminou no passado domingo, no Porto, a 15ª edição do Festival Porta-Jazz que tem o seu epicentro no Teatro Rivoli. Um festival que, como sublinhava o habitual manifesto que o programa deste evento sempre propõe, se apresentou “contra o relógio, a favor do tempo”. Uma dupla intenção que se compreende: contra o relógio porque encaixar em três dias um total de 14 concertos (e mais uma masterclass, três jam sessions, um baile, um coro instantâneo, um DJ set* e um par de lúdicas actividades matinais…) exige de toda a gente — público, artistas e equipa de produção — muito fôlego e concentração máxima; e a favor do tempo porque, como poeticamente assegura o texto do programa, “é a música que verdadeiramente faz o tempo, tempo cronométrico, estrutural, transcendente, linear ou não linear, horizontal ou vertical, suspenso, cíclico, simétrico, processual, o tempo do cosmos, o tempo do corpo, emergênca e pulsação”. É isso. A favor do tempo. A nosso favor.

Esta edição de 2025 (a quinta em que o Rimas e Batidas marca presença, a quarta para o signatário destas linhas) foi especial, tanto em termos de diversidade de propostas quanto na qualidade geral do programa apresentado. É importante ressalvar o crescimento do festival a vários níveis, e desde logo no da diversidade. Em 2021, escreveu-se por aqui: “O Porta-Jazz, como de resto vários outros festivais de todos os géneros musicais, precisa de crescer no campo da diversidade e da inclusão. Houve 14 concertos e apenas um teve uma mulher como líder. Passaram cerca de 65 músicos diferentes por todas essas apresentações e apenas 11 deles eram do sexo feminino. É verdade que a percentagem tende a reflectir a realidade e que a Porta-Jazz tem feito tudo ao seu alcance, entre a formação e a programação, para transformar essa realidade. Mas esta tomada de consciência tem que ser colectiva para que o futuro seja diferente”.

Pode dizer-se que, realmente, esse caminho tem vindo a ser trilhado: na edição deste ano, 5 dos 14 concertos foram liderados por mulheres ou incluíram significativas prestações de artistas do sexo feminino. Foi, aliás, profundamente simbólico dessa desejada e necessária evolução o concerto de encerramento — extraordinário, sublinhe-se — com a pianista Kaja Draksler e as cantoras Mariana Dionísio, Sofia Sá e Vera Morais. Quatro incríveis mulheres em cima de um palco perante uma sala repleta — bem, na verdade chegaram a ser cinco, mas já lá iremos. A favor do tempo, de facto. 

Há outras transformações na direcção de uma mais plural representatividade que ainda precisam de ocorrer, claro, mas nem Roma e Pavia se fizeram num dia, nem os problemas estruturais da nossa sociedade encontram proposta de resolução plena em 15 edições de um pequeno, ainda que muito valoroso, festival. Os momentos de alegre dança nos finais de noite, ou o espaço dado às vozes anónimas para expressarem aquilo de que o Porto (e o mundo, na verdade…) precisa através do Coro Instantâneo que nasceu no espaço do Café do Teatro Rivoli na tarde de domingo (“menos carros”, “mais amor”, “mais habitação”) são sinais de que a procura de harmonia, mesmo num festival que programa tanta música dissonante e atonal, é missão importante. No presente e para o futuro.

As vozes brilharam de forma intensa neste 15º Festival Porta-Jazz. É aliás simbólico que a voz feminina tenha emoldurado o programa, estando em destaque tanto no seu arranque como no seu fecho. A abertura coube a Joana Raquel, que levou ao pequeno auditório a apresentação do seu registo Queda Áscua, fazendo-se rodear de Teresa Costa (flauta), de Rafael Santos (clarinete e guitarra), Joaquim Festas (guitarra) e João Fragoso (contrabaixo), com Miguel Meirinhos (piano), Gonçalo Ribeiro (bateria) e Zé Stark (bateria) a surgirem também como convidados.

Joana Raquel falou da música que apresentou, não disfarçando emoções, como o reflexo de um processo de auto-descoberta, o que talvez ajude a explicar o quão especial foi esse concerto em que ecos mais ou menos ténues de música popular, de música de câmara e de um jazz contemporâneo avesso a fronteiras se entrelaçaram numa muito pessoal visão que o público abraçou sem reservas. As peças do CD que o Carimbo Porta-Jazz lançou em Maio de 2024, como “Guelra”, “Canção Subcutânea” ou “Pele”, foram apresentadas com o cuidado de quem sabe ter matéria preciosa e frágil nas mãos, com os músicos em sintonia absoluta e com todas as voltas e reviravoltas bem estudadas. Concerto impressionante o suficiente para, desde logo, obrigar a um regresso a Queda Áscua em busca da resolução dos mistérios (coisa boa) que a prestação de palco sugere por aí existirem. Missão a cumprir em breve.

No programa do primeiro dia, 31 de Janeiro, a voz humana brilhou ainda na apresentação do colectivo Ursa Maior que levou ao Grande Auditório do Rivoli três dezenas de músicos, incluindo um coro feminino com Almut Kuhne, Ana Marques, Beatriz Vieira, Joana Raquel, Maria Inês Gouveia e Mariana Vergueiro. O concerto começou com três das secções da big band a circularem pela plateia, criando um perfomático efeito imersivo: percussões, metais e vozes foram encontrando espaços ressoantes na plateia enquanto no palco contrabaixistas, pianistas e guitarristas asseguravam ímpeto rítmico e harmónico para a elíptica performance em que por vezes se sentia o desbravar de um particular percurso pela história da música do século XX, da erudita ao jazz, do minimalismo ao swing e daí a múltiplos modos populares, sem que alguma vez nos detivéssemos num momento particular. Uma proposta em tom de celebração para assinalar esta década e meia de exploratório caminho que se resolveu no final de tudo num belíssimo solo de Susana Santos Silva (trompete) que se dissolveu em silêncio, como água que desaparece na areia.

Uma belíssima e declaradamente livre apresentação da dupla Agustí Fernandez (pianista espanhol que também assinou uma masterclass) e Liudas Mockunas (saxofonista lituano) e um concerto igualmente meritório de apresentação de Wabi-sabi, com Gonçalo Marques (trompete), John O’Gallagher (saxofone alto), Demian Cabaud (contrabaixo) e Jeff Williams (bateria), completaram o programa da jornada inaugural do festival, na sexta-feira, último dia do primeiro mês do ano. 

O concerto da dupla Fernandez/Mockunas foi, talvez, o momento mais livre de todo o festival, com o pianista a tomar o seu instrumento como um todo ressoante, partindo das teclas para as entranhas, usando objectos sobre as cordas e também o silêncio como argumentos no diálogo impreparado, mas frutífero com o saxofonista. As mãos bailarinas de Agustí, que ia acrescentando notas imaginárias dedilhando no ar enquanto o seu companheiro solava, são claro sinal de que nem toda a música tem manifestação física nas ondas sonoras que se propagam no ar. Alguma existe apenas nas nossas cabeças. E essa também importa.



Houve um outro momento de especial intensidade e de elevada qualidade no capítulo vocal deste festival, o da prestação, na tarde de sábado, 1 de Fevereiro, do trio How Noisy Are The Rooms? formado por Almut Kuhne (voz), Joke Lanz (gira-discos) e Alfred Vogel (bateria). Num concerto igualmente inteiramente improvisado, o que ficou patente é que o nível de comunicação telepática existente entre os três músicos é tal que por vezes o que está a ser interpretado soa a peça cuidadosamente gizada e já muito rodada. Kuhne é uma vocalista I M P R E S S I O N A N T E, dona de uma técnica espantosa que inclui um vasto arsenal de recursos que podem ir de técnicas operáticas a registos bem próximos do beatboxing, técnica desenvolvida na cultura hip hop. Almut tanto soa a disco riscado (elogio), como a velha gravação de disco de grafonola, como a computador em overdrive ou pássaro livre na floresta. A sua amplitude vocal lembra uma Yma Sumac em esteróides e, sinceramente, por vezes era difícil crer que fosse ela a gerar certos sons, sendo o nosso olhar desviado para o que fazia o gira-disquista Joke Lanz para tentarmos perceber se era dos discos que manipulava que se soltavam aqueles sons. Acontece — e isso é talvez o detalhe mais importante — que apesar de extraordinária, a técnica de Kuhne nunca é exposta de forma gratuita, servindo sempre a música para que também contribuem decisivamente os seus companheiros: Lanz usa os gira-discos quase como um sampler, uma fonte inesgotável de sons, de texturas electrónicas ou de velhos swings de big band. Vale tudo. E Vogel é um imaginativo baterista que também tem um entendimento total do seu instrumento que vai complementando com pequenos objectos, mostrando-se capaz de gerar groove ou caos com idêntica elegância. Recomenda-se vivamente a audição do trabalho que o grupo lançou na Boomslang Records.

Esse segundo dia incluiu também, ainda antes dos concertos da noite, prestações de Paira com o bem jovem quarteto de João Pedro Dias (trompete), Gil Silva (saxofone tenor), Pedro Molina (contrabaixo) e Gonçalo Ribeiro (bateria) — que trouxeram um música de recorte aparentemente simples e de uma tranquilidade poética em que se combinam uma elegante e colectiva veia composicional e a procura de uma acentuada liberdade discursiva; o projecto Sopros de João Próspero (contrabaixo e composição), Miguel Meirinhos (piano), Joaquim Festas (guitarra) e Gonçalo Ribeiro (bateria), que propõe verter para música a literatura de Murakami com pontuais e bem estruturados assomos de “exotismo” no plano melódico que resultaram num bom concerto; e, finalmente, uma sinceramente desinteressante prestação do Emmanuelle Bonnet Quartet, resultado da parceria do festival com a AMR-Genève, com Emmannuelle Bonnet (voz, composições), Alvin Schwaar (piano), Tabea Kind (contrabaixo) e Lucas Zibulski (bateria) a mostrarem-se incapazes de escapar a fórmulas demasiado rodadas e rígidas para gerarem entusiasmo.

Bem diferente foi o último bloco de concertos desse segundo dia de festival. Dificilmente se poderia esperar uma melhor proposta para a noite de sábado de que uma que incluísse apresentações de Soma de José Soares, sem dúvida um dos mais destacados saxofonistas da actualidade, e de Canta Derrocada do Fragoso Quinteto do contrabaixista João Fragoso, talvez o mais incansável dos músicos nesta edição do Porta-Jazz (tocou ainda com Joana Raquel e com o projecto Godua e também foi o responsável pela produção executiva, tendo garantido que o programa se desenrolasse com rigor milimétrico).

A partir de referências literárias, Soares criou em residência no Guimarães Jazz o projecto de que resultou a gravação editada pela Carimbo Porta-Jazz. Aí brilham também os sólidos talentos de José Diogo Martins (piano e sintetizador), Omer Govreen (contrabaixo) e João Lopes Pereira (bateria). E há ainda que ressalvar os motivos gráficos gerados por Várvara Tazelaar, um argumento extra que facilitou o abandono numa música que nasceu, num primeiro momento, de uma meditação de José Soares em modo solista e que foi evoluindo, de forma absolutamente natural, com o progressivo envolvimento do ensemble. O quarteto soou como unidade coesa, com entendimento perfeito do material escrito, capaz, no entanto e de forma subtil, de entender o momento como estímulo para a invenção, mas com tamanha fluidez que nunca se percebe quando cada um sai para fora de zonas previamente cartografadas.

Explorando uma estética diferente, o Fragoso Quinteto também demonstrou ser unidade com laços bem firmados: João Fragoso (contrabaixo e composição), João Almeida (trompete), Albert Cirera (saxofone tenor), João Carreiro (guitarra) e Miguel Rodrigues (bateria) interpretaram quase-canções que traduzem uma visão poética, intimista e que vive das ligações invisíveis que estes músicos conseguem estabelecer entre si e da ideia de partilha de experiências que desembocam sempre numa música que ali soou viva e necessária. Como importa.



Quando se aterrou no terceiro dia (2 de Fevereiro) do programa no Rivoli (e não esquecer que este festival ainda teve um duplo preâmbulo nas noites de dia 28, com apresentação do projecto Lukraak no Maus Hábitos, e 29 de Fevereiro, com o concerto de Samurai Magazine seguido de jam session no Espaço Porta-Jazz na Praça da República), a energia já poderia ser bem escassa, mas, como garantem os maratonistas, a aproximação da meta parece garantir sempre uma injecção de ânimo em toda a gente, artistas, público e equipa de produção, pelo que amplos sorrisos nos rostos era coisa abundante no passado domingo.

O sexto e penúltimo bloco de concertos trouxe apresentação de Stop, do quarteto Godua e, manifestação da amizade da Porta-Jazz com a lisboeta Robalo, de Odd Objects do projecto Sonic Tender.

Numa sentida homenagem à vibração comunal que se sentia nessa verdadeira instituição informal do Porto que foi e que procura continuar a ser o Centro Comercial Stop, espaço vivo de ideias e laboratório de ensaio de grande música, Hugo Ferreira (guitarra e composição), Duarte Ventura (vibrafone e composição), João Fragoso (contrabaixo) e João Cardita (bateria) deram a ouvir uma música abstracta, mas simples, de linhas esparsas e que parece sempre querer dissolver-se no silêncio.

De seguida, João Carreiro (guitarra), Guilherme Aguiar (piano) e João Valinho (bateria) — os Sonic Tender — apresentaram um dos mais originais concertos desta edição do festival. Durante cerca de uma hora, o trio interpretou uma música altamente reducionista, com elementos minimais e repetitivos, mas que se impunham quase como miniaturas ou esqueletos de outras músicas — escutaram-se por ali fragmentos de bossa nova desconstruída e rock fragmentado, como se posse possível ouvir estas músicas na sua estrutura molecular. Música fisicamente exigente, esta. A dada altura, entre duas peças, Guilherme Aguiar teve mesmo que exercitar as mãos para contrariar os efeitos da tensão e da repetição. Um dos temas, com o título algo enganador “Folk”, soou a uma aproximação simultânea a Velvet Underground e Durutti Column, como se fosse possível destilar as discografias dessas duas bandas de décadas e continentes diferentes num único acorde repetido de forma obsessiva durante vários minutos. Música monolítica e extática de assombro profundo.

O festival chegou ao final com a dupla apresentação pós-jantar do álbum Árbol Adentro de um visivelmente feliz Demian Cabaud e também da segunda edição “do que se pretende ser um espaço de criação e experimentação, por encomenda — o Ensemble Mutante”.

Demian Cabaud (contrabaixo) exibiu o seu habitual som definido e nobre, redondo e profundo, mostrando, uma vez mais, ser músico de elite. Ao seu lado uma equipa de idêntico luxo: José Pedro Coelho (saxofone tenor), João Pedro Brandão (saxofone alto e soprano), Ricardo Moreira (piano) e Marcos Cavaleiro (bateria). Ressalve-se que, como bem explicou Cabaud, o pianista “soube à 1 da tarde que vinha tocar e está a partir a louça”. De facto, Moreira mostrou-se à altura do exigido e exibiu um comping de subtileza sabedora e solos assertivos que se encaixaram sempre de forma perfeita no som do colectvo. E depois, Brandão e Coelho — dois músicos que se conhecem muito bem — funcionaram como fontes de energia de polaridade oposta, mas intensidade semelhante, duas vozes poderosas, carregadas de imaginação e fogo, como a música pede. Cavaleiro, por seu lado, é o motor que carrega o todo com zero esforço, um ritmista com recursos de mestre zen que parece não soltar uma gota de suor nem tendo a montanha mais íngreme para escalar pela frente.

Para o final ficou talvez o melhor concerto de todo o festival. A eslovena Kaja Draksler respondeu ao chamamento Porta-Jazz e convocou as vocalistas Mariana Dionísio, Sofia Sá e Vera Morais — que “descobriu” numa apresentação de matriz_motriz de Mané Fenandes no AMR Genève — para um espectáculo que partiu de material literário de dois poetas americanos, Robert Frost e Dean Young, e de composições da pianista para dois dos seus projectos, o Octet e o Matter 100, e se resolveu, com elegantes pormenores de encenação, numa performance imaculada.

Draksler usou o seu piano, de forma convencional e igualmente de “coração aberto” percutindo as suas cordas com um conjunto de objectos, mas também um vocoder microtonal, tratando ainda as extraordinárias vozes das três vocalistas convidadas como um instrumento adicional. Instrumento de infinitas possibilidades, diga-se. Dionísio, Sá e Morais são capazes de harmonizar de forma clássica, mas das suas gargantas podem igualmente nascer rios, soltarem-se pássaros ou fluir vento. A quantidade de recursos que as três somam é assombrosa e tendo isso em conta, a pianista guiou-as de forma perfeita por um reportório que, revelava no final Mariana Dionísio, tiveram pouco tempo para trabalhar. Houve ainda um momento especial, quando Kaja Draksler chamou a sua “amiga de longa data” Susana Santos Silva ao palco que ali assinou mais uma das suas arrebatadoras performances. Antes deste último concerto, a trompetista portuguesa reconhecida internacionalmente fez uma emotiva apresentação do evento, falando do tempo como uma matéria que precisamos de abraçar e da música como a mais perfeita consequência do tempo. Uma ideia que se materializou de forma perfeita na apresentação deste Ensemble Mutante, que navegou entre a natureza e a canção, entre o êxtase e a contemplação com o assombro de quem ama a vida na sua forma total. Só almas grandes são capazes disso quando elevam as vozes acima do ruído do mundo. E foi exactamente isso o que aconteceu nesta 15ª edição do Festival Porta-Jazz.



*Esclarecimento: o autor desta crónica/reportagem foi convidado pela organização do festival a fazer um DJ set na noite de sábado, no espaço do café do Rivoli. Convite que aceitou, tendo partilhado alguns dos seus discos de jazz contemporâneo perante uma audiência desejosa de poder dançar. O seu DJ set não foi remunerado.

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